Enviado em: 10/09/2024
Parágrafo de contexto: É um texto de uma escritora-filha que escreve para uma suposta leitora-mãe falando sobre as dores e abandonos que as duas carregam.
“Ai filha-minha, será que sou um monstro?”
Ele sai pela porta como quem apenas vai à padaria. Ele vai embora porque ele tem o poder de desistir enquanto você – mãe-minha – continua sentada no chão gelado da cozinha, lágrimas escorrendo do teu rosto, barriga redonda e é nesse momento em que você se percebe mais do que sozinha: mãe, mãe-minha. Ele vai embora como um super-heroi, para salvar um mundo muito maior do que eu-você e quem seríamos nós para contestar tal missão tão importante?
“Ai filha-minha, será que sou um monstro?”
Essa pergunta você me fez uma vez e eu não soube responder, mãe-minha, a resposta ficou entalada na garganta, afinal esse é aquele tipo de questionamento que pega de surpresa. Você me disse que tinha vergonha de não ter diploma, de não conseguir me dar tudo que queria, de não saber o que fazer de vez em quando, de ter me dado um pai horrível. Você me disse que se olhava no espelho e se sentia um monstro daqueles dignos de filme de terror, que aparecem na tela e espantam.
“Ai filha-minha, será que sou um monstro?”
É sim, mãe-minha, você é tão mãe quanto é monstro mas eu também sou tão filha quanto sou monstro e é por isso que a gente se ama tanto, sou sangue do teu sangue, monstro do teu monstro. Não só fui plasmada de teu ventre como me alimentei do néctar de teus sonhos, foi do teu choro doído e do teu abandono que perfura o peito que eu nasci, cheia de vazios mas nunca sozinha pois todas as dores que eu carrego, você carrega também.
“Ai filha-minha, será que sou um monstro?”
Mãe-minha, amar é saber fracassar. O amor acorda e fracassa, o amor amarra o sapato e fracassa, o amor se olha no espelho e fracassa, o amor fica e fracassa dia após dia. Ficar mesmo sabendo que vai fracassar é a maior forma de amor que existe. Mãe-minha, eu não quero que você tenha medo da sua própria monstruosidade porque a tua coragem de se enfrentar me ajuda a ter coragem também.
“Ai filha-minha, será que sou um monstro?”
Mãe-minha, uma vez você me contou que, quando adolescente, sonhava em ser bióloga marinha, eu olhei pra você, seus olhos pareciam distantes, tão profundos quanto o oceano e foi aí que eu decidi ser escritora. Eu decidi escrever porque foi o único jeito que encontrei de te presentear o mar, eu decidi escrever porque foi o único jeito que eu aprendi a amar.
“Ai mãe-minha, será que sou um monstro?”