LIVRO 02- A VIDA INTERIOR

LIVRO SEGUNDO

EXORTAÇÕES À VIDA INTERIOR

CAPÍTULO 1 - Da vida interior

1. "O reino de Deus está dentro de vós", diz o Senhor (Lc 17,21).

Converte-te a Deus de todo o coração, deixa este mundo miserável, e tua alma achará descanso.

Aprende a desprezar as coisas exteriores e entrega-te às interiores, e verás chegar a ti o reino de Deus.

Pois o reino de Deus é a paz e o gozo no Espírito Santo (Rom 14, 17), que não se dá aos ímpios.

Virá a ti Cristo para consolar-te, se lhe preparares no teu interior digna moradia. Toda a sua glória e formosura está no interior (Sl 44,14), e só aí o Senhor se compraz.

A miúdo visita ele o homem interior em doce entretenimento, suave consolação, grande paz e familiaridade sobremaneira admirável.

2. Eia, alma fiel, para este Esposo prepara teu coração, a fim de que se digne vir e morar em ti.

Pois assim ele diz: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e viremos a ele e faremos nele a nossa morada (Jo 14,23).

Dá, pois, lugar a Jesus e a tudo mais fecha a porta.

Se possuíres a Cristo, estarás rico e satisfeito.

Ele mesmo será teu provedor e fiel procurador em tudo, de modo que não hajas mister de esperar nos homens.

Porque os homens são volúveis e faltam com facilidade à confiança, mas Cristo permanece eternamente (Jo 12,34), e firme nos acompanha até ao fim.

3. Não se há de ter grande confiança no homem frágil e mortal, por mais que nos seja caro e útil; nem nos devemos afligir com excessos, porque, de vez em quando, nos contraria com palavras ou obras.

Os que hoje estão contigo amanhã talvez sejam contra ti, e reciprocamente, pois os homens mudam como o vento.

Põe toda a tua confiança em Deus, e seja ele o teu temor e amor; ele responderá por ti, e fará do melhor modo o que convier.

Não tens aqui morada permanente (Hb 13,14), e onde quer que estejas, és estranho e peregrino; nem terás nunca descanso, se não estiveres intimamente unido a Jesus.

4. Para que olhas em redor de ti, se não é este o lugar de teu repouso?

No céu deve ser a tua habitação, e como de passagem hás de olhar todas as coisas da terra.

Todas passam, e tu igualmente passas com elas; toma cuidado para não te apegares a elas, a fim de que não te escravizem e percam.

Ao Altíssimo eleva sempre teus pensamentos, e a Cristo dirige súplica incessante.

Se não sabes contemplar coisas altas e celestiais, descansa na paixão de Cristo e gosta de habitar em suas sacratíssimas chagas.

Pois, se te acolheres devotamente às chagas e preciosos estigmas de Jesus, sentirás grande conforto em tuas mágoas, não farás mais caso do desprezo dos homens e facilmente sofrerás as suas detrações.

5. Cristo também foi, neste mundo, desprezado dos homens, e em suma necessidade, entre os opróbrios, o desampararam seus conhecidos e amigos.

Cristo quis padecer e ser desprezado; e tu ousas queixar-te de alguém?

Cristo teve adversidade e detratores; e tu queres ter a todos por amigos e benfeitores?

Como poderá ser coroada tua paciência, se não encontrares alguma adversidade?

Se não queres sofrer alguma contrariedade, como serás amigo de Cristo? Sofre com Cristo e por Cristo, se com Cristo queres reinar.

6. Se uma só vez entraras perfeitamente no Coração de Jesus e gozaras um pouco de seu ardente amor, não farias caso do teu proveito ou dano, ao contrário, te alegrarias com os mesmos opróbrios; porque o amor de Jesus faz com que o homem se despreze a si mesmo.

O amante de Jesus e da verdade, e o homem deveras espiritual e livre de afeições desordenadas, pode facilmente recolher-se em Deus, e, elevando-se em espírito, acima de si mesmo, fruir delicioso descanso.

7. Aquele que avalia as coisas pelo que são, e não pelo juízo e estimação dos outros, este é o verdadeiro sábio, ensinado mais por Deus que pelos homens.

Quem sabe andar recolhido dentro de si, e ter em pequena conta as coisas exteriores, não precisa escolher lugar nem aguardar horas para se dar a exercícios de piedade.

O homem interior facilmente se recolhe, pois nunca se entrega de todo às coisas exteriores.

Não o estorvam trabalhos externos nem ocupações, às vezes necessárias, mas ele se acomoda às circunstâncias, conforme sucedem.

Quem tem o interior bem-disposto e ordenado não se importa com as façanhas e crimes dos homens. Tanto o homem se embaraça e distrai, quanto se mete nas coisas exteriores.

8. Se foras reto e puro, tudo te correria bem e se voltaria em teu proveito.

Mas, porque ainda não estás de todo morto a ti mesmo, nem apartado das coisas terrenas, por isso muitas coisas te causam desgostos e perturbações.

Nada mancha tanto e embaraça o coração do homem como o amor desordenado às criaturas.

Se renunciares às consolações exteriores, poderás contemplar as coisas do céu e gozar a miúdo da alegria interior.

CAPÍTULO 2 - Da humilde submissão

1.Não te importes muito de saber quem seja por ti ou contra ti; mas trata e procura que Deus seja contigo em tudo que fizeres.

Tem boa consciência e Deus te defenderá, pois a quem Deus ajuda não há maldade que o possa prejudicar.

Se souberes calar e sofrer, verás, sem dúvida, o socorro do Senhor.

Ele sabe o tempo e o modo de te livrar; portanto, entrega-te todo a ele.

A Deus pertence aliviar-nos e tirar-nos de toda a confusão.

Às vezes é muito útil, para melhor conservarmos a humildade, que os outros saibam os nossos defeitos e no-los repreendam.

2. Quando o homem se humilha por seus defeitos, aplaca facilmente os outros e satisfaz os que estão irados contra ele.

Ao humilde Deus protege e salva, ao humilde ama e consola, ao humilde ele se inclina, dá-lhe abundantes graças e depois do abatimento o levanta a grande honra.

Ao humilde revela seus segredos e com doçura a si o atrai e convida.

O humilde, ao sofrer afrontas, conserva sua paz, porque confia em Deus e não no mundo.

Não julgues ter feito progresso algum, enquanto te não reconheças inferior a todos.

CAPÍTULO 3 - Do homem bom e pacífico

1. Primeiro conserva-te em paz, e depois poderás pacificar os outros.

O homem apaixonado, até o bem converte em mal e facilmente acredita no mal; o homem bom e pacífico, pelo contrário, faz com que tudo se converta em bem.

Quem está em boa paz de ninguém desconfia; o descontente e perturbado, porém, é combatido de várias suspeitas e não sossega, nem deixa os outros sossegarem.

Diz muitas vezes o que não devia dizer, e deixa de fazer o que mais lhe conviria.

Atende às obrigações alheias, e descuida-se das próprias. Tem, pois, principalmente zelo de ti, e depois o terás, com direito, do teu próximo.

2. Bem sabes desculpar e cobrir tuas faltas, e não queres aceitar as desculpas dos outros!

Mais justo fora que te acusasses a ti e escusasses o teu irmão.

Suporta os outros, se queres que te suportem a ti.

Nota quão longe estás ainda da verdadeira caridade e humildade, que não sabe irar-se ou indignar-se senão contra si própria.

Não é grande coisa conviver com homens bons e mansos, porque isso, naturalmente, agrada a todos; e cada um gosta de viver em paz e ama os que são de seu parecer.

Viver, porém, em paz com pessoas ásperas, perversas e mal-educadas que nos contrariam, é grande graça e ação louvável e varonil.

3. Uns há que têm paz consigo e com os mais; outros que não têm paz nem a deixam aos demais; são insuportáveis aos outros, e ainda mais o são a si mesmos.

E há outros que têm paz consigo e procuram-na para os demais. Toda a nossa paz, porém, nesta vida miserável, consiste mais na humilde resignação, que em não sentir as contrariedades.

Quem melhor sabe sofrer maior paz terá.

Esse é vencedor de si mesmo e senhor do mundo, amigo de Cristo e herdeiro do céu.

CAPÍTULO 4 - Da mente pura e da intenção simples

1. Com duas asas se levanta o homem acima das coisas terrenas: simplicidade e pureza.

A simplicidade há de estar na intenção e a pureza no afeto.

A simplicidade procura a Deus, a pureza o abraça e frui.

Em nenhuma boa obra acharás estorvo, se estiveres interiormente livre de todo afeto desordenado.

Se só queres e buscas o agrado de Deus e o proveito do próximo, gozarás de liberdade interior.

Se teu coração for reto, toda criatura te será um espelho de vida e um livro de santas doutrinas.

Não há criatura tão pequena e vil, que não represente a bondade de Deus.

2. Se fosses interiormente bom e puro, logo verias tudo sem dificuldade e compreenderias bem.

O coração puro penetra o céu e o inferno.

Cada um julga segundo seu interior.

Se há alegria neste mundo, é o coração puro que a goza; se há, em alguma parte, tribulação e angústia, é a má consciência que as experimenta.

Como o ferro metido no fogo perde a ferrugem e se faz todo incandescente, assim o homem que se entrega inteiramente a Deus fica livre da tibieza e transforma-se em novo homem.

3. Quando o homem começa a entibiar, logo teme o menor trabalho e anseia as consolações exteriores.

Quando, porém, começa deveras a vencer-se e andar com ânimo no caminho de Deus, leves lhe parecem as coisas que antes achava onerosas.

CAPÍTULO 5 - Da consideração de si mesmo

1. Não podemos confiar muito em nós, porque frequentemente nos faltam a graça e o critério.

Pouca luz temos em nós, e esta facilmente a perdemos por negligência.

De ordinário também não avaliamos quanta é nossa cegueira interior.

A miúdo procedemos mal e nos desculpamos, o que é pior.

Às vezes nos move a paixão, e pensamos que é zelo.

Repreendemos nos outros as faltas leves, e nos descuidamos das nossas maiores.

Bem depressa sentimos e ponderamos o que dos outros sofremos, mas não se nos dá do que os outros sofrem de nós.

Quem bem e retamente avaliasse suas obras não seria capaz de julgar os outros com rigor.

2. O homem interior antepõe o cuidado de si a todos os outros cuidados, e quem se ocupa de si com diligência facilmente deixa de falar dos outros.

Nunca serás homem espiritual e devoto, se não calares dos outros, atendendo a ti próprio com especial cuidado.

Se de ti só e de Deus cuidares, pouco te moverá o que se passa por fora.

Onde estás, quando não estás contigo?

E, depois de tudo percorrido, que ganhaste se esqueceste a ti mesmo?

Se queres ter paz e verdadeiro sossego, é preciso que tudo mais dispenses, e a ti só tenhas diante dos olhos.

3. Portanto, grandes progressos farás, se te conservares livre de todo cuidado temporal; muito te atrasará o apego a alguma coisa temporal.

Nada te seja grande, nobre, aceito ou agradável, a não ser Deus mesmo ou o que for de Deus.

Considera vã toda consolação que te vier das criaturas.

A alma que ama a Deus despreza tudo que é abaixo de Deus.

Só Deus eterno e imenso, que tudo enche, é o consolo da alma e a verdadeira alegria do coração.

CAPÍTULO 6 - Da alegria da boa consciência

1. A glória do homem virtuoso é o testemunho da boa consciência.

Conserva pura a consciência, e sempre terás alegria.

A boa consciência pode suportar muita coisa e permanece alegre, até nas adversidades.

A má consciência anda sempre medrosa e inquieta.

Suave sossego gozarás, se de nada te acusar o coração.

Não te dês por satisfeito, senão quando tiveres feito algum bem.

Os maus nunca têm verdadeira alegria nem sentem a paz interior; pois não há paz para os ímpios, diz o Senhor (Is 57, 21).

E se disserem: Vivemos em paz, não há mal que nos possa acontecer, e quem ousará ofender-nos? - não lhes dês crédito, porque de repente levantar-se-á a ira de Deus, e então as suas obras serão aniquiladas e frustrados seus intuitos.

2. A quem ama não é dificultoso gloriar-se na tribulação; pois gloriar-se assim é gloriar-se na cruz do Senhor (Gál 6,14).

Pouco dura a glória que os homens dão e recebem.

A glória do mundo anda sempre acompanhada de tristeza.

A glória dos bons está na própria consciência, e não na boca dos homens.

A alegria dos justos é de Deus e em Deus, a sua alegria procede da verdade.

Quem deseja a glória verdadeira e eterna não faz caso da glória temporal.

E quem procura a glória temporal ou não a despreza de todo, mostra que pouco ama a celestial.

Grande tranquilidade do coração goza aquele que não faz caso de elogios nem de censuras.

3. É fácil estar contente e sossegado, tendo a consciência pura.

Não és mais santo porque te louvam, nem pior porque te censuram.

És o que és, nem te podem os louvores fazer maior do que és aos olhos de Deus.

Se considerares o que és no teu interior, não farás caso do que te dizem os homens.

O homem vê o rosto, Deus o coração (1 Rs 16,7).

O homem nota os atos, mas Deus pesa as intenções.

Proceder sempre bem e ter-se em pequena conta é indício de uma alma humilde.

Rejeitar toda consolação das criaturas é sinal de grande pureza e confiança interior.

4. Aquele que não procura o testemunho favorável dos homens mostra que está todo entregue a Deus.

Porque, como diz S. Paulo, não é aprovado aquele que a si próprio recomenda, mas aquele que é recomendado por Deus (2Cor 10,18).

Andar recolhido no interior com Deus, sem estar preso a alguma afeição humana, é próprio do homem espiritual.

CAPÍTULO 7 - Do amor de Jesus sobre todas a coisas

1. Bem-aventurado aquele que compreende o que seja amar a Jesus e desprezar-se a si por amor de Jesus.

Por esse amor deves deixar qualquer outro, pois Jesus quer ser amado acima de tudo.

O amor da criatura é enganoso e inconstante; o amor de Jesus é fiel e inabalável.

Apegado à criatura, cairás com ela, que é instável; abraçado com Jesus, estarás firme para sempre.

A Ele ama e guarda como amigo que não te desamparará, quando todos te abandonarem, nem consentirá que pereças na hora suprema.

De todos te hás de separar um dia, quer queiras, que não.

2. Aconchega-te a Jesus na vida e na morte; entrega-te à sua fidelidade, que só Ele te pode socorrer, quando todos te faltarem.

Teu Amado é de tal natureza, que não admite rival: Ele só quer possuir teu coração e nele reinar como rei em seu trono.

Se souberas desprender-te de toda criatura, Jesus acharia prazer em morar contigo.

Quando confiares nos homens, fora de Jesus, verás que estás perdido.

Não te fies nem te firmes na cana movediça: porque toda a carne é feno, e toda a sua glória fenece como a flor do campo (Is 40,6).

3. Facilmente serás enganado, se só olhares para as aparências dos homens.

Se procuras alívio e proveito nos outros, quase sempre terás prejuízo.

Procura a Jesus em todas as coisas, e Jesus acharás.

Se te buscas a ti mesmo, também te acharás, mas para a tua ruína.

Pois o homem que não busca a Jesus é mais nocivo a si mesmo que todo o mundo e seus inimigos todos.

CAPÍTULO 8 - Da familiar amizade com Jesus

1. Quando Jesus está presente, tudo é suave e nada parece dificultoso; mas, quando Jesus está ausente, tudo se torna penoso.

Quando Jesus não fala ao coração, nenhuma consolação tem valor; mas se Jesus fala uma só palavra, sentimos grande alívio.

Porventura não se levantou logo Maria Madalena do lugar onde chorava, quando Marta lhe disse: "O Mestre está aí e te chama?" (Jo 11,28).

Hora bendita, quando Jesus te chama das lágrimas para o gozo do espírito!

Que seco e árido és sem Jesus!

Que néscio e vão, se desejas outra coisa, fora de Jesus!

Não será isto maior dano do que se perdesse o mundo inteiro?

2. Que te pode dar o mundo sem Jesus?

Estar sem Jesus é terrível inferno, estar com Jesus é doce paraíso.

Se Jesus estiver contigo, nenhum inimigo te pode ofender.

Quem acha a Jesus acha precioso tesouro, ou, antes, o bem superior a todo bem; quem perde a Jesus perde muito mais do que se perdesse a todo o mundo.

Paupérrimo é quem vive sem Jesus, e riquíssimo quem está bem com Jesus.

3. Grande arte é saber conversar com Jesus, e grande prudência conservá-lo consigo.

Sê humilde e pacífico, e contigo estará Jesus; sê devoto e sossegado, e Jesus permanecerá contigo.

Depressa podes afugentar a Jesus e perder a sua graça, se te inclinares às coisas exteriores; e se o afastas e o perdes, aonde irás e a quem buscarás por amigo?

Sem amigo não podes viver, e se não for Jesus teu amigo acima de todos, estarás mui triste e desconsolado.

Logo, loucamente procedes, se em qualquer outro confias e te alegras.

Antes ter o mundo todo por adversário, que ofender a Jesus.

Acima de todos os teus amigos seja, pois, Jesus amado dum modo especial.

4. Sê livre e puro no teu interior, sem apego a criatura alguma.

É mister desprenderes-te de tudo e ofereceres a Deus um coração puro, se queres sossegar e ver como é suave o Senhor.

E, com efeito, tal não conseguirás, se não fores prevenido e atraído por sua graça, de modo que, deixando e despedindo tudo mais, com ele só estejas unido.

Pois, quando lhe assiste a graça de Deus, de tudo é capaz o homem; e quando ela se retira, logo fica pobre e fraco, como que abandonado aos castigos.

Ainda assim, não deves desanimar nem desesperar, antes resignar-te na vontade de Deus, e sofrer tudo que te acontecer, por honra de Jesus; pois ao inverno sucede o verão, depois da noite volta o dia, e após a tempestade reina a bonança.

CAPÍTULO 9 - Da privação de toda consolação

1. Não é dificultoso desprezar as consolações humanas, quando gozamos das divinas.

Grande coisa, porém, e mui meritória, é poder estar sem consolação, tanto divina como humana, sofrendo de boa mente o desamparo do coração, sem em nada buscar-se a si mesmo, nem atender ao seu próprio merecimento.

Que maravilha será estares alegre e devoto, quando te assiste a graça!

De todos é almejada esta hora.

E mui suave andar, levado pela graça de Deus.

E que maravilha não sentir a carga aquele que é sustentado pelo Onipotente e acompanhado do guia supremo!

2. Gostamos de ter qualquer consolação, e é penoso ao homem despojar-se de si mesmo.

O glorioso mártir São Lourenço venceu o mundo em união com seu pai espiritual, porque desprezou todos os atrativos do século e sofreu com paciência, por amor de Cristo, que o separassem do Supremo Pontífice São Xisto a quem ele muito amava!

Assim, com a amor de Deus, ele subjugou o amor da criatura, e ao alívio humano preferiu o beneplácito divino.

Daí aprende tu a deixar, às vezes, por amor de Deus, um parente ou amigo querido.

Nem tanto te aflijas se te abandonar algum amigo, sabendo que todos, finalmente, nos havemos de separar uns dos outros.

3. Só com renhido e longo combate interior aprende o homem a dominar-se plenamente e pôr em Deus todo o seu afeto.

Quando o homem confia em si, facilmente desliza nas consolações humanas.

Mas o verdadeiro amigo de Cristo e fervoroso imitador de suas virtudes não se inclina às consolações nem busca tais doçuras sensíveis; antes, procura exercícios austeros e sofre por Cristo trabalhos penosos.

4. Quando, pois, Deus te mandar consolação espiritual, recebe-a com ações de graças, mas lembra-te sempre que é mercê de Deus, e não merecimento teu.

Com isto, porém, não te desvaneças, nem te entregues a excessiva alegria ou a vã presunção; sê antes mais humilde pelo dom recebido, mais prudente e timorato em tuas ações, pois passará aquela hora e voltará a tentação.

Quando te for tirada a consolação, não desesperes logo, aguarda, pelo contrário, com humildade e paciência, a visita celestial; pois Deus é bastante poderoso para restituir-te maior graça e consolação.

Isto não é novo nem estranho aos que são experientes nos caminhos de Deus; porque nos grandes santos e antigos profetas houve muitas vezes esta mudança.

5. Por isso um deles, sentindo a presença da graça, exclamava: Eu disse em minha abundância: não serei abalado jamais (Sl 29,7).

Sentindo, porém, retirar-se a graça, acrescenta: Desviastes de mim, Senhor, o vosso rosto, e fiquei perturbado (v.8).

Entretanto não desespera, mas com mais instância roga ao Senhor, e diz: A vós, Senhor, clamarei, e ao meu Deus rogarei (v.9).

Alcança, afinal, o fruto de sua oração e atesta ter sido atendido, dizendo: Ouviu-me o Senhor, e compadeceu-se de mim, o Senhor se fez meu protetor (v.11).

Mas em quê? Convertestes, diz ele, meu pranto em gozo, e me cercastes de alegria (v.12).

Se isto sucedeu aos grandes santos, não devemos desesperar nós outros, fracos e pobres, por nos sentirmos umas vezes com fervor, outras vezes com frieza porque vai e vem o espírito de Deus, segundo lhe apraz.

Por isso diz o santo Jó: "Senhor, visitais o homem na madrugada, e logo o provais" (7,18).

6. Em que posso, pois, esperar ou em que devo confiar, senão na grande misericórdia de Deus e na esperança da graça celestial?

Porque, ou me assistem homens justos, irmãos devotos e amigos fiéis, ou livros santos e formosos tratados, ou cânticos e hinos suaves, tudo isso de pouco me serve e pouco me agrada, quando estou desamparado da graça e entregue à minha própria pobreza.

Não há então melhor remédio que Deus.

7. Nunca encontrei homem tão religioso e devoto, que não sofresse, às vezes, a subtração da graça e sentisse o arrefecimento do fervor.

Nenhum santo foi tão altamente arrebatado e esclarecido que, antes ou depois, não fosse tentado.

Porque não é digno da alta contemplação de Deus quem por Deus não sofreu alguma tribulação.

Costuma vir primeiro a tentação, como sinal precursor da próxima consolação; porque aos provados pela tentação é prometido o celeste consolo.

"A quem tiver vencido, diz o Senhor, darei a comer o fruto da árvore da vida" (Apc 2,7).

8. Dá Deus a consolação, para fortalecer o homem contra as adversidades.

Segue-se então a tentação, para que não se desvaneça a felicidade.

O demônio não dorme, nem a carne já está morta; por isso, não cesses nunca de aparelhar-te para a peleja, porque à direita e à esquerda estão teus inimigos que nunca descansam.

CAPÍTULO 10 - Do agradecimento pela graça de Deus

1. Para que buscas repouso se nascestes para o trabalho?

Dispõe-te mais à paciência que à consolação, mais para levar a cruz que para ter alegria.

Quem dentre os mundanos não aceitaria de bom gosto a consolação e a alegria espiritual, se a pudesse ter sempre ao seu dispor?

As consolações espirituais excedem todas as delícias do mundo e todos os deleites da carne.

Pois todas as delícias do mundo ou são vãs ou torpes, e só as do espírito são suaves e honestas, nascidas que são das virtudes e infundidas por Deus nas almas puras.

Mas ninguém pode lograr estas divinas consolações à medida de seu desejo, porque não cessa por muito tempo a guerra da tentação.

2. Grande obstáculo às visitas celestiais é a falsa liberdade do espírito e a demasiada confiança em si mesmo.

Deus faz bem dando-nos a graça da consolação; mas o homem faz mal não retribuindo tudo a Deus, com ação de graças.

E se não se nos infundem os dons da graça, é porque somos ingratos ao Autor, não atribuindo tudo à fonte original.

Pois sempre Deus concede a graça a quem dignamente se mostra agradecido e tira ao soberbo o que costuma dar ao humilde.

3. Não quero consolação que me tire a compunção, nem desejo contemplação que me seduz ao desvanecimento; porque nem tudo que é sublime é santo, nem tudo que é agradável é bom, nem todo desejo é puro, nem tudo que nos deleita agrada a Deus.

De boa mente aceito a graça, que me faz humilde e timorato e me dispõe melhor para renunciar a mim mesmo.

O homem instruído pela graça e experimentado com sua subtração não ousará atribuir-se bem algum, antes reconhecerá sua pobreza e nudez.

Dá a Deus o que é de Deus, e atribui a ti o que é teu; isto é, dá graças a Deus pela graça, e só a ti atribui a culpa e a pena que a culpa merece.

4. Põe-te sempre no ínfimo lugar, e dar-te-ão o supremo, porque o mais alto não existe sem o apoio do inferior.

Os maiores santos diante de Deus são os que se julgam menores, e quanto mais glorioso, tanto mais humildes são no seu conceito.

Como estão cheios de verdade e glória celestial, não cobiçam a glória vã.

Em Deus fundados e firmados, nada os pode ensoberbecer.

Atribuindo a Deus todo o bem que receberam, não pretendem a glória uns dos outros; só querem a glória que procede de Deus; seu único fim, seu desejo constante é que ele seja louvado neles e em todos os santos, acima de todas as coisas.

5. Agradece, pois, os menores benefícios e maiores merecerás.

Considera como muito o pouco, e o menor dom por dádiva singular.

Se considerarmos a grandeza do benfeitor, não há dom pequeno ou de pouco valor; porque não pode ser pequena a dádiva que nos vem do soberano Senhor.

Ainda quando nos der penas e castigos, Lho devemos agradecer, porque sempre é para nossa salvação quanto permite que nos suceda.

Se desejares a graça de Deus, sê agradecido quando a recebes e paciente quando a perdes. Roga que ela volte, anda cauteloso e humilde, para não vires a perdê-la.

CAPÍTULO 11 - Quão poucos são os que amam a cruz de Jesus

1. Muitos encontram Jesus agora apreciadores de seu reino celestial; mas poucos que queiram levar a sua cruz.

Tem muitos sequiosos de consolação, mas poucos da tribulação; muitos companheiros à sua mesa, mas poucos de sua abstinência.

Todos querem gozar com ele, poucos sofrer por ele alguma coisa.

Muitos seguem a Jesus até ao partir do pão, poucos até beber o cálice da paixão.

Muitos veneram seus milagres, mas poucos abraçam a ignomínia da cruz.

Muitos amam a Jesus, enquanto não encontram adversidades.

Muitos O louvam e bendizem, enquanto recebem d’Ele algumas consolações; se, porém, Jesus se oculta e por um pouco os deixa, caem logo em queixumes e desânimo excessivo.

2. Aqueles, porém, que amam a Jesus por Jesus mesmo e não por própria satisfação, tanto O louvam nas tribulações e angústias, como na maior consolação.

E posto que nunca lhes fosse dada a consolação, sempre O louvariam e Lhe dariam graças.

3. Oh! Quanto pode o amor puro de Jesus, sem mistura de interesse ou amor-próprio!

Não são porventura mercenários os que andam sempre em busca de consolações?

Não se amam mais a si do que a Cristo os que estão sempre cuidando de seus cômodos e interesses?

Onde se achará quem queira servir desinteressadamente a Deus?

4. É raro achar um homem tão espiritual que esteja desapegado de tudo.

Pois o verdadeiro pobre de espírito e desprendido de toda criatura - quem o descobrirá?

Tesouro precioso que é necessário buscar nos confins do mundo (Prov 31,10).

Se o homem der toda a fortuna, não é nada. E se fizer grande penitência, ainda é pouco.

Compreenda embora todas as ciências, ainda estão muito longe.

E se tiver grande virtude de devoção ardente, muito ainda lhe falta, a saber: uma coisa que lhe é sumamente necessária.

Que coisa será esta? Que, deixado tudo, se deixa a si mesmo e saia totalmente de si, sem reservar amor-próprio algum, e, depois de feito tudo que soube fazer, reconheça que nada fez.

5. Não tenha em grande conta o pouco que nele possa ser avaliado por grande: antes, confesse sinceramente que é um servo inútil, como nos ensina a Verdade.

Quando tiverdes cumprido tudo que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis (Lc 17,10).

Então, sim, o homem poderá chamar-se verdadeiramente pobre de espírito e dizer com o profeta: Sou pobre e só neste mundo (Sl 24,16).

Entretanto, ninguém é mais poderoso, ninguém mais livre que aquele que sabe deixar-se a si e a todas as coisas e colocar-se no último lugar.

CAPÍTULO 12 - Da estrada real da santa Cruz

1. A muitos parece dura esta palavra: Renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz e segue a Jesus Cristo (Mt 16,24).

Muito mais duro, porém, será de ouvir aquela sentença final: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno (Mt 25,41).

Pois os que agora ouvem e seguem, docilmente, a palavra da cruz, não recearão então a sentença da eterna condenação.

Este sinal da cruz estará no céu, fardo maior te impões; contudo é forçoso que a leves. Se rejeitares uma cruz, sem dúvida acharás outra, talvez mais pesada.

6. Pensas tu escapar àquilo de que nenhum mortal pôde eximir-se?

Que santo houve no mundo sem tribulação?

Nem Jesus Cristo, Senhor Nosso, esteve uma hora, em toda a sua vida, sem dor e sofrimento.

Convinha, disse ele, que Cristo sofresse e ressurgisse dos mortos, e assim entrasse na sua glória (Lc 24,26).

Como, pois, buscas tu outro caminho que não seja o caminho real da santa Cruz?

7. Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio; e tu procuras só descanso e gozo?

Andas errado, e muito errado, se outra coisa procuras e não sofrimentos e tribulações; pois toda esta vida mortal está cheia de misérias e assinalada de cruzes.

E quanto mais uma pessoa faz progressos na vida espiritual, tanto maiores cruzes encontra, muitas vezes, porque o amor lhe torna o exílio mais doloroso.

8. Mas, apesar de tantas aflições, o homem não está sem o alívio da consolação, porque sente o grande fruto que lhe advém à alma pelo sofrimento da cruz.

Pois, quando de bom grado a toma às costas, todo o peso da tribulação se lhe converte em confiança na divina consolação.

E quanto mais a carne é cruciada (ferida) pela aflição, tanto mais se fortalece o espírito pela graça interior.

E, às vezes, tanto se fortalece, pelo amor das penas e tribulações que, para conformar-se com a cruz de Cristo, não quisera estar sem dores e sofrimentos, pois julga ser tanto mais aceito a Deus, quanto mais e maiores males sofre por seu amor.

Não é isto virtude humana, mas graça de Cristo, que tanto pode e realiza na carne frágil, que o espírito com ardor abraça e ama o que a natureza aborrece e foge.

9. Não é conforme à inclinação humana levar a cruz, amar a cruz, castigar o corpo e impor-lhe sujeição, fugir às honras, aceitar as injúrias, desprezar-se a si mesmo e desejar ser desprezado, suportar as aflições e desgraças e não almejar prosperidade alguma neste mundo.

Se olhares somente a ti, reconheces que de nada disso és capaz.

Mas, se confiares em Deus, do céu te será concedida a fortaleza, e sujeitar-se-ão ao teu mando o mundo e a carne.

Nem o infernal inimigo temerás, se andares escudado na fé e armado com a cruz de Cristo.

10. Portanto, como bom e fiel servo de Cristo, dispõe-te a levar a cruz do teu Senhor, por teu amor crucificado.

Prepara-te a sofrer muitos contratempos e incômodos nesta vida miserável, pois em toda a parte, onde quer que estiveres, ou te esconderes, os encontrarás da dor e dos males senão sofrê-los com paciência.

Bebe, generoso, o cálice do Senhor, se queres ser seu amigo e ter parte com ele.

Entrega a Deus as consolações, para ele dispor delas como lhe aprouver.

Tu, porém, dispõe-te a suportar as tribulações e considera-as como as consolações mais preciosas, porquanto não têm proporção as penas do tempo com a glória futura (Rom 8,18) que havemos de merecer, ainda que tu só as devesses sofrer todas.

11. Quando chegares a tal ponto que a tribulação te seja doce e amável por amor de Cristo, dá-te por feliz, pois achaste o paraíso na terra.

Enquanto o padecer te é molesto e procuras fugir-lhe, andas mal, e em toda parte te persegue o medo da tribulação.

12. Se te resolveres ao que deves, isto é, a padecer e morrer, logo te sentirás melhor e acharás paz.

Ainda que fosses arrebatado, com S. Paulo, ao terceiro céu, nem por isso estarias livre de sofrer alguma contrariedade.

Eu, diz Jesus, mostrar-lhes-ei quanto terá de sofrer por meu nome (At 9,16).

Não te resta, pois, senão sofrer se pretendes amar e servir a Jesus para sempre.

13. Oxalá fosses digno de sofrer alguma coisa pelo nome de Jesus!

Que grande glória resultaria para ti, que alegria para os santos de Deus, e que edificação para o próximo!

Pois todos recomendam a paciência, ainda que poucos queiram praticá-la.

Com razão devias padecer, de bom grado, este pouco por amor de Cristo, quando muitos sofrem pelo mundo coisas incomparavelmente maiores.

14. Fica sabendo e tem por certo que tua vida deve ser uma morte contínua, e quanto mais cada um morre a si mesmo, tanto mais começa a viver para Deus.

Só é capaz de compreender as coisas do céu quem por Cristo se resolve a sofrer toda adversidade.

Nada neste mundo é mais agradável a Deus nem mais proveitoso a ti, que o sofrer, de bom grado, por Cristo.

E se te dessem a escolha, antes deverias desejar sofrer adversidade, por amor de Cristo, do que ser recreado com muitas consolações porque assim serias mais conforme a Cristo, e mais semelhante a todos os santos.

Porquanto não consiste nosso merecimento e progresso espiritual em ter muitas doçuras e consolações, mas em sofrer grandes angústias e tribulações.

15. Se houvera coisa melhor e mais proveitosa para a salvação dos homens do que o padecer, Cristo, de certo, o teria ensinado com palavras e exemplo.

Pois claramente exorta seus discípulos e quantos o desejam seguir a que levem a cruz, dizendo: Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo, tome sua cruz, e siga-me (Lc 9,23).

Seja, pois, de todas as lições e estudos este o resultado final: Cumpre-nos passar por muitas tribulações, para entrar no reino de Deus (At 14,21).