Por Matheus Lima
Enviado em: 22/11/2023
Parágrafo de contexto: Um talentoso estudante de artes cênicas decide mergulhar profundamente na vida noturna de sua cidade ao aceitar um emprego em um quiosque situado em uma região conhecida por sua periculosidade. À medida que ele se aventura nesse ambiente desafiador, sua perspectiva começa a se transformar, forçando-o a refletir profundamente sobre a sociedade em que vive e como essa realidade se materializa em suas obras.
“O que os livros escondem, as palavras ditas libertam.” (Conceição Evaristo)
A primeira vez que a vi foi cheirando uma carreira de cocaína. Estava sentada no chão de um jeito desengonçado, como se não tivesse controle do corpo; braços ralados apoiados sobre o banco de pedra da praça e uma latinha de cerveja amassada servindo de suporte para o pó branco. Seu vestido era amarelo, pontilhado com flores coloridas, fato que destacava sua pele escura.
Tentei desviar o olhar da situação, porém nós nos percebemos. Penso que é parte disso que nos une: o medo, a filáucia, a fúria e talvez algo mais, acredito que o que nos faz entender que não estamos sós, apesar de quererem que acreditemos nisso. O vento soprou seus cachos e ela sorriu, olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Um quadro a óleo chamado “Nascida Para Morrer”. Eu, parado e sem expressão alguma, a percebi como semelhante, pois eu era “Erro”, desde que me entendo por gente. E juntos éramos pessoas que não deveriam existir. Não deveriam dar certo.
Nas aulas de modelagem, nunca consegui fazer um paleteado perfeito com a cerâmica. Pensava que era um material que nunca se encaixava nas minhas mãos, apesar de entender em síntese como a estrutura deveria ser. A mesma coisa com aquela situação. Por mais que fossemos semelhantes de algum modo e eu compreendesse profundamente o fato, de alguma forma entendia que deveria me afastar dela caso quisesse manter tudo que lutei para construir em seu devido lugar. Não que acreditasse na ideia de meritocracia, mas intrinsecamente sabia que o mundo não nos queria juntos. Então, quando ela me pediu moedas, simplesmente disse que não tinha. Quando implorou, se jogando em minha direção, com as pernas fracas demais para aguentar o próprio peso, apenas dei alguns passos para trás a deixando tombar no asfalto. E, quando se arrastou em minha direção com nariz salpicado de branco, o olhar perdido e o braço estendido em súplica, “Impelida a Degradação”, eu rapidamente dei as costas e fui embora, pois não entendia o porquê aquela aquarela me doía tanto. Porque abandoná-la me doía tanto.
Fazia poucas semanas que havia aceitado o emprego no quiosque da avenida. As pessoas sempre disseram que a região era perigosa, algo que nunca reparará até começar a ter pesadelos com o lugar. Pintar era minha fuga dos sonhos tenebrosos, então, qual não foi minha surpresa ao juntar os quadros que havia feito nas últimas semanas e perceber que o local estava em todos eles, consumindo todo meu ser. Minhas pinturas retratavam uma violência que jamais pensei em ver: corpos brigando por espaço entre os carros e si mesmos, mortes por esfaqueamento, roubos, fome, desespero. Reparei que nenhuma das imagens retratava gênero, pois ali os limites das bases sociais haviam sido deixados de lado por vícios muito mais profundos. Eram apenas corpos uns sobre os outros buscando a felicidade momentânea e ilusória, pinturas fotorrealistas que expressavam a dor e o abandono, os “Desumanizados pela Sociedade”.
Por muitas vezes me perguntava o antes daquelas pessoas, e dos novos que constantemente surgiam. Imaginava engenheiros, padeiros, professores, e até filhinhos de papai, consumidos pela desilusão com o mundo. Para mim, apesar das impossibilidades, ela era modelo. Seu rosto angular perfeito de perfil, os lábios carnudos de um tom marrom chocolate, a pele lisa como seda e um rosto marcado pela provocação; pose de alguém que nunca deixou de lutar, de manter a cabeça erguida, mesmo após ser consumida pelo mundo. Quando a desenhava, tentava afastá-la da realidade na qual vivia, mas de algum modo a profundidade dos seus olhos era transportada para arte, marcada como um palimpsesto que não importa o quanto se lixe sempre deixa traços. Demorei algum tempo para entender que a dor não pode ser modificada.
Eu era garçom, quando não era estudante de artes cênicas, servindo mesas de pessoas que fingiam ser iguais a mim tanto quanto eu fingia ser igual a elas. Percebia os olhares, pois, para eles, alguém como eu sequer devia tocar seus talheres. Exigiam que eu fosse descartado tanto quanto ela, invisível por detrás das jarras de suco e da comida cara. Vinham ao fim da noite com roupas pesadas para se proteger do frio, julgando com superioridade a marginalidade no entorno, que se entregava ao vício em álcool, talvez a única coisa desse a falsa impressão de proteção contra a madrugada de temperatura gelida. Amanhã era de saber geral que algum dos desprovidos apareceria morto em um acostamento por hipotermia. Se tornaria a manchete de um jornal, que eles leriam e diriam “Coitado. Quanto sofrimento”. Mas agora, bundas coladas nas cadeiras, queixos erguidos, desdém, cartões de crédito na mão, joias mais caras que uma cesta de mercado. Um retrato da “Hipocrisia”, como uma obra realista da segunda metade do século XIX.
Olhar essa cena ao longo das noites me fez pensar que por muitas vezes ignoramos as coisas propositalmente, fingindo não perceber que existem pessoas além da nossa realidade. É mais fácil culpá-las, culpar os outros por não tomar atitude ou até mesmo se eximir da responsabilidade, porém é inevitável não saber que estamos mentindo para nós mesmos. Basta olhar para o lado. Fingir não é o mesmo que apagar a realidade, ela ainda continuará existindo.
Penso que percebi isso quando descer do ônibus às sete da noite se tornou um costume. Sempre ignorei que aquela região era um local de descarte, até perceber que poderia ser eu do outro lado. Quando a minha mãe me expulsou de casa aos quinze, ao descobrir que jamais beijaria alguém do sexo oposto. Ou quando o meu primeiro chefe me fez cortar o cabelo para conseguir a vaga, dizendo que meu crespo era sujo demais para aquele ambiente. Até mesmo na universidade, que exigia que eu me adequasse a suas diretrizes se por acaso não desejasse me tornar parte da estatística de pobreza. Então ali eu estava, aguentando mais do que meu corpo poderia suprir diariamente. Me dividindo entre plantões e trabalhando por horas excessivas, me entregando e alienando a sociedade que desejava me consumir. Chorando na maior parte das noites. Me sentando com os pseudointelectuais e debatendo a existência do meu povo, como se algum dia eles fossem realmente entender a real miséria de tudo.
Foi assim que percebi que existe uma grande diferença entre mim e ela, não coragens diferentes ou covardias destoantes. No entanto, jeitos opostos e possíveis de se lidar com a crueldade do mundo. Penso que sou aquele que por muita das vezes precisa fingir estar domado para utilizar a arte como uma expressão que descortina a hipocrisia do lugar em que somos obrigados a nascer e conviver. Se adequar é uma tática de sobrevivência e existem pessoas, como ela, que jamais dariam o prazer da adequação ao mundo. Sua existência era a maior prova de luta e rebeldia que poderia fornecer, embora soubesse que isso a mataria.
Não sei em que momento comecei a pesquisar sobre o assemblage ou quando foi a primeira vez que ouvi falar sobre Jean Dubuffet, mas percebi que a ideia de tridimensionalidade do estilo de arte de alguma forma se encaixava em minhas obras, ao notar que os quadros da vida noturna que havia pintado de certo modo se completavam. A violência, o desespero, o vício e ela em cada lugar, como se fosse feita para se destacar na noite, embora não fosse essa a intenção.
Me recordava de quando havia, por fim, conseguido terminar um paleteado de cerâmica para uma aula da universidade, depois de quase reprovar na matéria. Uma linda deusa de olhos marcantes imitando os passos do samba desengonçadamente. Agora estava ali, nos fundos do quartinho que chamava de estúdio, com seus um metro e trinta, à frente de uma aquarela de um grupo de homens brigando por uma pedra de crack, como se de certa forma completasse a imagem ao debochar deles.
A ideia me surgiu em uma madrugada, quando ela veio ao quiosque tentando sambar entre as mesas, algo que claramente não sabia fazer, mas que despertava a atenção das pessoas que riam, mesmo sem querer perceber a estranha invadindo o espaço que era indiscutivelmente deles. Naquele dia, Pietro não estava, então sem vassouradas e sem correria pela rua. Ela somente conversava com os clientes, despejando sua história como quem pede socorro há muito tempo. Dizia de maneira desconjuntada, rápida o suficiente para não ser novamente ignorada, do pai que abusou dela quando tinha quatro anos e da forma como lhe vendia para os amigos quando fez catorze, a mesma idade que impôs que era ‘ela’. De como apanhou e foi abusada até o coma depois disso, o genitor solto três dias depois, feliz para se casar com sua segunda esposa, que provavelmente pereceria pelas surras e pela miséria que nem sua mãe. Os colegas abusadores dele sequer procurados pela polícia. Ela, no entanto, fora enviada para uma instituição de menores infratores, pois nenhum lugar a queria. Não era criança, nem jovem, nem nada. “Dejeto dos Dejetos”, arte nova de linhas tortas que era seu relato fúnebre. No local conheceu as drogas e se entendeu como diferente, por não ser cuidada como os demais. Na época não havia um crime sequer em sua ficha, mas sentia como se houvesse tirado a vida de alguém; pelo menos na forma como a tratavam. Dividindo a cela com os meninos descobriu que o real propósito do seu corpo era existir para satisfazer alguém, que não a si mesma. Ou tomava o controle ou novamente seria abusada, esse era o preço da feminilidade. Nisto, seu corpo se tornou sua forma de negócios, os traumas parte das ruínas que se perdiam em uma pedra de crack, que trazia calma, felicidade, euforia as noites mais dolorosas. Então um carro caro buzinava do outro lado da rua e ela partia correndo daquele jeito destrambelhado, jeito de um corpo que está morrendo. Da sujeira das ruas voltava de banho tomado e roupas limpas, ainda assim desgastadas. Perdida e drogada, ficava em frente ao quiosque, pois podia não se recordar de nada, mas sabia que eu estava lá e que de alguma forma estávamos ligados por algo além de nós mesmos. Não era nosso propósito.
— Me filmou... — balbuciava, olhando para um lugar distante. Estava fora da realidade. — Falou que me amam lá... — Vagava para mais perto de mim. — Ele ganha dinheiro comigo, sabia? Disse que tem três filhos...
E então saia rodopiando pelo quiosque, esbarrando entre as mesas como uma fúnebre bailarina com o rosto travado pela quantidade de drogas. Do mesmo jeito que começava a dança, parava, perdida na própria mente, talvez em um momento de felicidade. Permanecia por horas lá, movendo-se a passos lentos como se o corpo fosse feito de argila, “Indecifrável, Alegre e Quebradiça”. Eu sequer precisava perguntar o que havia acontecido, bastava abrir uma página de vídeos pornô no celular e ver que pessoas como ela estavam sempre no topo por ali. Provavelmente encontraria seu vídeo se apossando de um homem com aliança de ouro no anelar, se buscasse profundamente não me surpreenderia em ver o mesmo “macho” do título nas redes sociais em fotos com a esposa e os filhos, viagens caras, restaurantes luxuosos, idas à igreja e postagens que negavam vidas como a minha e a dela, pois era parte da engrenagem que movia tudo: financiar a desgraça e lucrar com ela. Não importava quem morresse, contando que não fosse você ou alguém que lhe importe, se é que alguém importa quando o negócio é dinheiro. A existência de um capacho é pré-requisito para o lucro.
As piores noites eram quando sua abstinência a acompanhava, e ela corria desesperada em meio as pessoas e os carros, dividida entre moedas para comprar a realidade ou um pacote de biscoito para não se entregar à fome. No alto da madrugada a dor e o desespero que escondia irrompiam de sua garganta de forma barroca, eclesiástica como demônios sendo mortos por mãos santas. “Mãaaaaae!”, gritava. E avançava nos transeuntes, tentando puxar qualquer coisa que tinham nos bolsos ou simplesmente implorar, implorar para que dessem algum jeito para que esquecesse que sua vida era assim, injusta demais. Algumas vezes invadia o quiosque e começava a quebrar as coisas, tentando distanciar nossa atenção antes de roubar algum lanche ou qualquer objeto que pudesse trocar por drogas. Outras noites, caía de joelhos, sem forças no asfalto frio, lágrimas cortando a face milimetricamente perfeita e jovial. E, certa vez, um jovem passava distraído na rua com o celular em mãos e rápida como o bote de uma serpente, ela o furtou e saiu em disparada, cortando caminho por entre a obra inacabada e dando início ao soneto de “Pega Ladrão. Mata Ladrão”. Na fuga caiu, se ralou e até mesmo perdeu um pedaço da unha. No entanto, para ela tudo valeu apena quando vagou até mim horas depois do caos, embriagada pela fantasia do mundo no qual não sentia dor.
Meu chefe, Pietro, logo chamou a polícia quando ela pisou no ambiente, mas não antes de deixar com que fosse agredida com chutes e pontapés. Queriam respostas, mas sequer a boca ela conseguia abrir tamanho distanciamento da realidade. Um grupo de pessoas logo se reuniu e o tom das agressões mudou quando alguém gritou ao fundo: “Pessoas como você deveriam morrer!”, e eu logo me perguntei do que falavam quando a multidão concordou. Ela era muitas coisas, sendo ladra a menor delas. Logo mais e mais pessoas se davam o direito de algoz da sentença e partiam para o círculo desumano de linchamento. Os policiais chegaram e, ao verem quem era, logo se deram ao luxo de seguir os procedimentos da forma mais calma possível. Saindo do carro só depois de uma senhora suplicar “...pelo amor de Deus...”.
Mas o “Ciclo” da cidade de paredes cinza, pintadas com spray colorido barato, precisava girar. E todo mundo sabia que o melhor jeito para isso nunca estaria em lhe dar uma oportunidade de emprego ou reabilitá-la, sim soltando-a para que todas as engrenagens se encaixassem e girassem em favor de alguns. A pornografia necessitava de dinheiro, os políticos precisavam ter alguém pra culpar, os templos um inimigo para subjugar e a comunidade um corpo para ser mártir. Então, não foi surpresa quando ela retornou dois dias depois.
— Eles vão matar a gente — me contou certo dia, enquanto eu limpava as mesas ao fim do expediente. — Todos nós, não só eu e você. — Tornou a repetir.
Minhas mãos pararam o movimento repetitivo, olhei por sobre os ombros e admiti: — Eu sei.
— Seus olhos são ligeiros, nego. Tu é malandro. — Riu da própria constatação.
— O que quis dizer? — Perguntei, realmente curioso com o que dizia com aquilo.
— Que você finge ser que nem esses filhos da puta, mas é quase diferente. — Grifou o quase.
— Quase? — A questionei, intrigado não só pelo fato de ter percebido algo em mim que a maioria sequer nota, mas por aquele quase.
— Um dia tu vai lembrar de mim e vai saber o porquê. Se ilude não. — Fez um sinal de dinheiro com a mão e apontou a cabeça para Pietro, que nos observava sobre o balcão. — Nem todo mundo tá no corre. Te liga e abre o olho se não eles te afundam também
E então Pietro veio com uma vassoura em mãos e ela fugiu para longe, vestido amarelo dançando ao vento, abstrata como uma “Memória de Capitulina” de tão cínico o sorriso.
— Será que algum dia isso some, Hugo? — Questionou Pietro.
— Acho que sim. — Respondi, me adequando à resposta que ele esperava que eu desse, embora soubesse que alguém como ela é de certa forma eterna, mesmo após o fim.
Foi no fim de um expediente em setembro que por detrás das portas rollmatic uma luz surgiu. Gritos de dor se chocaram contra os meus tímpanos na mesma intensidade que algo pesado bateu contra o metal. Pietro se armou com um bastão, logo rolando as portas para cima. Do outro lado, girando no chão, vi um corpo sendo consumido pelas chamas. O cheiro específico de cauterização tomou meu olfato antes mesmo que tivesse algum tipo de reação. Quando voltei a mim, puxei uma das toalhas que cobria a mesa, sem me importar que o jarro de flores se espatifasse no chão. Fui de encontro a pessoa e cobri seu corpo, que era uma mistura de tecido e carne, como uma massa gosmenta. Foi então que notei que era ela, que já não possuia mais nada de si mesma. Um carro, daqueles que não aparece em propaganda de televisão, acelerou do outro lado da rua.
— Que merda! Isso vai fuder com tudo. —Reclamava Pietro, enquanto ela agonizava em meus braços. Libertando suas últimas lágrimas de dor e alçando voo rumo a um lugar que não a machucasse tanto.
Com o bastão em uma mão e o celular na outra ligou para o marido antes mesmo de ligar para o socorro. Só então reparei que os seus olhos azuis a julgavam mesmo depois de morta, como se fosse um bicho atropelado na estrada ou um pardal que bateu no poste. Um nada para ele.
Minutos depois a polícia chegou, já sabendo que se tratava de uma travesti. “Mais uma”, ouviu o policial dizer, como se cansado de tanta ocorrência igual. Não a olhou, foi direta até Pietro, confortá-lo. “Ninguém viu. Quatro da manhã é complicado. A imprensa dificilmente vai ficar sabendo. Fica tranquilo”. Dez nota de cem deslizaram para mão do policial. Por fim foi até mim, ainda de sentado no chão com a cabeça dela sobre o meu colo. Abrir a boca para lhe contar sobre o carro, sobre os jovens que vi nele e como seguiram um caminho em direção a parte mais rica da cidade, mas fui interrompido por sua mão que se ergueu no ar.
— Gente assim morre todo dia, toda hora. Não tem família, não tem ninguém que se importe. Você também não deveria. Isso aqui — apontou para ela, sem vida em meus braços — não vai entrar nem nas estatísticas. — Ao perceber meu olhar plácido, completou: — Escuta, não adianta buscar justiça, isso não existe. Gente grande comanda, gente pequena obedece. E se você for esperto, vai se colocar no seu lugar.
Saiu andando e com um sinal dispensou a ambulância. Pra que gastar insumos tentando reviver alguém como ela? Peso morto é peso morto e tem sempre uma igual por aí. Sem nome, sem identidade, sem ninguém.
O rabecão estacionou e seu corpo foi lançado lá dentro como um pedaço de carne, um boi prestes a ser desossado no açougue. Eu ainda estava no chão, com os olhos cheios de água em ver a realidade se escorrer em minha frente. Não que não soubesse que tamanha violência acontecia com frequência ou o quão ruim eram as pessoas, porém atônito de perceber que o mundo era cruel e fazia questão de deixar isso claro.
— Pelo menos isso não vai me incomodar de novo. — Disse Pietro ao abraçar seu marido minutos depois.
Quis gritar que ela tinha um nome, mas as artes que remontavam a vida urbana e a sequência de pinturas, esculturas de barro e argila e as string arts que havia feito dela nos últimos meses me atingiram em cheio. Todos intitulados de “Deusa da noite”, se amalgamando uns sobre os outros para dar forma ao pitoresco assemblage. Talvez a inspiração mais linda de um artista ganhando vida. Porém, sem materialidade, sem identidade, sem nome. Apenas minha visão sobre ela. Foi assim que percebi que nunca perguntei quem era, pois a todo momento estava tentando fugir da colisão dos nossos mundos, das nossas formas de enfrentamento. Havia escolhido me adequar e não podia deixar, mesmo que intrinsecamente, que percebessem que queria um lugar melhor não só para mim, mas para nós dois. E, neste processo, esqueci que o silêncio também é uma forma cruel de se dizimar. Então, percebi que a retratar falava mais ao meu respeito que sobre ela, que de certa forma nunca existiria para o mundo. Talvez eu ganhasse um prêmio ou dois pela minha Musa inspiradora, mas ela estaria morta e outras como ela continuariam morrendo. Então, eu sempre seria quase, por nunca ter lhe dado um pincel para pintar, por nunca ter guiado suas mãos em uma máquina para moldar argila, ou nunca sequer pensar em conversar com ela
E então a compreensão do porque era tão igual a eles me atingiu em cheio: não sabia quem ela era e nunca fiz questão de saber. Ela não tinha um nome para ser lembrado. Me afastei como aqueles que sempre critiquei, me adequei como todos que por muitas vezes odiei e segui rumo ao que acreditava, deixando tudo e todos que não se encaixavam para trás. Sua morte era uma consequência e extensão de mim, portanto uma culpa que teria que carregar. Eu era um quase por nunca ter tentado mudar um mundo além do meu.
— Me lembre de descontar o vaso de flores e a toalha de mesa do salário do Hugo. Ele não precisava se envolver nisso. Bom que assim aprende. — Falou Pietro para um assistente da cozinha.