A Boca da Guerra

Capítulo 8: Neville – O palhaço

O pai de Neville se debatia entre febre e delírio, havia guinchos à meia noite, o cheiro de suor, lençol de algodão e sangue.

— Ele nunca mais vai andar — disse Neville.

— Mas vai se erguer — disse Maëlle, mãe de Neville.

— Não pode lutar.

— Você se esquece de quem é seu pai. Ele me ensinou tudo sobre bushido. Um homem como ele não permanece caído.

A mãe estava tão certa da recuperação completa do pai. Já Neville se perguntava como pode alguém se recuperar completamente quando não se está completo?

Naquela mesma tarde, o capitão de Baynard acordou. Maëlle e Neville, rindo e chorando, moveram-no para uma cadeira estofada perto da janela e fizeram comidas, ofereceram licor eslariano. O capitão sem pernas não olhou para a esposa, nem para o filho; não olhou para nada. Ficou encarando a janela, sem ver nem fora nem dentro, perguntando em silêncio um abandonado Por quê...?

Três semanas depois, a Caravana de Rimbaud chegou à capital de Baynard. O capitão havia prometido ao filho que passeariam por Debur, que veriam a caravana juntos esse ano. Neville não tinha ficado feliz com a perspectiva. Tinha quatorze anos e a última coisa de que precisava era do pai atrapalhando ele e seus amigos.

Agora, porém, Neville esperava que a perspectiva de ver a feira juntos arrancasse o pai daquele silêncio de voz e de alma. Ele havia, afinal, dito que iriam juntos e isso, para um guerreiro como o pai, era uma promessa.

— Não se preocupe, filho, seu pai honrará a promessa que fez — disse Maëlle antes de sair para trabalhar.

Maëlle era dona da única biblioteca e livraria de Debur, talvez de Baynard. Ali se encontravam muitos livros sobre Sátiron, o Império, Yukari Nakamura. Havia livros com imagens que Neville não conseguia entender, de cavaleiros negros montados no que pareciam ser enormes aranhas de muitas pernas, só que essas pernas pareciam galhos e troncos. Bushido foi uma palavra trazida por Nakamura do outro mundo, onde ela nasceu. Bushido era honra, mais forte que pernas, desejos e medos. Um guerreiro jamais quebrava uma promessa, jamais remoldava sua lealdade. A palavra de um guerreiro era o corte de uma espada. Não tinha volta.

O pai de Neville havia lido todos os livros a respeito de Nakamura e sua filosofia. Ele não se interessava pelas imperatrizes, nem por Sátiron em si. O capitão não se interessava por nenhum outro mistério: somente Nakamura.

Neville também leu alguns daqueles livros, mas se confundiu quando um livro anjariano exaltou a mulher guerreira como líder social, enquanto um livro gorgathiano colocava a mulher líder como essencial, mas também como pária da sociedade; uma espécie de mal necessário, doença que Sátiron espalhou pelo mundo; alguém que você não convidaria para o aniversário de seus filhos.

— São interpretações — disse Fulion. — Nenhum desses livros foi escrito por Yukari Nakamura.

Fulion era sócia de Maëlle. Era ela quem conseguia os livros para a biblioteca de Debur. Nem Maëlle sabia direito onde aquela mulher conseguia os exemplares. Às vezes, Fulion passava meses desaparecida, para voltar com um baú lotado de livros, muitos em línguas estrangeiras, mas alguns também em franês. Então, ela sumia novamente com os livros estrangeiros e voltava com cadernos escritos à mão.

— Traduções — ela dizia.

— Quem traduziu? — Maëlle perguntava.

Fulion fechava a boca. Tinha pele sulcada de vento e cabelos crespos clareados pelo sol. Olhos claros como cristais, pupilas pequenas, joelhos virados para fora, moldados pelo cavalo. A única criatura capaz de amolecer os sulcos no rosto de Fulion era o cavalo branco e preto. Chamava-se Mancha e mordia qualquer um que não fosse a dona.

Sempre que Fulion estava em Debur, Neville preferia perguntar as coisas a ela do que à mãe, que se transformava em outra pessoa à menção de Nakamura. Maëlle reverenciava Nakamura e acreditava conhecê-la melhor do que ninguém.

— Você nunca a encontrou — disse Fulion.

— Mas um dia talvez eu a encontre — disse Maëlle. — Então, teremos muito o que falar.

Neville nunca havia encontrado um mistério, nem conhecia alguém que tivesse visto um. Ou mesmo um mago. Às vezes ele duvidava de que os livros fossem a respeito do mesmo mundo em que ele vivia, embora houvesse resquícios de um tempo em que cidades inteiras funcionavam à força de feitiçaria. O próprio Esmeralda ainda tinha cicatrizes de quando foi adaptado para tochas e velas com o fim da eletricidade mágica.

— Se são interpretações — Neville colocou o livro anjariano e o gorgathiano lado a lado — como saber o que é verdade?

Fulion disse que não tinha como saber, porque nenhum daqueles livros havia sido escrito pela própria Nakamura. Neville perdeu interesse em livros sobre bushido e passou a ler apenas livros de autores que espressavam a própria opinião, não a de outra pessoa.

No dia em que a caravana de Rimbaud chegou a Debur, Neville sentou-se junto ao capitão, contou-lhe quantas carroças a caravana tinha este ano, suas cores, seus perfumes. Trouxe o livro favorito do capitão, um que também contava sobre Nakamura, mas não citava bushido. Ao invés disso, o texto discorria sobre a interação daquela estranha família: o mistério Nakamura e as duas crianças que ela adotou quando chegou a este mundo. A menina se tornou a Primeira Imperatriz de Sátiron. O menino inventou a feitiçaria. Juntos, os três deram fim à Era Negra.

O capitão gostava muito desse livro.

— Não há deveres, só feitos — ele disse a Neville uma vez, sussurrando, como se dividisse um grande segredo.

Neville colocou esse livro no beiral da janela enquanto falava da caravana. Os lábios do capitão se moveram e Neville pensou ler neles deveres, mas os olhos continuaram mortos de vidro em eterno Por quê...?

Neville esperou outra reação, mas em vão. Não queria ir sem o pai, pois isso significava que o pai quebrava uma promessa. Se Neville não fosse, a palavra do capitão permanecia intacta, mas ele não aguentava mais ficar em casa, preso naquela interrogação sem pernas. Deixou o pai com o livro e saiu para as ruas.

Normalmente, ele procuraria seus dois melhores amigos, Thaila e Robert. Thaila estaria ainda ajudando o pai na padaria e Robert estaria junto, para que ela terminasse logo e pudesse ir à feira. Neville normalmente ajudava também. Maëlle não precisava dele na biblioteca. Mesmo com os visitantes da caravana, o movimento da biblioteca era sempre pequeno demais para precisar de mais de uma pessoa.

Neville não foi à padaria do pai de Thaila. Ela e Robert o olhariam com pena, tentariam animá-lo. Neville não estava com humor para ser animado. Se estava triste, era triste que ia ficar.

A Caravana de Rimbaud inundou Debur com vida e cor. Barracas e balcões, sedas, cetins, couros e lãs de todas as cores atapetavam os pavimentos gastos da capital baynardiana.

— Poemas de Gorgath — cantarolou uma mulher alta e negra — canções românticas, trágicas, cômicas; canções para os sábios, canções para os jovens, canções pra aprender a amar.

Um mercador da Eslarina exibia sedas em trinta e três tons de vermelho. A barraca ao lado da sua tilintava com prismas de vidro, metal polido e quartzo rosa e roxo. Do outro lado da rua uma senhora com calças e luvas de couro exibia pavões, periquitos, falcões. Um trio de cantores surgiu na esquina. Um deles tropeçou numa pilha de lã tingida de púrpura, mas não desafinou. Um velho taciturno se sentava em meio a periquitos exaltados. Havia licores de lugares distantes, comidas estranhas, perfumes inebriantes.

Neville quase trombou com um palhaço que dobrou a esquina perseguido por um dragão verde. Não era um dragão de verdade, mas duas pessoas numa fantasia cintilante: uma na frente segurando o rosto enorme, de olhos esbugalhados, cílios azul-turquesa, boca mecânica com gengivas cor de vinho; outra pessoa dobrada em dois, segurando a cintura de quem carregava a máscara, coberta com o dorso do dragão, escamas de lantejoula, brilhando, ofuscando; espinhas escuras como uma serra descendo as costas até a ponta do rabo. O palhaço, baixo, troncudo, com um pescoço curto ligando as orelhas aos ombros, usava uma peruca e barba postiça azuis, um chapéu roxo com uma margarida no topo e botas arredondadas.

Uma multidão de crianças corria atrás de palhaço e dragão. Inundaram o pátio com gritinhos agudos e risadas ligeiras. O palhaço correu em círculos, voltas e voltas e voltas. O dragão o seguiu, depressa, mais depressa, até que o palhaço pulou para fora da espiral de pernas e escamas, e o dragão, num bote, abocanhou o próprio rabo, deu um pinote e saiu galopando Debur afora.

O palhaço fez uma pirueta, curvou-se até tocar a testa nas pernas, gritou — Venham nos ver na Tenda dos Artistas — e seguiu o dragão.

Neville correu atrás dele. Não porque a cena tivesse arrancado um sorriso de seus lábios após cinco semanas de febre sem pernas, mas porque o palhaço não tinha braços.

— Espere — chamou Neville.

O palhaço virou-se, curvou-se e repetiu que mais tarde, na Tenda dos Artistas.

— Espere — gritou Neville.

Desta vez o palhaço parou. A urgência daquele chamado era mais do que simples vontade de rir.

— Diga, jovem, o que houve?

— Você não tem braços.

O palhaço olhou para o ombro direito, depois para o esquerdo, deu um pulinho desmilinguido, pousou uma perna arqueada depois da outra e gritou:

— Pelos lobos de Sátiron, onde foi que os perdi?

Mas o rapaz não achou graça.

— Muito bem, jovem, eu não tenho braços. Por que isto te interessa?

O rosto de Neville se esgrouvinhou numa careta que teria sido engraçada, não fossem as lágrimas salgando-lhe as faces negras. Soluços violentos sacudiram os ombros de Neville, repuxaram-lhe o pescoço. Ele ficou vários minutos em pé na frente do palhaço, queimando de vergonha salgada, querendo se esconder, pensando no desprezo com que os pais o olhariam se o vissem chorar assim em público.

O palhaço estava acostumado à vida sem braços, mas havia momentos em que desejava vê-los brotar novamente dos tocos que restavam. Que bom seria poder colocar as mãos nos ombros daquele menino, dizer-lhe que tudo bem. O palhaço não tinha nem as mãos necessárias para o gesto, nem verdade com que embeber as palavras.

— Qual é o seu nome? — perguntou quando os soluços de Neville amansaram. Ele se chamava Lecoeurge. Havia sido soldado em Patire. — Dormi no posto, após quarenta e oito horas em serviço — contou — e o rei Fulbert vush, cortou meu braço fora. — O esquerdo. O direito, perdeu em batalha contra Baynard. — Na Boca da Guerra — disse, em voz baixa, como se a simples menção ao campo de batalha pudesse trazer a guerra para o centro de Debur.

Inútil como soldado, Lecoeurge fugiu de Patire.

— Você abandonou seu rei? — perguntou Neville.

— É muito comum na Franária de hoje em dia — disse Lecoeurge. — Soldados migram de Patire para Deran, de Deran para Baynard, de Baynard para Deran. Fica todo mundo indo para lá e para cá, mas a verdade é que não tem como se esconder da morte. A danada não reconhece fronteiras.

Neville não gostou do tom de brincadeira do palhaço Lecoeurge.

— Você quebrou seu juramento para com o seu rei — disse o menino.

— Fugi, mesmo — disse Lecoeurge — porque, se não, o rei Fulbert vush — esticou o queixo para cima e expôs o pescoço num ato muito convincente de quem está para ser decapitado.

— Não é justo — disse Neville. — Foi Fulbert quem cortou seu braço esquerdo.

— Justo? O rei de Patire? — Lecoeurge jogou a cabeça para trás e se sacudiu todo de rir.

— Henrique de Baynard jamais faria uma coisa dessas — assegurou Neville. — Nosso rei é justo. — O pai de Neville jamais serviria um rei que não fosse exemplar.

— Se você diz.

Rimbaud da Caravana encontrou Leoceurge moribundo na beira da estrada.

— Você é tão trágico que chega a ser cômico — disse o Mestre da Caravana. — Venha conosco.

— Vai me ajudar? — perguntou o soldado. — Eu sou inútil, não tenho braços.

— Use as pernas, ora. Você pode mudar o mundo, derrotar dragões. Tudo isso sem derramar uma gota de sangue. Ao invés disso, derrame riso.

O palhaço ia contando sua história enquanto caminhava até uma das inúmeras pracinhas de Debur onde as carroças leito ficavam estacionadas. Neville viu o homenzinho sem braços subir para dentro de uma carroça de lona amarela, lavar os pés com água e sabão, então, com os pés, remover chapéu, peruca, barba. Por baixo do palhaço colorido escondia-se um homem calvo de rosto comum e olheiras.

— Impressionante, não? — disse Lecoeurge. — O que um pouco de cor pode fazer a um homem.

Neville estava mais impressionado com a desenvoltura do palhaço ao embrulhar o chapéu roxo em papel celofane, guardá-lo em uma caixa, depois acender um fogareiro, preparar uma chaleira, arrumar duas canecas, mel, colheres, hortelã. Pés tão destros que Neville se envergonhou das próprias mãos.

— Como você faz tudo isso? — ele perguntou ao palhaço.

— Da única forma que posso.

Lecoeurge serviu chá e, finalmente, Neville percebeu que estava dentro de uma cas carroças da caravana. Ele sempre quis saber como aquelas pessoas viviam, o que comiam, onde dormiam. A curiosidade escalou até o topo da sua mente, empurrando o pai silencioso sem pernas para a nuca. O fato de que Lecoeurge havia quebrado sua palavra ao rei de Patire foi esquecido.

Neville sempre imaginou caos, espaços apertados, quinquilharia de todos os cantos do continente; armários com portas fora do eixo, baús cheios de poeira e traças, cheiro de musgo. A carroça de Lecoeurge era limpa, com estantes abertas que continham latas coloridas com chá; um colchonete dobrado a um canto, cheiro de frutas secas.

— Você tem um violão — Neville apontou para o instrumento acomodado entre duas estantes.

— Pode olhar com as mãos, se quiser. Só cuidado com o chapéu. Foi feito a mão por uma artesã em Sejo Tíen e trazido de navio para o continente.

Neville ficou de joelhos, alcançou o violão. Era feito de madeira escura, enfeitada com flores de madripérola nas laterais.

— Para quê você tem um violão?

— Foi presente de um nobre gorgathiano. Haviam perdido a Mestra da casa num acidente terrível, e já há um ano nem o nobre nem suas duas filhas conseguiam rir. Rimbaud enviou-me ao palácio da família. Faça o que puder, me disse. Eu fiz. As meninas riram de mim, como você riu hoje na praça. E o nobre me deu o violão em agradecimento.

— Presente besta para alguém sem braços.

— O acidente que matou sua mulher cegou-o também.

Neville baixou os olhos para as cordas do violão, passou as unhas por todas elas, então puxou uma de cada vez.

— Sabe tocar? — perguntou Lecoeurge.

— O pai de Thaila tem um, não tão bonito. Me ensinou alguns acordes.

— Leve-o.

Neville imediatamente devolveu o violão à estante. Era bonito demais, Lecoeurge devia vendê-lo.

— É mais bonito por ser presente — disse o palhaço, servindo-se de segunda xícara de chá. — E agora é seu.

Neville não estava acostumado a generosidade.

— Você não precisa me dar o violão.

— Claro que não! Se precisasse, não seria presente.

Tomaram em silêncio o chá, doce de queimar a garganta, em xícaras feitas de vidro colorido, caleidoscópios de hortelã e mel. Neville apontou o desenho de um dragão em uma das estantes.

— Quem fez isto? — perguntou.

— Eu — disse Lecoeurge. Pegou lápis e uma folha de papel, tracejou rapidamente o esboço de uma águia em voo. — A Franária, antes de se dividir em três, costumava ser representada por uma águia. Quem sabe um dia esta guerra civil não termine, e a águia levante voo novamente.

Que os lobos de Sátiron mastigassem a águia. Se Lecoeurge podia fazer tudo aquilo com os pés, imagine o que o pai de Neville conseguiria com as mãos.

— Gostaria de dizer que aprendi a me virar sem mãos por necessidade — disse Lecoeurge. — Não é verdade. Eu teria morrido. Teria me deixado morrer, mas Rimbaud me deu uma chance.

Por quê...?

Neville entrou em casa correndo, o violão às costas e um pacote de papel pardo nas mãos. Ele abriu o pacote e colocou no beiral da janela um bloco de papel, as folhas amarradas por um barbante de veludo azul escuro, e uma caixinha com cinco lápis apontados.

— Pai, você ainda pode mudar o mundo. Empunhe o lápis ao invés da espada.

Neville voltou à feira, contente. Estava tudo bem. O pai estava salvo. Neville mostrou o caminho.


Capítulo 9

Um primeiro estudo de Neville adulto.