Por Daniela Vesnek
Enviado em: 24/10/2023
Parágrafo de contexto: Texto narrativo, fictional, no gênero textual Conto. Esse foi o primeiro conto completo que escrevi e começou como uma ideia linda e simpática para o final, mas acabou tomando um caminho que nem eu previa.
Ele sentou no banco gelado ao lado do objeto cor laranja, que esbanjava a palavra “diário” na capa. Ignorou. Era apenas um diário de alguma criança qualquer. Poderia deixar na cabine quando descesse do trem.,
A paisagem passava como um borrão colorido na janela. Verde, azul, marrom. As cores eram distorcidas em inúmeros tons diferentes, e os olhos que as observassem sentiriam o singelo prazer da harmônica paleta de cores que a natureza proporcionava.
Poderia isso ser o suficiente para seus olhos?
Pois eles insistiam em abandonar a obra-prima natural de fora da janela. Pois insistiam em focar naquele pequeno ponto alaranjado que descansava inocentemente no assento gélido do transporte.
Esticou a mão. Recolheu-a. Não iria mexer nos objetos alheios. Principalmente um que era feito para guardar desde os mais insignificantes relatos até os mais secretos pensamentos de um ser humano.
Deu um suspiro pesado, se obrigando a olhar para outro lado.
Viu uma senhora. Suas roupas em um azul vibrante eram um bom descanso para os olhos durante uma longa viagem. Entretanto, seus olhos insistiam em terem seu descanso nas palavras daquele pequeno diário.
Se mexeu no assento, desconfortável pela tentação que aquele caderninho causara nele.
Voltou a olhar a velhinha. Agora ela escrevia.
Droga.
A última coisa que precisava era ter a inconsciente vontade de ler o que uma pessoa estava escrevendo, mesmo que fosse uma desconhecida.
Virou ou olhos. Ia prestar atenção no monte de cabelos cacheados a sua frente.
Estava conseguindo. Seguia com o olhar as voltas que os minúsculos cachos faziam. Deu uma pequena risada nasalada de orgulho de si mesmo. Mas então ele ouve outra pequena risada, e essa não era sua.
Procurou por quem tinha rido e se deparou com a velhinha rindo para o seu caderno.
O que será que tem naquele caderno que é tão engraçado?
A vontade de levantar e ir procurar um estimulo para uma boa risada era forte, mas se conteve no seu próprio assento.
Sua perna, inconscientemente, começou a balançar. De baixo para cima. O ritmo aumentando até ficar em confortável compasso.
A velhinha voltou a rir, dessa vez dando pequenas abanadas no rosto. Aquela era uma boa risada.
De repente passou pela sua cabeça: e se aquele pequeno diário fosse apenas um caderno onde alguém escrevia piadas? Aquela senhora tinha um e parecia usá-lo para tal propósito.
Deu uma espiada e viu que o caderninho o olhava de volta. Passou os olhos pelas pessoas do vagão para ver se alguém lhe observava. Ninguém. Ótimo. Pegou o diário discretamente, colocando-o em seu colo como quem não quer nada. Deu mais uma olhada em volta, e então começou a abrir o caderno.
Aparentemente era um diário de uma garotinha chamada Lúcia. Tinha desenhos em todos os cantos das folhas, pareciam pessoinhas e animaizinhos deformados. Ela vinha tentando melhorar seu desenho, pois tinha um monte de rabiscos que pareciam se repetir, e eles iam se tornando mais claros em questão de entender o que ela quisera representar.
Virou a página e tinha a primeira anotação feita.
No início da folha, ela escreveu os números 14/13/17.49, provavelmente uma data imaginária.
Crianças têm tanta criatividade.
Começou a ler o que estava escrito:
“Fui no zoológico. A girafa tem um pescoço enorme, nem parece real. Imagina o que dá pra fazer com ele. Eu conseguiria subir no topo de uma árvore se
tivesse minha própria girafa, iria escalar seu pescoço. Vi também um golfinho. Ele estava em um tanque que para as pessoas era tipo uma parede. Ficou brincando com algumas crianças que corriam no corredor”
Sorriu enquanto lia, pois também havia se impressionado com a girafa que viu quando foi ao zoológico pela última vez. E também havia gostado dos golfinhos, tão simpáticos e divertidos tanto para crianças quanto para adultos.
Virou a folha e viu um desenho. Não dava para entender completamente o que ela representou com aqueles rabiscos, mas dava para dar um chute. Parecia ser o tanque dos golfinhos, e tinha alguém na frente os observando. Um homem. Estava de costas.
Levantou uma sobrancelha, estranhando o porquê ela desenhara aquilo, mas deu de ombros pois era apenas uma criança.
Virou a página.
Nada escrito. Outro desenho.
Era o mesmo tanque, com o mesmo homem, mas agora ele estava com cabeça virada para o lado.
Virou a página.
O homem agora estava de frente. Seu rosto era fino e o seu cabelo era baixo e bagunçado.
Limpou a garganta. Estava ficando incomodado com o desenho, mas a curiosidade o impedia de fechar o diário.
Começou a virar as páginas, uma de cada vez, e, a cada página que virava, o desenho do homem se tornava maior, como se estivesse se aproximando.
Parou, com a mão prestes a virar mais uma folha. Respirava pesadamente, encarando seus dedos que tremiam.
Como poderia estar assustado com um desenho de uma criança? Era apenas um monte de rabiscos.
Fechou os olhos e soltou o ar que estava prendendo. Ainda de olhos fechados, virou a página.
Sua mente brigava para abrir os olhos, pois era só um desenho no fim das contas.
Abriu.
Não tinha mais o homem. Apenas o tanque estava desenhado.
Pôde rir aliviado. Quem diria que uma menina desconhecida poderia colocar tanto medo em um adulto, usando apenas desenhos mal feitos.
Estava para fechar o diário quando uma folha mais para o meio chamou sua atenção. Estava escrito em grandes e rabiscadas letras:
“VOCÊ”
Olhou fixamente para aquelas quatro letras.
Olhou em volta, mais especificamente para a senhora. Ela não estava mais lá. Não tinha mais ninguém no vagão. Ele estava sozinho.
Pensou que todos deveriam já ter descido no destino deles, mas não se lembrava de terem parado em nenhuma estação.
Levantou num pulo. Olhou para os lados em uma tentativa falha de ver alguém. Sua única companhia era os bancos vazios e o pequeno diário alaranjado que jazia aberto com a palavra “você” o encarando de volta.
Seu peito pesava com o medo se acumulando. Suas mãos suavam enquanto estavam a segurar o encosto do assento.
Um pensamento passou por ele, zombando por estar se deixando assustar por um caderno e um vagão vazio. Quantas vezes já estivera sozinho em um vagão? Muitas. Não era uma situação nova e não tinha motivos aparentes para espanto.
Sentou no banco, se obrigando a estabilizar a respiração. Limpou as mãos em um lenço e o guardou no bolso. Nesse momento, seus olhos avistaram novamente o diário.
Essa porcaria ainda está aberta?
Pegou-o com força, mas não o fechou. Queria e não queria fecha-lo. E, como se não tivesse o controle sobre eles, seus dedos viraram a página.
Agora era um desenho diferente.
Não era mais o tanque, tinha um monte de pequenos retângulos, e duas linhas retas paralelas que se estendiam pela largura da folha. Em cima de um dos retângulos, havia um círculo preenchido por rabiscos.
Girou o caderno em todas as posições, a fim de entender o que aquele desenho estava representando. Desistiu e, colocando na posição inicial, deixou-o descansar em suas pernas.
O movimento na perna retornou, e ele pôde sentir a estranha e contraditória satisfação que aquela simples e rápida movimentação trazia tanto para seu corpo quanto para seu psicológico.
Jogou a cabeça para trás, escorando-a no topo do encosto. Com os olhos fechados, se deixou embalar pelos barulhos e movimentos que o trem proporcionava, e sentiu o cansaço mental ser substituído por uma leve sonolência.
Antes de cair em um estado profundo de inconsciência, seus ouvidos captaram um pequeno ruído.
Abriu minimamente um dos olhos e dirigiu o olhar para o caderno. A folha havia virado com os movimentos de sua perna. Por impulso, abriu o outro olho para examinar melhor aquela nova página do diário.
Era o mesmo desenho. Quase o mesmo. Esse parecia ter menos retângulos e o círculo rabiscado parecia maior.
Se perguntava sobre o que Lúcia estava pensando quando desenhou aquilo. Não tinha nenhum sentido. Nem dava para entender o que ela tinha desenhado. Mas antes de voltar ao seu sono, ele teve uma nova perspectiva.
Não eram retângulos, eram encostos de bancos; as linhas paralelas simbolizavam o corredor do vagão; o círculo rabiscado deveria ser uma cabeça.
Estranho.
Girou a cabeça para trás, encarando a porta que dava para outro vagão. Voltou a olhar o diário.
Virou a página.
A cabeça agora estava rabiscada apenas na metade de baixo, tendo o que parecia olhos fechados e um nariz metade de cima. Estava com a cabeça apoiada no topo do encosto.
Um pensamento louco passou por sua mente: ele mesmo estivera a poucos minutos com a cabeça apoiada no topo do encosto.
Olhou novamente para trás. Não havia nada, ninguém.
Voltou-se para frente e virou a página.
O círculo não estava mais rabiscado, e sim ganhara um rosto — dois pontinhos para os olhos, um triangulo para o nariz e uma linha reta para a boca. Era como se estivesse olhando para trás dele, para quem o observava.
Engoliu em seco e virou a página.
A cabeça voltou a ficar de costas para ele.
Virou a página.
Menos bancos, e a cabeça parecia maior, parecia mais perto.
Virou a página.
Apenas quanto linhas de bancos antes de chegar onde a cabeça estava. Virou a página.
Três linhas de bancos.
Virou a página.
Duas linhas de bancos.
Virou a página.
Uma linha de banco.
Virou a página.
A cabeça estava ocupando quase toda a folha.
Segurou a ponta da página, pronto para virar, mas paralisou antes de concluir a ação.
Seu coração batia tão forte, que qualquer outro som era abafado pelas batidas fortes que aconteciam em seu peito. Percebeu que prendia a respiração, soltou-a e relaxou no banco.
Virou a página.
Tudo vermelho. Uma respiração em seu pescoço. Um vulto de criança logo após virar o corpo para trás e não sentir mais nada. Nunca mais.