A Boca da Guerra

Capítulo 43: Maëlle – A última conversa

A casa de Jaqueline era um único quadrado relativamente espaçoso. O chão era de terra batida coberto com esteiras de palha. As paredes, também de terra, estavam enfeitadas com círculos de palha em padrões de azul e dourado, além de lenços de cores pastéis e molduras de renda branca ao redor das janelas. Jaqueline cedeu sua cama ao Eslariano (ofereceu antes a Esqueleto, que dispensou o favor) e juntou almofadas e cobertores para montar dois ninhos para ela e Maëlle sobre as esteiras. Esqueleto disse que ficaria com o banco.

— Depois de vinte anos dormindo em pedra, esta madeira é uma pluma.

Jaqueline alternava entre torcer os dedos e esfregar os olhos, de onde jorrava uma cascata de lágrimas. Em algum momento nesses últimos vinte anos, decidira que o pai desaparecido estava morto. Se não, por que não voltava para casa?

Anuré.

— Eu não sabia — ela repetia. — Por quê? Por quê?

— Eu fui traído — disse Esqueleto.

Ela continuou perguntando, pressionando, implorando, mas ele disse apenas:

— Filha, o único motivo de você estar viva foi eu ter mantido minha boca fechada. A pessoa que me traíu não sabia que você existia. — E calou-se.

— O que você vai fazer agora? — perguntou Maëlle.

Esqueleto deitou-se de costas no banco e fechou os olhos. Maëlle pensou que ele não iria responder, mas ele disse:

— Vinte anos eu sobrevivi em Anuré. Não foi esperança nem a crua vontade de viver que me manteve em pé. Foi ódio. Partirei assim que tiver forças. Terei minha vingança. Sugiro que façam o mesmo.

— Não queremos vingança.

— Claro que querem — disse Esqueleto. — Todos queremos. Seu filho, aquele Neville, também quer.

Maëlle se sentou no chão, onde Jaquelina havia estendido mais esteiras e alguns panos. Exausta, tentou dormir, mas ficou suspensa entre consciência e sonho, num mar de memórias que mais pareciam pesadelos, e talvez até fossem, mas eram também muito reais. Por mais que ela tentasse não pensar a respeito, as últimas palavras que o marido sem pernas disse para ela antes de partir continuavam ressurgindo que nem corpo morto em correnteza. Foi no dia em que Neville partiu para Fabec.

— Nós o matamos — disse o capitão sem pernas. — Eu pensei que bushido fosse a resposta. Uma filosofia do outro mundo, trazida pela própria Nakamura. O melhor que podemos fazer é morrer com honra, mas lá vai nosso filho fazer exatamente isso e não consigo deixar de pensar que fomos nós que o matamos. Ele não vai morrer com honra porque é o melhor que pode fazer, mas porque é tudo o que lhe resta.

Maëlle, ainda dolorida do filho que acabara de partir, agora notava que o marido havia arreado a mula. Sem as pernas, ele tinha dificuldade em montar o cavalo, mas à mula ele conseguia amarrar o que restava das pernas e se equilibrar.

— Para onde você vai? — perguntou Maëlle.

— Fulion está certa — ele disse. — A Franária é um ralo de tevas. Não dá para enxergar nada aqui. Eu já morri, Neville está indo morrer e você acha que está viva, mas só está parada.

Maëlle revirou-se na esteira e tentou afundar para onde os sonhos acobertassem as tristezas, mas acabou flutuando até a consciência e ficou lembrando cada frase, cada movimento do rosto do marido nesta última conversa que tiveram antes de ele partir.

Que bonita era a honra, a palavra inquebrada, a integridade das promessas. Bushido. Bonita demais para a Franária, essa águia de asas cortadas. Ter honra não bastava, não fazer nada de errado não bastava. Era preciso fazer o certo. Maëlle pensou que a revolução de Debur tinha sido o certo a se fazer, mas não levou a nada e a culpa foi dela.

Maëlle entrou no Esmeralda. Em todos esses anos, ela foi a única pessoa que Henrique deixou entrar e ela levava uma adaga escondida na saia.

— Finalmente uma pessoa amiga — disse Henrique no dia em que Maëlle foi ao Esmeralda matá-lo.

Ela usou a mesma saia do dia em que falou com Henrique pela primeira vez. Foi também o dia em que o capitão de Baynard viu Maëlle pela primeira vez.

— A primeira coisa que notei em você foi sua saia vermelha — disse o marido na última conversa. — Você entrou para falar ao rei em sua audiência usando uma saia vermelha e uma blusa branca.

Naquele dia, ela fez discurso ao rei pedindo uma biblioteca em Debur. No dia em que ela foi matar Henrique, Maëlle mal reconheceu o rei. Os músculos haviam atrofiado, a juba loira caiu quase toda. Henrique estava doente, a montanha virou um morrinho.

— Onde está Olivier? — perguntou Henrique. — Onde está meu capitão, que sabe ler por mim?

No passado, Maëlle se ofereceu para ensinar Henrique a ler, mas ele não quis.

— Tenho Olivier — ele disse. — E agora meu capitão também aprendeu a ler.

No dia em que Maëlle levou uma adaga para o Esmeralda, Henrique pediu por Olivier e pelo capitão que sabia ler.

— Onde eles estão? — ele perguntou. — Onde estão meus amigos?

— Olivier está em Tuen, ele não vem te socorrer. E meu marido não pode mais te servir, lembra? Perdeu as pernas na Batalha da Ponte.

Por quê...? — perguntou Henrique. — Por que ele foi fazer aquilo? Ele tinha tudo aqui.

— Um guerreiro que segue os preceitos de bushido não poderia se contentar em simplesmente estar seguro — disse Maëlle. — Ele precisa evoluir sempre, lutar pela própria honra, se não pela de seu rei.

— Meu capitão nada sabia de bushido até te conhecer, Maëlle. Ele nem sabia ler. Pediu que Olivier ensinasse ele a ler quando te viu aqui implorando verba para alojar livros.

— Não é verdade — disse Maëlle.

O capitão foi a primeira pessoa a entrar na biblioteca depois que ela finalmente abriu para o público. Maëlle o viu contra a luz, depois aos poucos mais nítido quando ele entrou na luminosidade já empoeirada da biblioteca recém-inaugurada.

Galhardo, ela pensou. Havia lido aquela palavra de manhã e ficou pensando se ainda era usada. Que tipo de pessoa se diria galharda? Aquele homem branco entre livros mal organizados em estantes cheirando a novas. Ele pegou um livro sobre bushido. Maëlle não sabia o que era aquilo e pediu a Fulion que trouxesse mais livros a respeito. Assim, quando o capitão galhardo voltou à biblioteca, ela tinha assunto para falar com ele.

— Ele me contou — disse Henrique — que pegou o primeiro livro da primeira estante, sem nem ver de que se tratava. A única coisa que ele queria era falar com a negra da saia vermelha que veio pedir dinheiro para livros. Você era tão entusiasmada com bushido, que ele leu todos os livros sobre o assunto para poder conversar com você.

O único motivo de Maëlle ler a respeito de bushido foi o capitão galhardo. Teria sido ela o motivo de ele ler sobre o assunto? Quer dizer que, se ele tivesse pego um livro sobre culinária, Neville talvez fosse um cozinheiro e, ao invés de encaixar sua vida nos moldes de bushido, ele filosofaria sobre vagens e grão de bico?

Maëlle tirou a adaga do bolso da saia, mas manteve ela escondida nas dobras da saia vermelha.

— Meu marido — ela disse.

— Ele me odeia — disse Henrique.

— As pernas dele.

— Olivier também me odeia. Eles não sabem o que é ser rei.

— Você quer que eu tenha pena de você? — a adaga tremeu na mão de Maëlle.

O rei estava sentado em frente a uma roseira sem flor. Não era época. No dia em que Maëlle pediu a biblioteca a Henrique, o Esmeralda estava cheio de rosas. Ele foi o único rei da Franária a financiar uma biblioteca. Graças à biblioteca, ela conheceu o marido. Henrique havia lhe dado uma vida.

— Você não vai conseguir me matar — ele disse. — Ninguém consegue porque sou rei. Você não percebe, ninguém percebe, nem mesmo Olivier. Nós não temos poder. Nada do que fazemos importa, estamos todos atolados em areia movediça. Vocês lutam contra ela e afundam sempre mais. Acho até que ela gosta quando lutam, que nem aquele gato do Leonard Acidentado. Deve ser divertido brincar com ratos.

Ela? — perguntou Maëlle. — Quem é ela?

— Não sei. Mas eu vejo claramente o que ela quer, talvez porque sou rei. Em troca de fazer o que ela quer, tenho flores.

— O que ela quer que você faça agora? — perguntou Maëlle.

— Nada — disse o rei. — Nada.

Se Maëlle tivesse matado Henrique naquela última conversa, Neville não estaria procurando a morte em forma de dragão. Maëlle cerrou os olhos com força, mas o sono não vinha. Por que ela não tinha matado Henrique? Por mais que ela vasculhasse a memória, não conseguia lembrar por que tinha ido embora sem cortar a garganta dele. Teve pena? Teve culpa? Henrique foi, afinal, amigo, padrinho, o homem que lhe deu tudo.

Um gemido a arrancou de suas memórias ela foi até o lado do companheiro de revolução e de escravidão. O Eslariano gritou por Thaila em pesadelos febris, se debatia até cair da cama. Esqueleto estava fraco em silêncio. Sentava-se, comia em bocados pequenos, bebia o quanto aguentasse. Forçava o corpo a ganhar forças no mesmo ritmo lento com que havia contornado a Boca da Guerra. Depois de sete dias, Esqueleto se sentiu forte o bastante para perseguir sua vingança.

— Ao menos espere o fim do inverno — implorou Jaqueline.

Ele partiu apesar dos protestos. A filha lhe deu uma mochila cheia de víveres. Maëlle viu a mulher mais jovem fechar a porta, cheia de dúvidas. Vinte anos sem pai, de repente ele ali, subnutrido, esquálido, vingança sem carne. Ainda querido? De repente, ele ido. Para sempre? Dor, alívio?

— Thaila — disse o Eslariano. Não delirava, nem sonhava. — Preciso salvá-la.

— Ao menos espere o fim do inverno — sussurrou Jaqueline.

— Não posso — disse o Eslariano.

— Você está fraco — disse Maëlle.

— Por favor, Maëlle, deixe-me ir a Tuen.

— Eu vou com você.

— Não. Volte a Debur, é possível que Vincent tenha resgatado Thaila antes de Olivier levá-la embora. Eu vou a Tuen, que é mais perto, devo aguentar a viagem sozinho. Em Debur ou Tuen, um de nós encontrará minha filha.

E o meu filho, onde estará? perguntou-se Maëlle.


Capítulo 44


Galhardo...