Por F. R. Baumgardt
Enviado em: 14/06/2025
Parágrafo de contexto: Em "No Velório do Corpo Mutilado", é composto um réquiem poético em cinco atos fúnebres, onde o gótico se entrelaça ao lamento ecológico e à angústia da perda da linguagem e do sentido. O poema acompanha o cortejo de um corpo dilacerado, não apenas um homem, mas o próprio pacto ancestral entre a humanidade e a natureza. A queda desse corpo é a queda de florestas, de espécies, de palavras que descrevem o mundo. Entre criptas de memória, alfabetizações tardias e liturgias que suplicam por despertar, o texto ergue um altar de versos contra o esquecimento e o colapso. Uma elegia sombria que convida à reflexão: quem velamos, afinal? O corpo mutilado ou nós mesmos?
O poema em português é seguido por uma tradução para o inglês, de minha própria autoria.
No Velório do Corpo
(Poema em cinco actos fúnebres)
I. O Cortejo
A terra rangeu seus ossos na manhã da queda.
Corpo Mutilado. Ave, Homem, Eco.
Tombou entre raízes que já não sonham.
O céu, uma abóbada de chumbo,
pingava lágrimas sem nome.
Tudo morreu ali um pouco.
Ou muito.
Talvez o todo.
II. A Morte Metafísica
Mas não foi só carne que se perdeu.
Foi linguagem.
Foi o verbo silenciado antes da canção.
A última sílaba de um pacto antigo
foi engolida por incêndios
que ardem em nome do lucro.
Mutilado, então, não morre sozinho:
com ele vão os dicionários das árvores,
os vocábulos selvagens dos ventos,
o alfabeto secreto da fauna extinta.
III. A Cripta da Memória
No túmulo, não flores: documentos.
Relatórios frios, promessas estéreis,
mentiras plastificadas.
A lápide diz: “Símbolo da Perseverança”,
mas o silêncio sabe:
ele foi mártir, não metáfora.
E ainda assim, teimoso como os justos,
Corpo Mutilado renasce onde menos esperam:
nos olhos de uma criança que aprende a ler
o nome das coisas antes que desapareçam.
IV. A Alfabetização da Terra
Porque a terra só será salva
quando soubemos soletrar seus gritos,
quando lermos em suas veias abertas
a urgência de cura.
A morte do Mutilado é um livro aberto
sangra pássaros, bichos,
e o último suspiro das matas.
A cada letra ensinada, uma semente.
A cada leitura crítica, um broto.
A cada verso lembrado, um retorno.
V. O Epílogo: Liturgia dos Vivos
Então, que se erga um altar, não de pedra,
mas de palavras vivas.
Que sua morte, física e metafísica,
não seja lida em vão.
Pois só pela escrita
essa floresta de símbolos
podemos afastar a lâmina
que empunhamos contra nós mesmos.
Descanse em paz, Mutilado.
Ou melhor
faça-nos despertar.
At the Wake of the Body
( Poem in Five Funereal Acts)
I. The Procession
The earth ground its bones on the morning of the fall.
Mutilated Body. Bird, Man, Echo
fell among roots that no longer dream.
The sky, a leaden vault,
dripped nameless tears.
Everything died there a little.
Or much.
Perhaps the whole.
II. The Metaphysical Death
But it was not only flesh that was lost.
It was language.
The verb silenced before the song.
The last syllable of an ancient pact
was swallowed by fires
that burn in the name of profit.
Mutilated, then, he does not die alone:
with him go the dictionaries of trees,
the wild vocabularies of the winds,
the secret alphabet of extinct fauna.
III. The Crypt of Memory
On the tomb, no flowers: documents.
Cold reports, sterile promises,
plasticized lies.
The tombstone reads: “Symbol of Perseverance,”
but silence knows:
he was a martyr, not a metaphor.
And still, stubborn like the righteous,
Mutilated Body is reborn where least expected:
in the eyes of a child learning to read
the names of things before they disappear.
IV. The Earth’s Literacy
Because the earth will only be saved
when we learn to spell its screams,
when we read in its open veins
the urgency of healing.
The death of the Mutilated is an open book
bleeding birds, beasts,
and the last breath of the forests.
With every letter taught, a seed.
With every critical reading, a sprout.
With every remembered verse, a return.
V. The Epilogue: Liturgy of the Living
So, let an altar rise, not of stone,
but of living words.
May his death, physical and metaphysical,
not be read in vain.
For only through writing
this forest of symbols
can we keep away the blade
we wield against ourselves.
Rest in peace, Mutilated.
Or better yet
awaken us.