Por Lohayne Sousa
Enviado em: 31/03/2023
Parágrafo de contexto: Este conto foi uma atividade extra da disciplina de letramentos com a Profª. Regiane. A maioria dos colegas também escreveram e fizemos uma leitura compartilhada.
Apertou a fivela do cinto de couro e empunhou sua carabina velha, estava quase enferrujada de tão usada. Olhou para sua esposa, que o encarava de braços cruzados
- Não me espere acordada. – Disse, se levantando rapidamente da cadeira de balanço da varanda.
- Por acaso não vê que temos comida de sobra, Cassiano? Não precisamos de mais nada, graças a Deus! – A mulher o encarava – Temos o bastante para o mês, para nós, nossos filhos e quem mais queira se juntar à mesa. – Dizia enquanto saía da cozinha para a varanda da casa de sapê.
Como de costume, Cassiano não respondeu. Prontamente pegou sua lanterna e saiu, enfiando-se na mata escura sem olhar para trás. No caminho pensava que Tereza sempre foi sentimental e que era comum das mulheres serem assim.
Quase não enxergava o caminho, apenas lumiava o chão pra que não pisasse em nenhum espinho. Aquela estrada já estava gravada na memória muscular de Cassiano, que com seus braços compridos ia entortando os galhos que interceptavam sua caminhada, tão conhecidos como a palma de sua mão.
Logo reconheceu a árvore que sempre ficava de butuca. Subiu facilmente e começou sua espreita, não demorou muito para escutar os passos de uma capivara se aproximando. Preparou-se, com a mesma empolgação de sempre, lumiou rapidamente sua lanterna para a direção do barulho e confirmou onde o bicho estava. Ele comia tranquilamente seu capim com orvalho quando Cassiano o viu. Ajeitou sua mira e disparou o primeiro tiro. O animal grunhiu choroso, tentou correr, mas fraquejou ao sentir a bala alojada em seu corpo e caiu. Cassiano o colocou na mira novamente e atirou mais três vezes.
Assim, o homem repetiu o ritual com outros animais até se cansar, quando estava perto de amanhecer, voltou para casa.
Tereza estava na cadeira de balanço da varanda, esperou o marido boa parte da noite, mas acabou adormecendo. Quando Cassiano chegou, ela estava tendo um pesadelo, contraindo os músculos do rosto e suando frio. O marido apanhou sua mão e ela acordou gritando desesperada. Subitamente levantou, soltou sua mão da dele e entrou na casa. Tereza nunca perguntou o que Cassiano fazia na mata quando não caçava comida, mas podia sentir o homem voltar cada vez mais sombrio e distante. Estava tão cansada que nem conseguiu concluir seus pensamentos e dormiu.
A caça era o passatempo de Cassiano, ia, ao menos, três vezes por semana para a mata. Os animais já não conseguiam nem sentir sua presença, era um homem mais sorrateiro que um bicho e cada vez mais bicho do que gente.
Em uma noite enluarada, propícia para a sua caçada, Cassiano foi para a mata novamente. Encontrou sua árvore e lá ficou, esperando pacientemente. Ouviu passos mais pesados do que costume, achou ser uma onça. – Que sorte! – Pensou consigo. Tinha trazido poucas balas, tinha que ser certeiro em cada tiro. Os passos ficaram cada vez mais barulhentos, revelando ser um animal bem maior que uma onça. – Que bicho maior que onça tem aqui que eu nunca matei? – Pensou alto. – Você me dá muito trabalho, caçador. – Ouviu uma voz, da mesma direção dos passos, que era como uma multidão uníssona. Um arrepio percorreu a espinha de Cassiano, nunca tinha ouvido uma voz como aquela. Quando teve coragem de lumiar o bicho, viu um porco-do-mato gigante e um guerreiro indígena montado nele. Ambos tinham olhos vermelhos e brilhantes, o homem usava um cocar de penas de ema e carregava um enorme frasco de creolina – A caça é para manter a vida, para alimento – Bradou o homem – Nada além disso. Cassiano estava totalmente paralisado, nunca tinha sentido tanto medo na vida. – Você sabe quantas vezes tive que curar as feridas dos bichos que você machucou e deixou para trás? Quantos mortos eu guardei debaixo da terra? Essa vai ser sua última chance. – Cassiano os viu seguir mata a dentro e quando estava totalmente sozinho, desceu da árvore e correu o mais rápido que podia para sua casa.
Por três dias, Cassiano não proferiu uma palavra sequer. Tereza ficou embasbacada com o silêncio absoluto do marido, depois de várias tentativas sem sucesso, resolveu desistir de perguntar o que tinha acontecido.
Após algum tempo, Cassiano convenceu-se que aquilo era coisa da cabeça dele. Repentinamente, voltou a se encontrar com sua carabina e sua lanterna. Ajeitou o cinto, o chapéu e carregou a arma, aquela noite seria de caça. “Estou me deixando levar pelas besteiras de Tereza”, pensava. Com sangue nos olhos decidiu que nada podia o parar.
Partiu sem dar explicações à Tereza que tinha ficado feliz pelo marido passar mais tempo em casa. Mais uma vez, ele adentrou a mata, mais escura do que costume, encontrou sua árvore e lá começou sua tocaia.
Aquela noite estava silenciosa, nem sequer um animal tinha passado pelo feixe da lanterna de Cassiano, e ele ficava mais impaciente a cada minuto. Passou uma hora escutando apenas o som dos grilos, até que algum animal passou por sua mira. Era um pequeno filhote de veado, mal sabia correr. Cassiano, com a sede que estava, não se importou nem um pouco em apontar o cano para o pequeno animal ainda em desenvolvimento. Quando estava prestes a encostar seu indicador no gatilho, o bicho falou – Assassino de pai e mãe – com a voz mais grave que já havia escutado. Num pulo, Cassiano atirou e saiu correndo da árvore, atravessando o caminho tão rápido e com tanto medo que nem conseguia desviar-se dos galhos, que foram rasgando sua pele.
Ele, que costumava voltar quase no raiar do sol de suas caçadas, voltou ainda antes da meia-noite. Fadigado, correu para o quarto para contar à Tereza o momento de terror presenciado na mata. Ao abrir abruptamente a porta, encontrou duas pessoas deitadas em sua cama. – Tereza! Tereza! Tereza! – gritava sem parar. Não conseguia pensar, em estado quase psicótico, quando encontrou outro homem em sua cama, imediatamente atirou em ambos, disparando sem parar até que acabassem as balas. Enquanto recarregava a carabina enferrujada, Tereza, que estava dormindo no quarto com os filhos, correu para o seu quarto e viu seu lençol branco encharcado de sangue. Tereza começou a tremer e gritar – Meu Deus, meu Deus! O que você fez, Cassiano!? – começou a embargar a voz – Você matou os seus pais! Você os matou!
Depois que Cassiano saiu de casa, seus pais chegaram de surpresa para fazer uma visita e encontraram apenas Tereza. Com o passar das horas, como ótima anfitriã que era, insistiu que ficassem até a manhã para que vissem Cassiano e cedeu seu quarto para que seus sogros pudessem ficar confortáveis.
Ao tomar consciência de seus atos, Cassiano caiu de joelhos e chorou copiosamente. Ele sabia que não havia mais volta ou perdão, já estava feito. Parou de chorar, e no meio de seu silêncio, pegou sua velha carabina, apontou para o próprio queixo e atirou, como sempre, sem hesitar.