Por Regiane Reis
Enviado em: 17/10/2024
Parágrafo de contexto: O texto inédito "Pedaço de infância", que integra o acervo pessoal de escrita, retrata o gosto por histórias e pela escrita.
Eram azuis e brilhantes os sons de suas ligeiras pisadas na escadaria. A senhora desceu pássaro livre e, para mim, chegou feito claridade de sol em dia nublado. Ouvi a harmonia de sua voz, numa tonalidade alta como ela, e ri por dentro. Esse som era como tapete de alegria onde me deitei por longos anos. Acho que, para ela, eu não crescia, pois sempre falava comigo do mesmo jeito que se fala com menino que acabou de nascer. Sabem como é, né? Com aquele veludo na voz, imitando gorjeio de criança em colo de avó. A voz melodiosa, o timbre altissonante, sons retumbantes em meus ouvidos, desses que fazem recordar espetáculo principal de circo. Nunca liguei para essa tempestade sonora, apesar de, algumas vezes, atingir minha delicada audição, pois, como disse, a ternura que vestia suas palavras me tocava fundo, feito coreografia de igreja. Nós, os velhos, podemos não lembrar muito bem das coisas, mas da ternura nos recordamos sempre. É o que acalenta nossos melancólicos corações. Em que lugar da história estava? Ah, sim! Às vezes, ela dizia coisas que não faziam sentido para mim. Nunca soube direito o seu nome, sempre a chamei de mamãe, pois era assim que ela se referia a si mesma para mim. Entendi que iria banhar-me para não sei o quê. E o fez com capricho, com esmero até! Chegou ao absurdo de me emprestar seu shampoo e seu creme de cabelo. Creio que me queria perfumado. A mãe com frequência dizia que era preciso ser perfeito. Ela tinha essa necessidade, eu não... Sou velho e a velhice tem suas vantagens. Tudo é justificável em nós! Via e ouvia isso na fala da plateia: “Está caduquinho, coitadinho! O juízo já o deixou... Tenham dó!”. Esse era um diálogo que, como trem chegando à estação final, me conduzia para o palco, aquele fim de sul. Bah! Vocês não entenderam? É a metáfora da morte – a barca do rio... Pensando nisso, rio! O triste riso dos passageiros da última estação.
Voltando ao banho, a gélida água contrastava com o ardor do tempo. Nós, idosos, sentimos muito frio. Ela acudiu, sobressaltada pelo tremor de meu corpo. A macia toalha me aqueceu como melodia de pássaro em dia de primavera. Depois disso, meu “anjo loiro” veio inspecionar o serviço. Devo dizer que tenho um anjo... Jamais atinei com o que significava “anjo loiro”, mas como a mãe chamava constantemente a pequenina desse jeito, aquiesci por entender que deve de ser algo bonito. Ia esquecendo de dizer que meu anjo era o próprio espelho da beleza. Este deve ser assim: menina com tranças e olhos perfumados de estrelas. A criança correndo era a infância que dançava em casa e eu, ao vê-la assim, gemia de saudade da que tive e se foi de braços dados com o tempo. Aff! Esqueci-me de novo da história! Perdoem-me os lapsos de memória! Velhos divagam e repetem as coisas com frequência, mas suplico, nesse fim de história, tenham pena de mim! Rio de novo, por dentro... Rio sempre, apesar da dor. Repito, tenham paciência, pois no fim da linha, o trem é lento... vagaroso... já vai parar. E isso resulta na demora para atinar com as ideias, para articular as palavras... É normal, enfim! O tempo, esse velho ranzinza, é impiedoso! Ele consome uma parte de nossas lembranças...
(silêncio).
Mas chega de divagações!!! Então, a criança veio com aquela coisa quente que nos seca, espantando o frio e que chamam de “secador”. Com afeto, as duas me cuidaram, apesar de minha já instaurada impaciência, afobado para me deitar. Pernas fraquejando, sabem? Não. Vocês não sabem! São jovens demais para saber. Eu é que sei e faz tempo que sei! Andava, ultimamente, com um peso preso às pernas, com muito sono e com a respiração descompassada. O piso andava esquisito! Escorreguento feito chão de seriguela.
Volta e meia ele se movia e, por causa de sua irreverência, eu caia... Não entendia o que ele pretendia com aquilo. Outra coisa: havia alguma coisa que era crescente, grande, sufocante e que chiava dentro do meu peito. Pobre de mim! Fugi de novo do causo! De volta à cena: depois de seco, ela me acomodou no cobertor macio e, assim, adormeci flutuando na lavanda do cobertor. A noite anunciou sua chegada com um prato de caldo de fubá com carne moída posto bem próximo a mim. Nem sequer olhei para ele! Ela foi, voltou e nada! Eu estava sem forças! De repente, ainda de cerrados olhos, senti o gosto morno. Delicada, ela insitia em me alimentar. Conseguiu! Comi tudo feito criança mimada que gosta de ser acalentada. Mas, aí de mim, que não sou mais criança! E, meu corpo franzino marcado por sulcos profundos, denuncia os anos que me pesam. Fiquei ali pensando sobre isso, de pálpebras serradas. Débil, dormi outra vez, sob o olhar da senhora. Estava cansado demais para questionar qualquer coisa. Além do mais, nessa fase da vida, as dúvidas se vão quase todas. Temos menos medo e vemos as coisas nuas, pelo lado de dentro. A chegada é mais nítida do que a partida! A mãe sempre dizia a meu irmão mais velho que não importava o começo, mas, sim, o final das coisas. E, que, é bom terminarmos bem. Antes, não atinava com a dimensão do conselho, mas, agora, entendo. Não há segunda chance de iniciarmos a sinfonia de nossas vidas, pois a música não se repetirá. É certo que pausas compõem a música, mas a melodia do viver é única. É impossível compor de novo na mesma partitura. A ternura chegará cedinho com uma tigela de leite morno, mas não me achará mais. Partirei agora, ao amanhecer, sob a primeira sinfonia da alvorada. Pressentindo o final, inevitavelmente lembrei-me da criança para quem fui doado longínquos quinze anos atrás. Ele era um menino, agora é um homem e, eu, sou seu último pedaço de infância.
Antes de descer na estação, senti uma repentina tristeza por pensar no pesar que a notícia de minha partida causaria nele. Fomos verdadeiros amigos. Amigos de infância não se esquecem nunca. Pena que nós, pinschers, temos uma vida tão breve. Continuei deitado, mas o mal estar evoluiu para o som cada vez mais débil de meu pequeno coração. Quis ganir... saiu apenas o som imitando miado de gato. Que horror, meu Deus! As coisas ao meu redor começaram a ficar turvas, um zumbido cada vez mais crescente e ensurdecer se avolumou em mim. Sinto agora algo estourando por dentro. Gemo. À dor aguda, segue à calmaria da chegada. Avisto a estação final, o trem apita, para
e
eu
desço...