Por Nuna Luíza
Enviado em: 13/04/2025
Parágrafo de contexto: Esse apólogo surgiu de uma atividade de Escrita Criativa, uma disciplina optativa do curso de Audiovisual da UFMS, ministrada pelo professor Ramiro Giroldo.
Sobre a farta mesa posta do café da manhã, o mordomo servia a madame. O bule se aproximava da xícara de porcelana que estava sobre o pires e, enquanto despejava o café, como todos os dias, ele a cumprimentou:
- Bom dia, dona xícara!
- Bom dia, seu bule. - ela respondeu.
Logo em seguida, o adoçante se aproximava, já estava quase no fim, talvez fosse algumas de suas últimas doces gotas. Então ele a cumprimentou e ela fez o mesmo, mas com uma certa frieza, como se ele fosse inferior a ela.
Por fim, a madame pegou a colherzinha e a mexeu, misturando o adoçante no amargo café. Logo, bateu com ela sobre a borda da sensível xícara, que ao ser incomodada, reclamou:
- Ei! Será que dá pra você parar? Todo dia é a mesma coisa!
- Sinto muito, não foi proposital.
- Ah, tanto faz! Você e seu bando de talheres…
- Desculpe-me, mas, não entendi o problema.
- Agora se faz desentendido?
- Não, dona xícara, eu realmente não sei do que você está falando.
- Eu simplesmente estou farta! Todo dia eu vejo a forma como vocês nos agridem, delicadas e vulneráveis louças. O garfo que finca o fundo do prato, a faca que o serra e vocês, como se não bastasse tratar-nos como uma centrífuga, atuam como martelos sobre nós.
- Sem ofensas, mas onde pretende chegar com isso?
- Acontece, meu caro jovem, que por conta disso, eu que sou frágil, desenvolvo rachaduras internas e, cada dia que vocês encostam sobre a minha borda, é uma trincadinha a mais, e um dia a menos de minha existência.
Neste momento, o adoçante entrou na conversa:
- Com licença, mas será que eu poderia dar-lhe um conselho, minha cara?
- Você? Mas o senhor é bem abusado mesmo para querer me dar lição de moral, mas vai em frente, docinho, afinal, logo você irá partir e será substituído...
- Exato.
- Como assim, “exato”? É só o que tem a dizer?
- Sabe, eu fiquei sobre uma prateleira de supermercado por um longo tempo e eu sempre via meus colegas partindo, até que chegou minha vez e cá estou. Eu sabia que quando isso ocorresse, o meu açúcar em algum momento acabaria ou minha validade venceria.
- E o que eu tenho a ver com isso, meu senhor?
- Bom, se tem uma coisa que aprendi foi que, com o passar do tempo, você percebe que se apenas se preocupar com o que te faz se sentir ferido, vai acabar esquecendo de seu real valor, deixando de aproveitar o que te deixa feliz.
- Pra você é fácil, não é?! Lembre-se de que minha resistência não é como a sua.
- Deveras, mas ainda sim, meu valor não se compara ao seu, e em questão de pouco tempo, eu serei descartado, mas nem por isso deixo de aproveitar o que me resta.
Nisso, o pires interrompeu:
- Ele está coberto de razão. Sabe, eu sempre estou te auxiliando, como um suporte, e mesmo não sendo tão funcional, estou ciente que de tal modo, atuamos como um time.
- E então, como pode me auxiliar agora? - ela o questionou.
- Bom, creio que ao longo do tempo, suas rachaduras irão se expandir até não haver mais conserto. Os talheres são como seu desafio, e ainda que não o planejem, estão apenas sendo fiéis às suas respectivas finalidades. Há momentos que temos de encarar a realidade, buscar enfrentá-la e seguir em frente.
- Falou tudo! - disse o adoçante.
Nesse momento, a xícara ficou calada, pensativa. O café já não preenchia mais seu modelo, era apenas um interior vazio. Em seguida, o mordomo começou a retirar alguns utensílios da mesa, mas antes que a colher fosse levada, a xícara disse:
- Amanhã é outro dia, aguardo ansiosa por ele!
Então a xícara foi levada, com a esperança de que dias melhores estavam por vir, ela só tinha que enxergar a realidade de uma outra perspectiva, uma positiva e edificante, que não fosse um fardo, mas sim uma dádiva.
Moral da história: Não passe a vida inteira remoendo cicatrizes, mude sua perspectiva.