Por Caveira de Andrade
Enviado em: 20/06/2023
Parágrafo de contexto: Cruz foi um dos meus melhores trabalhos (não que eles sejam muito bons). Escrevi pensando no quão cruel o capitalismo pode ser: você se saboreia com um delicioso algodão doce enquanto alguém teve que passar o dia inteiro carregando uma tora de madeira no lombo debaixo do Sol o dia inteiro. Naquela época, ainda achava que podia deixar o mundo melhor com meus textos ou algo do tipo, mas o tempo me mostrou que nós continuamos comprando o algodão doce e vamos continuar comprando pra sempre sem se importar com quem o vende. Não porque somos necessariamente pessoas ruins, mas simplesmente porque é assim que as coisas funcionam. Diretamente do Inferno, Caveira de Andrade
Samanta acordou bem cedo, lá pelas cinco. Escovou os dentes, passou um café, passou manteiga no pão, colocou a piteira de madeira com os algodões doces sobre o ombro direito e saiu de casa correndo pra não perder o primeiro ônibus. Pegava dois todos os dias: o primeiro deles ia para o terminal, o segundo para a Praça Ary Coelho, onde passava o dia inteiro vendendo algodão doce. Quando deu meio dia, parou um instantezinho para almoçar um salgado qualquer e logo voltou à labuta. Quando deu sete horas, arrumou as coisas e saiu correndo para não perder o ônibus de volta pra casa, pegava dois todos os dias. Chegou em casa oito e meia. Foi dormir às dez porque ficou até tarde preparando os algodões doces do dia seguinte.
Samanta acordou bem cedo, lá pelas cinco. Escovou os dentes, passou um café, passou manteiga no pão e colocou a piteira de madeira com os algodões doces sobre o ombro esquerdo, o direito estava dolorido do dia anterior, e saiu de casa correndo pra não perder o primeiro ônibus. Pegava dois todos os dias: o primeiro deles ia para o terminal, o segundo para a Praça Ary Coelho, onde passava o dia inteiro vendendo algodão doce. Quando deu meio dia, parou um instantezinho para almoçar um salgado qualquer e logo voltou à labuta. Quando deu sete horas, arrumou as coisas e saiu correndo para não perder o ônibus de volta pra casa, pegava dois todos os dias. Chegou em casa oito e meia. Foi dormir às dez porque ficou até tarde preparando os algodões doces do dia seguinte.
Samanta acordou bem cedo, lá pelas cinco. Escovou os dentes, passou um café, tomou um analgésico, passou manteiga no pão, colocou a piteira de madeira com os algodões doces sobre o ombro esquerdo, o direito ainda estava dolorido, e saiu de casa correndo pra não perder o primeiro ônibus. Pegava dois todos os dias: o primeiro deles ia para o terminal, o segundo para a Praça Ary Coelho, onde passava o dia inteiro vendendo algodão doce. Quando deu meio dia, parou um instantezinho para tomar outro analgésico e almoçar um salgado qualquer. Quando deu sete horas, arrumou as coisas e saiu correndo para não perder o ônibus de volta pra casa, pegava dois todos os dias. No caminho, um senhorzinho bem idoso subiu no ônibus e ela deu lugar pra ele sentar. Não tinha onde colocar a piteira, então ela seguiu o trajeto inteiro carregando aquela tora de madeira pesada nos ombros. Chegou em casa oito e meia. Foi dormir às dez e meia porque seus braços doíam muito e ela ficou até tarde preparando os algodões doces do dia seguinte.
Samanta acordou bem cedo, lá pelas cinco. Escovou os dentes, passou um café, tomou um analgésico, passou manteiga no pão, colocou a piteira com os algodões doces sobre o ombro direito ainda dolorido, o esquerdo já nem se mexia, e saiu de casa correndo pra não perder o primeiro ônibus. Perdeu o primeiro ônibus. Esperou o próximo ônibus com a piteira nos ombros. O próximo ônibus estava lotado, teve que esperar o seguinte, chegando mais tarde do que de costume à Praça Ary Coelho, onde passava o dia inteiro vendendo algodão doce. Quando deu meio dia, sentiu fome. Não podia parar, tinha que recuperar o atraso. Quando deu oito horas procurou seus analgésicos e descobriu que tinham acabado. Chegou em casa dez horas. Foi dormir meia noite porque ficou até tarde preparando os algodões doces do dia seguinte.
Samanta acordou bem cedo, lá pelas cinco. Ficou um tempo deitada olhando pro teto lembrando que teria que carregar aquela maldita tora de madeira pesada nos ombros até o dia de sua morte. Escovou os dentes, passou um café, passou manteiga no pão, colocou a piteira com os algodões doces sobre o ombro direito, tentou ignorar a dor e saiu de casa correndo pra não perder o primeiro ônibus. Pegava dois todos os dias: o primeiro deles ia para o terminal, o segundo para a Praça Ary Coelho, onde passava o dia inteiro vendendo algodão doce. Quando deu meio dia, parou um instantezinho para comprar mais analgésicos e almoçar um salgado qualquer. Quando deu sete horas, arrumou as coisas e saiu correndo para não perder o ônibus de volta pra casa, pegava dois todos os dias. Chegou em casa oito e meia. Houve uma queda de luz no bairro às nove e meia e ela ainda não tinha terminado de fazer os algodões doces para o dia seguinte. Esperou a luz voltar até às onze, mas não aconteceu nada. Foi dormir meia noite porque ficou uma hora inteira chorando.
Samanta morreu muitos anos depois numa manhã de segunda-feira. Causa natural: dormiu e não acordou mais. Naquela manhã, ela não acordou bem cedo, lá pelas cinco, escovou os dentes, passou um café, passou manteiga no pão, colocou a piteira sobre o ombro menos dolorido pelo efeito dos analgésicos e saiu correndo para não perder o primeiro ônibus. Pegava dois todos os dias: o primeiro deles ia para o terminal, o segundo para a Praça Ary Coelho, onde passava o dia inteiro vendendo algodão doce. Quando deu meio dia, não parou um instantezinho para almoçar um salgado qualquer. Quando deu sete horas, não arrumou as coisas e saiu correndo para não perder o ônibus de volta pra casa, pegava dois todos os dias. Não chegou em casa oito e meia e não foi dormir às dez porque ficou até tarde preparando os algodões doces do dia seguinte. Não: Samanta nasceu ninguém e morreu vendedora de algodão doce, agora ela pode finalmente descansar.