CISTERCIENSES

ABADIA CISTERCIENSE DE ITAPORANGA-SP

(A igreja do cabeçalho é dessa abadia).

O CLAUSTRO

CISTERCIENSES

(DO SITE ABADIA DE ITAPORANGA)

QUEM SÃO OS CISTERCIENSES

Os cistercienses são herdeiros de uma da mais belas tradições espirituais da Igreja. Pode-se mesmo falar de uma escola cisterciense de espiritualidade, pois há um grupo notável de autores, sobretudo no século XII, com uma temática de grande uniformidade. O maior nome é, sem dúvida, Bernardo de Claraval.


Qual a sua mensagem? Os cistercienses combinavam dois elementos da tradição monástica: uma componente de vida eremítica – a solidão e o silêncio em que viviam os monges para dedicar-se à oração – e a vida fraterna proposta pela Regra de São Bento que, por sua vez, realiza o ideal da vida apostólica, ou seja, a unanimidade de coração e alma da comunidade primitiva de Jerusalém em torno dos Apóstolos, uma existência em que o amor de Deus transborda em amor fraterno e comunhão.


Dentro de um quadro de austeridades que compreendem não só o afastamento do mundo (porém não um desinteresse pelo mundo em suas carências e aflições), mas também o despojamento da pobreza e da simplicidade, um regime alimentar sóbrio e a fecunda monotonia do trabalho manual, unidas a um intenso ritmo de oração (comunitária – o ofício divino recitado em coro – e individual) e a lectio divina (leitura meditada que leva à oração, sobretudo usando a Sagrada Escritura), o monge deveria encontrar a Deus.


De fato, os cistercienses encontravam-se com Deus em Cristo e seus escritos falam abundantemente deste encontro de amor. O claustro é, então, nesta perspectiva, um paraíso, porque é o lugar em que o homem reencontra sua harmonia, perdida pelo pecado e o afastamento de Deus. No claustro, o homem está a sós com Deus e pode viver a perfeição da caridade, também nas relações fraternas. Não é ocasional o fato de os cistercienses terem sido doutores da amizade espiritual.


Por tudo isso, os mosteiros cistercienses tornaram-se um sinal eloquente do absoluto de Deus que merece a consagração total da vida humana na profissão monástica. Ainda hoje os mosteiros cistercienses desejam viver e transmitir essa herança, apresentando-se como centros de irradiação no ambiente em que estão implantados. Ao longo do tempo, os monges assumiram encargos diversos na Igreja.


Assim, nem todos os mosteiros da Ordem exercem o mesmo tipo de atividades. Há os que se dedicam a certas obras de apostolado externo, como a pastoral paroquial e a educação da juventude, outros acolhem grupos para retiros espirituais ou entregam-se exclusivamente à vida contemplativa, fazendo desta sua principal forma de expressão da caridade cristã. Seja como for, os mosteiros cistercienses querem dar testemunho de uma existência sobrenatural, em que Deus é buscado em primeiro lugar e tudo se ordena em função desta busca. Mediante sua intercessão e sua irradiação, os monges querem levar todos os homens a participar de sua vocação.


SÃO BENTO


Os séculos IV e V conhecerão a expansão do monaquismo, surgido já no século III, no Egito, por toda a Cristandade, inclusive no Ocidente de cultura latina. Santo Agostinho, que foi batizado em 387, viveu com companheiros uma existência de tipo monástico e escreveu uma regra de vida comum.


Outros nomes importantes, no Ocidente, foram S. Martinho que fundou mosteiros na França e Jerônimo, que pregou o ascetismo em Roma e viveu como monge na Palestina. Ainda na França, tiveram grande influência na difusão da instituição monástica Cassiano, Honorato de Lérins, Cesário de Arles, sobretudo por seus escritos e regras monásticas.


Enfim, nas últimas décadas do século V, já se havia construído uma sólida tradição de vida monástica, tanto no Ocidente como no Oriente, onde S. Basílio Magno, no século anterior, tornou-se o grande legislador monástico. É precisamente neste contexto que surge a figura de Bento de Núrsia, um jovem de classe alta que abandona seus estudos em Roma para fazer-se eremita numa gruta nas imediações de Subiaco. Com o passar do tempo, afluem numerosos discípulos e Bento torna-se pai de monges e fundador de mosteiros.


Após uma longa experiência como abade, não isenta de vicissitudes e dificuldades, S. Bento fixa-se em Monte Cassino, onde funda um mosteiro e escreve a sua famosa regra monástica que estava destinada a tornar-se o código de vida de praticamente todos os mosteiros do Ocidente cristão. A tradição admite que S. Bento nasceu em torno de 480, escreveu sua regra por volta de 530, vindo a falecer pouco depois. O papa Gregório Magno foi seu biógrafo, deixando-nos o único testemunho escrito a respeito de sua vida e virtudes, ainda que não estritamente histórico, no sentido moderno do termo.


A grande importância de S. Bento reside no fato de que, usando o melhor da tradição monástica anterior, tanto do Ocidente como do Oriente, compôs uma regra notável por seu equilíbrio e sabedoria espiritual, aliás fruto também de sua longa experiência como pai de monges.


Além disso, sua regra é profundamente evangélica, centrada em Cristo - nada antepor a Cristo é um de seus refrões - e permeada de uma delicada atenção para com a pessoa humana, ou, como diríamos hoje, de cunho personalista. S. Bento soube abrandar algumas asperezas do monaquismo contemporâneo, sem ceder em nada na elevação do ideal espiritual.


Como apresentar, de forma breve, esta Regra tão cheia de sabedoria espiritual? Antes de tudo é preciso deixar falar seu texto. As primeiras palavras do Prólogo são, ao mesmo tempo, um convite e um programa de vida:“Escuta, filho, os preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa fielmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência.


A ti, pois, se dirige, agora, minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei.”


O capítulo 58, que trata da maneira de receber os que desejam ingressar no mosteiro, precisa, um pouco mais, o destinatário daquele convite inicial:


“ Seja designado para eles um dos mais velhos, que seja apto a obter o progresso das almas e se dedique a eles (isto é, os que desejam ingressar no mosteiro) com todo o interesse. Que haja solicitude em ver se procura verdadeiramente a Deus, se é solícito para com o ofício divino (ou seja, a oração que os monges rezam no coro várias vezes ao dia), a obediência e os opróbrios (as coisas difíceis que põem à prova nosso amor próprio).”


Portanto, o convite destina-se simplesmente aos que buscam verdadeiramente a Deus, não a si próprios ou outras coisas fora de Deus.


E o que aprenderá e deverá viver no mosteiro? De acordo com o capítulo 72, a caridade perfeita dentro da comunidade fraterna que encontrará no mosteiro:


“Assim como há um zelo mau, de amargura, que separa de Deus e conduz ao inferno, assim também há um zelo bom, que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. Exerçam, portanto, os monges este zelo com amor ferventíssimo, isto é, antecipem-se uns aos outros em honra.


Tolerem pacienciosissimamente suas fraquezas, quer do corpo, quer do caráter; rivalizem em prestar mútua obediência; ninguém procure aquilo que julga útil para si, mas, principalmente o que o é para o outro; ponham em ação de forma desinteressada a caridade fraterna; temam a Deus com amor; amem ao seu Abade com sincera e humilde caridade; nada absolutamente anteponham a Cristo – que nos conduza juntos para a vida eterna.”


Aparece, aqui, a figura do Abade, importantíssima na Regra, pois a ele cabe conduzir, em nome do Cristo, o rebanho que lhe foi confiado no mosteiro. São Bento, dirigindo-se ao abade, no capítulo 64, pede-lhe que:


“...saiba convir-lhe mais servir que presidir.”


“Odeie os vícios, ame os irmãos.”


“...faça prevalecer sempre a misericórdia sobre o julgamento.”


“...não...permita que os vícios sejam nutridos, mas que os ampute prudentemente e com caridade...”


e, enfim:


“Assumindo esse e outros testemunhos da discrição, mãe das virtudes, equilibre tudo de tal modo que haja o que os fortes desejam e que os fracos não fujam; precipuamente, conserve em tudo a presente Regra...”


Por conseguinte, no mosteiro, vive-se sob uma regra e um abade, no quadro da comunidade fraterna. O abade interpreta e aplica a regra às situações concretas, mas a regra fornece o enquadramento dentro do qual todos, inclusive o abade, devem agir.


São Bento é otimista e quer infundir esperança, sabe que propõe algo difícil – a busca da caridade perfeita através da obediência e da renúncia de si mesmo, na imitação de Cristo, que tornam o monge humilde – mas crê que o monge pode alcançar sua meta, se for fiel e perseverante (isto é, se não fugir logo, “tomado de pavor, do caminho da salvação que nunca se abre senão por estreito início”, conforme ensina no final do Prólogo), com a proteção da graça divina, como dizem as últimas palavras da Regra no capítulo 73:


“Tu, pois, quem quer que sejas, que te apressas para a pátria celeste, realiza, com o auxílio de Cristo, esta mínima Regra de iniciação aqui escrita e, então, por fim, chegarás, com a proteção de Deus, aos maiores cumes da doutrina e das virtudes de que falamos acima. Amém.”


Ainda que nos séculos que se seguiram a S. Bento, houvesse, no monaquismo do Ocidente, grande variedade de regras e observâncias monásticas, sua Regra acabou por impor-se, seja por suas próprias qualidades, seja pela ação de Bento de Aniane que, tendo obtido a confiança do imperador Luiz , o Piedoso, influenciou a legislação referente à vida monástica no sentido de conferir-lhe o papel de código exclusivo para reger a vida dos mosteiros. Estamos, então, no início do século IX, quando a instituição monástica, velha de alguns séculos, já experimentou, por mais de uma vez, a necessidade de reforma.

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SÃO BERNARDO DE CLARAVAL


Ainda que o Abade de Claraval não pertença ao grupo de fundadores do Mosteiro de Cister, sua importância para a Ordem é tão grande, que, desde muito cedo, falou-se nos cistercienses como os filhos de S. Bernardo. Por isso parece justificável uma pequena digressão para apresentá-lo mais detalhadamente. Bernardo nasceu em 1090 no castelo de Fontaines, do qual seu pai era o senhor.


Certamente tratava-se de uma pequena fortificação para a defesa avançada de Dijon, capital da Borgonha. Cavaleiro a serviço do Duque da Borgonha, Tecelino era casado com Alete de Montbard. Embora sua família pertencesse à pequena nobreza, por sua ascendência, sobretudo do lado materno, Bernardo parece ter sido ligado à grande nobreza e talvez mesmo à realeza, incluindo a casa ducal da Borgonha. Seus diversos laços de parentesco, segundo alguns estudiosos, teriam sido de grande ajuda para sua atuação nos diversos empreendimentos a que esteve ligado.


A formação de Bernardo foi feita em Chatillon, onde os cônegos da igreja de Saint Vorles possuíam uma bem conceituada escola. Destinado inicialmente a uma carreira clerical, passou por um processo de conversão e decidiu entrar no Mosteiro de Cister, justamente por sua reputação de rigor e santidade de vida. Bernardo desejava então morrer para o mundo e ocultar-se numa existência humilde, dedicada inteiramente a Deus.


A maioria dos historiadores dos inícios de Cister admite que seu ingresso no Novo Mosteiro tenha ocorrido em 1113. Sabe-se que nesse ano Cister fundou sua primeira filha, La Ferté, o que indicaria que a comunidade estava em crescimento e em condição de expandir-se. Qual a relação de S. Bernardo com essa fundação? Seus biógrafos afirmam que entrou em Cister com trinta companheiros, muitos dos quais eram seus parentes, incluindo alguns de seus irmãos.


Mais que isso, Bernardo foi o seu líder espiritual, pois atuou de forma a convencê-los a ingressar na vida monástica e, por alguns meses, exerceu o papel de seu formador, transmitindo seus próprios ideais ao grupo que já vivia em comum, preparando-se para sua admissão no Novo Mosteiro. Discute-se hoje a afirmação desses primeiros biógrafos e de uma longa tradição, segundo a qual Cister foi salva da extinção pelo ingresso de Bernardo e de seu grupo.


De fato, se o mosteiro não recrutava e caminhava inexoravelmente para seu fim, de onde lhe vinham as forças para fundar uma nova abadia? Há porém quem sustente, em amparo da tese tradicional, que a fundação de La Ferté foi feita em previsão do acolhimento do grupo de Bernardo que já estaria em contacto com Cister e seu abade Estêvão Harding. Contudo, mesmo se La Ferté não dependeu da entrada daquele grupo e Cister não estava a ponto de desaparecer, todos concordam que o impacto de Bernardo e de seus companheiros foi decisivo para sua expansão posterior, incluindo as fundações de Pontigny (1114), Morimond e Clairvaux ou Claraval (1115), a testa da qual o jovem Bernardo foi colocado como abade. Bernardo e seus companheiros terão daí por diante uma considerável influência na Ordem em formação, sobretudo no plano dos ideais.


Voltando porém à pessoa de Bernardo, sua personalidade extremamente rica e complexa tem despertado o interesse dos historiadores ou dos estudiosos da espiritualidade de todas as épocas. Ainda na atualidade, regularmente são lançadas publicações sobre sua vida ou obra. Aliás, falar sobre o Abade de Claraval de forma compreensiva é tarefa difícil e arriscada, pois muitos e diversos são os aspectos a considerar.


Pode-se abordar o monge e o abade, com seu exemplo de vida e sua doutrina espiritual que deixa entrever o místico, mas não se pode esquecer o homem público e o reformador, o escritor genial - talvez o maior de seu tempo - ou o homem sensível e de intenso relacionamento humano. Sabe-se que seu desejo inicial de humilhação e ocultamento não pôde ser realizado.


Desde muito cedo Bernardo destacou-se, primeiro como apologista e difusor do monaquismo reformado de Cister, depois, a partir de seu envolvimento na defesa da legitimidade da eleição do papa Inocêncio II, tornou-se uma personalidade de projeção européia. A promoção dessa causa colocou-o em contacto com reis e príncipes e a deposição de Anacleto que se havia imposto como papa em Roma, deve-se em grande parte a sua atuação. Desde então o prestígio de S. Bernardo não conheceu limites. Sua atuação no plano eclesial mais amplo foi marcada pelos ideais da Reforma Gregoriana.


Seu zelo pela reforma da Igreja levou-o a interferir em diversas questões, seja corrigindo e admoestando bispos - certa vez escreveu ao arcebispo de Sens, seu próprio metropolita, que a sede episcopal que ocupava exigia um homem de relevantes méritos e lamentava não encontrá-los nele - e soberanos, seja combatendo erros doutrinais e heresias. A carta 238, a primeira das muitas que escreveu ao papa Eugênio III, seu antigo discípulo e monge de Claraval, é muito clara quanto às suas preocupações:


“Quem me dera poder contemplar, antes de minha morte, a volta da Igreja aos belos tempos apostólicos, quando estendia as redes para apanhar almas e não para pescar riquezas de ouro e prata.”


Embora estivesse consciente do papel próprio do monge, sua atividade externa que o levou freqüentes vezes para fora do claustro foi movida pela caridade e o desejo de servir à Igreja. Deve ser observado, porém, que sua ação não teria nenhuma repercussão se não estivesse baseada na sua autoridade moral e na reputação de virtude de que gozava. Sua vasta correspondência - mais de quinhentas cartas foram conservadas - mostra-o em contacto com as mais diversas categorias de pessoas, religiosos e religiosas, prelados, papas, nobres, reis e rainhas, dando a perceber a grande ascendência que tinha sobre muitos de seus correspondentes.


S. Bernardo foi procurado para dirimir conflitos, efetuar reconciliações, opinar sobre questões teológicas, confortar e dirigir pessoas que depositavam nele toda sua confiança. A ele coube, por incumbência do papa Eugênio III, pregar a Segunda Cruzada, vista por Bernardo antes como empreendimento espiritual e uma causa justa do que como empresa bélica ou de conquista. Enfim, pode-se dizer que foi canonizado, ainda em vida, por seus contemporâneos, que viam nele, mais do que o grande abade e pregador que falava com autoridade a reis e papas, o modelo acabado de santidade.


Por isso mesmo, Guilherme de Saint-Thierry, um dos mais fecundos e cultos autores espirituais da época, seu grande amigo e também abade, mas depois simples monge cisterciense, iniciou, ainda enquanto Bernardo vivia, sua biografia, certo de estar narrando a vida de um santo. Eis aqui um trecho deste escrito, denominado Vita Prima, onde Guilherme narra seu primeiro encontro com o ainda jovem abade de Claraval, em convalescença numa pequena cabana próxima ao mosteiro, em razão de seu esgotamento causado por austeridades excessivas:


“ Tendo entrado nessa cabana real, ao considerar tanto a habitação, como aquele que ali estava, senti-me penetrado de um tão grande respeito que, invoco a Deus por testemunha, era como se tivesse subido ao seu altar sagrado. Experimentava tão grande felicidade em contemplar esse homem e um tal desejo de compartilhar sua pobreza e a simplicidade de sua habitação que, se me fosse dada a escolha, nada teria desejado mais que permanecer sempre a seu lado para servi-lo.”


Incansável foi também o promotor da reforma monástica. Muito da intensa atividade de S. Bernardo explica-se pelo desejo de difundir a vida cisterciense e fazer crescer a filiação de sua querida Abadia de Claraval . Nesse campo sua atuação foi prodigiosa. O ritmo de expansão da Ordem Cisterciense durante sua vida nunca mais foi atingido. Bernardo pôs a serviço dessa causa seu talento extraordinário de escritor e teve o mérito de dar forma e expressão, de maneira eloquente e atrativa, ao ideal de Cister. Uma célebre passagem de sua carta 142 tornou-se para a posteridade uma espécie de definição da vida cisterciense:


“Nossa maneira de viver é de abnegado serviço, de humildade, de pobreza voluntária. É a obediência, paz e alegria no Espírito Santo. Nossa vida é estar sob um mestre, um abade, uma regra e uma disciplina. Nossa vida é aplicar-se ao silêncio, praticar o jejum, as vigílias, orações, trabalho manual e sobretudo seguir o mais excelente caminho que é a caridade. Em todas essas observâncias, ir crescendo dia-a-dia e nelas perseverar até o último dia.”


Mas o monge cheio de ardor cuja ascese rigorosa comprometeu para sempre a saúde, soube também ser um pai espiritual cheio de ternura, que lamenta estar fora do mosteiro e longe de seus monges de Claraval. Da Itália, escreveu certa vez a Claraval, na carta 143, que, enquanto seus filhos choram pela ausência de um só, ele, Bernardo, deve chorar muito mais, pois é um só a sentir a ausência de todos. De fato, em sua concepção, o mosteiro é uma escola de caridade, onde Cristo é o mestre e a disciplina ministrada é o amor. Exercitando-se no amor mútuo e no amor a Cristo o monge prova ser discípulo da verdade.


No exercício desse encargo de paternidade espiritual, além de sua terna caridade, ajudou-o muito seu conhecimento da alma humana. Seus escritos revelam-no possuidor de fina psicologia , como nas descrições que faz das diversas manifestações do orgulho humano no seu “Tratado dos graus da humildade e da soberba”, sua primeira obra, onde apresenta o itinerário da conversão à união mística com Deus. Eis aqui um trecho cheio de humor em que apresenta o monge tomado pela jactância, o quarto grau da soberba:


“É preciso que fale ou então arrebentará. Tem muito o que dizer e não pode conter-se mais. Tem fome e sede de ouvintes, aos quais lance suas vaidades, a quem declare seus sentimentos e faça conhecer o que é e o quanto vale. Encontrada ocasião de falar, se o assunto tratado são as letras, saem coisas novas e velhas, voam as frases, ressoam empoladas as palavras. Antecipa-se a quem o interroga, responde a quem não lhe pergunta. Ele mesmo pergunta, ele mesmo resolve, interrompendo a frase incompleta do interlocutor.”


Sua vastíssima obra compreende alguns tratados, uma grande coleção de sermões, cartas e outros escritos. A contribuição de Bernardo para a Teologia, sobretudo na Cristologia, ainda está para ser devidamente avaliada. Sua sólida reputação de autor espiritual valeu-lhe o título de doutor da Igreja. Alguns de seus mais belos sermões foram dedicados à Virgem Maria, uma devoção de todos os cistercienses.

Do que escreveu, sobretudo dirigindo-se a monges, pode-se colher algo de seu itinerário espiritual.


O ponto inicial deste parece ter sido um sadio encontro consigo mesmo de maneira a conhecer a própria ambiguidade. Bernardo percebeu certamente em si, nos seus primeiros anos de vida monástica, o homem sujeito a fraquezas e paixões, como ele mesmo o admite nesta passagem de um de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos (s. 16,1):


“Muitas vezes, não me envergonho de dizê-lo, sobretudo no início, quando entrei no Mosteiro, descobria em mim um coração duro e frio...”


Nesse processo de autodescoberta chegou à humildade que define como o conhecimento de si mesmo que torna o homem desprezível a seus próprios olhos. Todavia o autoconhecimento, com todas as decepções em que acarreta, não o levou ao desespero ou ao pessimismo mas projetou-o para Cristo. Assim descreve sua atitude (cf. s. 43,1 sobre o Cântico):


“ Também eu, quando me converti, irmãos, dei-me conta de que me faltava toda espécie de méritos. Em seu lugar tratei de fazer um pequeno ramalhete, para colocar junto ao meu peito, contendo todas ansiedades e amarguras de meu Senhor:...as bofetadas, as troças, as acusações, os cravos e todos os demais sofrimentos que sabemos ter padecido até a saciedade....para a salvação da humanidade.”


Bernardo, o amigo de Cristo, ascendeu na vida espiritual através da humildade e da confiança em sua misericórdia e seu amor. Por essa sadia ascese, que o fez olhar com simpatia e compaixão para seus irmãos, em quem via a mesma fragilidade que soube reconhecer em si, abriu-se a uma caridade mais perfeita e tornou-se mais capaz de receber os dons de Deus. Em um texto composto na última etapa de sua vida, certamente expressou algo do que viveu em seu íntimo (cf. Sermão sobre o Cântico 74, 5-6):


“ Ocorre às vezes que a alma é de tal forma arrastada para fora de si, separando-se de seus sentidos corporais, que não sente mais a si mesma, pois só é capaz de sentir o Verbo. Isto se realiza quando o espírito, encantado com a doçura do Verbo inefável, rouba-se por assim dizer a si mesmo, ou melhor, é arrebatado e tirado a si para gozar do Verbo.”


Num outro plano, encontramos o homem que se revela em toda sua sensibilidade afetiva, através de grandes e ternas amizades. Durante sua vida Bernardo esteve ligado intimamente a várias pessoas, homens e mulheres. Em suas amizades o natural - afeição, simpatia, afinidades - está ligado ao sobrenatural, os amigos e amigas eram amados em Deus. É assim que podia escrever à duquesa Emengarda da Bretanha, na carta 116:


“Se pudesses ler em meu coração o que aí o dedo de Deus dignou-se escrever quanto à minha afeição por ti...”


Bernardo, cuja saúde era precária desde a juventude, faleceu afinal em 1153, venerado como um santo e rodeado de seus monges em Claraval. Era então, segundo a expressão de Galand de Reigny, também cisterciense, o homem “cuja face todo o mundo desejava contemplar.”



(DO SITE ABADIA DE ITAPORANGA)

QUEM SÃO OS CISTERCIENSES

Os cistercienses são herdeiros de uma da mais belas tradições espirituais da Igreja. Pode-se mesmo falar de uma escola cisterciense de espiritualidade, pois há um grupo notável de autores, sobretudo no século XII, com uma temática de grande uniformidade. O maior nome é, sem dúvida, Bernardo de Claraval. 


Qual a sua mensagem? Os cistercienses combinavam dois elementos da tradição monástica: uma componente de vida eremítica – a solidão e o silêncio em que viviam os monges para dedicar-se à oração – e a vida fraterna proposta pela Regra de São Bento que, por sua vez, realiza o ideal da vida apostólica, ou seja, a unanimidade de coração e alma da comunidade primitiva de Jerusalém em torno dos Apóstolos, uma existência em que o amor de Deus transborda em amor fraterno e comunhão. 


Dentro de um quadro de austeridades que compreendem não só o afastamento do mundo (porém não um desinteresse pelo mundo em suas carências e aflições), mas também o despojamento da pobreza e da simplicidade, um regime alimentar sóbrio e a fecunda monotonia do trabalho manual, unidas a um intenso ritmo de oração (comunitária – o ofício divino recitado em coro – e individual) e a lectio divina (leitura meditada que leva à oração, sobretudo usando a Sagrada Escritura), o monge deveria encontrar a Deus.


De fato, os cistercienses encontravam-se com Deus em Cristo e seus escritos falam abundantemente deste encontro de amor. O claustro é, então, nesta perspectiva, um paraíso, porque é o lugar em que o homem reencontra sua harmonia, perdida pelo pecado e o afastamento de Deus. No claustro, o homem está a sós com Deus e pode viver a perfeição da caridade, também nas relações fraternas. Não é ocasional o fato de os cistercienses terem sido doutores da amizade espiritual.


Por tudo isso, os mosteiros cistercienses tornaram-se um sinal eloquente do absoluto de Deus que merece a consagração total da vida humana na profissão monástica. Ainda hoje os mosteiros cistercienses desejam viver e transmitir essa herança, apresentando-se como centros de irradiação no ambiente em que estão implantados. Ao longo do tempo, os monges assumiram encargos diversos na Igreja. 


Assim, nem todos os mosteiros da Ordem exercem o mesmo tipo de atividades. Há os que se dedicam a certas obras de apostolado externo, como a pastoral paroquial e a educação da juventude, outros acolhem grupos para retiros espirituais ou entregam-se exclusivamente à vida contemplativa, fazendo desta sua principal forma de expressão da caridade cristã. Seja como for, os mosteiros cistercienses querem dar testemunho de uma existência sobrenatural, em que Deus é buscado em primeiro lugar e tudo se ordena em função desta busca. Mediante sua intercessão e sua irradiação, os monges querem levar todos os homens a participar de sua vocação.


SÃO BENTO


Os séculos IV e V conhecerão a expansão do monaquismo, surgido já no século III, no Egito, por toda a Cristandade, inclusive no Ocidente de cultura latina. Santo Agostinho, que foi batizado em 387, viveu com companheiros uma existência de tipo monástico e escreveu uma regra de vida comum. 


Outros nomes importantes, no Ocidente, foram S. Martinho que fundou mosteiros na França e Jerônimo, que pregou o ascetismo em Roma e viveu como monge na Palestina. Ainda na França, tiveram grande influência na difusão da instituição monástica Cassiano, Honorato de Lérins, Cesário de Arles, sobretudo por seus escritos e regras monásticas.


Enfim, nas últimas décadas do século V, já se havia construído uma sólida tradição de vida monástica, tanto no Ocidente como no Oriente, onde S. Basílio Magno, no século anterior, tornou-se o grande legislador monástico. É precisamente neste contexto que surge a figura de Bento de Núrsia, um jovem de classe alta que abandona seus estudos em Roma para fazer-se eremita numa gruta nas imediações de Subiaco. Com o passar do tempo, afluem numerosos discípulos e Bento torna-se pai de monges e fundador de mosteiros.


Após uma longa experiência como abade, não isenta de vicissitudes e dificuldades, S. Bento fixa-se em Monte Cassino, onde funda um mosteiro e escreve a sua famosa regra monástica que estava destinada a tornar-se o código de vida de praticamente todos os mosteiros do Ocidente cristão. A tradição admite que S. Bento nasceu em torno de 480, escreveu sua regra por volta de 530, vindo a falecer pouco depois. O papa Gregório Magno foi seu biógrafo, deixando-nos o único testemunho escrito a respeito de sua vida e virtudes, ainda que não estritamente histórico, no sentido moderno do termo.


A grande importância de S. Bento reside no fato de que, usando o melhor da tradição monástica anterior, tanto do Ocidente como do Oriente, compôs uma regra notável por seu equilíbrio e sabedoria espiritual, aliás fruto também de sua longa experiência como pai de monges.


Além disso, sua regra é profundamente evangélica, centrada em Cristo - nada antepor a Cristo é um de seus refrões - e permeada de uma delicada atenção para com a pessoa humana, ou, como diríamos hoje, de cunho personalista. S. Bento soube abrandar algumas asperezas do monaquismo contemporâneo, sem ceder em nada na elevação do ideal espiritual. 


Como apresentar, de forma breve, esta Regra tão cheia de sabedoria espiritual? Antes de tudo é preciso deixar falar seu texto. As primeiras palavras do Prólogo são, ao mesmo tempo, um convite e um programa de vida:“Escuta, filho, os preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa fielmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência. 


A ti, pois, se dirige, agora, minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei.” 


O capítulo 58, que trata da maneira de receber os que desejam ingressar no mosteiro, precisa, um pouco mais, o destinatário daquele convite inicial: 


“ Seja designado para eles um dos mais velhos, que seja apto a obter o progresso das almas e se dedique a eles (isto é, os que desejam ingressar no mosteiro) com todo o interesse. Que haja solicitude em ver se procura verdadeiramente a Deus, se é solícito para com o ofício divino (ou seja, a oração que os monges rezam no coro várias vezes ao dia), a obediência e os opróbrios (as coisas difíceis que põem à prova nosso amor próprio).” 


Portanto, o convite destina-se simplesmente aos que buscam verdadeiramente a Deus, não a si próprios ou outras coisas fora de Deus.


E o que aprenderá e deverá viver no mosteiro? De acordo com o capítulo 72, a caridade perfeita dentro da comunidade fraterna que encontrará no mosteiro: 


“Assim como há um zelo mau, de amargura, que separa de Deus e conduz ao inferno, assim também há um zelo bom, que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. Exerçam, portanto, os monges este zelo com amor ferventíssimo, isto é, antecipem-se uns aos outros em honra. 


Tolerem pacienciosissimamente suas fraquezas, quer do corpo, quer do caráter; rivalizem em prestar mútua obediência; ninguém procure aquilo que julga útil para si, mas, principalmente o que o é para o outro; ponham em ação de forma desinteressada a caridade fraterna; temam a Deus com amor; amem ao seu Abade com sincera e humilde caridade; nada absolutamente anteponham a Cristo – que nos conduza juntos para a vida eterna.” 


Aparece, aqui, a figura do Abade, importantíssima na Regra, pois a ele cabe conduzir, em nome do Cristo, o rebanho que lhe foi confiado no mosteiro. São Bento, dirigindo-se ao abade, no capítulo 64, pede-lhe que: 


“...saiba convir-lhe mais servir que presidir.” 


“Odeie os vícios, ame os irmãos.” 


“...faça prevalecer sempre a misericórdia sobre o julgamento.” 


“...não...permita que os vícios sejam nutridos, mas que os ampute prudentemente e com caridade...” 


e, enfim: 


“Assumindo esse e outros testemunhos da discrição, mãe das virtudes, equilibre tudo de tal modo que haja o que os fortes desejam e que os fracos não fujam; precipuamente, conserve em tudo a presente Regra...” 


Por conseguinte, no mosteiro, vive-se sob uma regra e um abade, no quadro da comunidade fraterna. O abade interpreta e aplica a regra às situações concretas, mas a regra fornece o enquadramento dentro do qual todos, inclusive o abade, devem agir.


São Bento é otimista e quer infundir esperança, sabe que propõe algo difícil – a busca da caridade perfeita através da obediência e da renúncia de si mesmo, na imitação de Cristo, que tornam o monge humilde – mas crê que o monge pode alcançar sua meta, se for fiel e perseverante (isto é, se não fugir logo, “tomado de pavor, do caminho da salvação que nunca se abre senão por estreito início”, conforme ensina no final do Prólogo), com a proteção da graça divina, como dizem as últimas palavras da Regra no capítulo 73: 


“Tu, pois, quem quer que sejas, que te apressas para a pátria celeste, realiza, com o auxílio de Cristo, esta mínima Regra de iniciação aqui escrita e, então, por fim, chegarás, com a proteção de Deus, aos maiores cumes da doutrina e das virtudes de que falamos acima. Amém.” 


Ainda que nos séculos que se seguiram a S. Bento, houvesse, no monaquismo do Ocidente, grande variedade de regras e observâncias monásticas, sua Regra acabou por impor-se, seja por suas próprias qualidades, seja pela ação de Bento de Aniane que, tendo obtido a confiança do imperador Luiz , o Piedoso, influenciou a legislação referente à vida monástica no sentido de conferir-lhe o papel de código exclusivo para reger a vida dos mosteiros. Estamos, então, no início do século IX, quando a instituição monástica, velha de alguns séculos, já experimentou, por mais de uma vez, a necessidade de reforma.

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SÃO BERNARDO DE CLARAVAL


Ainda que o Abade de Claraval não pertença ao grupo de fundadores do Mosteiro de Cister, sua importância para a Ordem é tão grande, que, desde muito cedo, falou-se nos cistercienses como os filhos de S. Bernardo. Por isso parece justificável uma pequena digressão para apresentá-lo mais detalhadamente. Bernardo nasceu em 1090 no castelo de Fontaines, do qual seu pai era o senhor. 


Certamente tratava-se de uma pequena fortificação para a defesa avançada de Dijon, capital da Borgonha. Cavaleiro a serviço do Duque da Borgonha, Tecelino era casado com Alete de Montbard. Embora sua família pertencesse à pequena nobreza, por sua ascendência, sobretudo do lado materno, Bernardo parece ter sido ligado à grande nobreza e talvez mesmo à realeza, incluindo a casa ducal da Borgonha. Seus diversos laços de parentesco, segundo alguns estudiosos, teriam sido de grande ajuda para sua atuação nos diversos empreendimentos a que esteve ligado.


A formação de Bernardo foi feita em Chatillon, onde os cônegos da igreja de Saint Vorles possuíam uma bem conceituada escola. Destinado inicialmente a uma carreira clerical, passou por um processo de conversão e decidiu entrar no Mosteiro de Cister, justamente por sua reputação de rigor e santidade de vida. Bernardo desejava então morrer para o mundo e ocultar-se numa existência humilde, dedicada inteiramente a Deus. 


A maioria dos historiadores dos inícios de Cister admite que seu ingresso no Novo Mosteiro tenha ocorrido em 1113. Sabe-se que nesse ano Cister fundou sua primeira filha, La Ferté, o que indicaria que a comunidade estava em crescimento e em condição de expandir-se. Qual a relação de S. Bernardo com essa fundação? Seus biógrafos afirmam que entrou em Cister com trinta companheiros, muitos dos quais eram seus parentes, incluindo alguns de seus irmãos.


Mais que isso, Bernardo foi o seu líder espiritual, pois atuou de forma a convencê-los a ingressar na vida monástica e, por alguns meses, exerceu o papel de seu formador, transmitindo seus próprios ideais ao grupo que já vivia em comum, preparando-se para sua admissão no Novo Mosteiro. Discute-se hoje a afirmação desses primeiros biógrafos e de uma longa tradição, segundo a qual Cister foi salva da extinção pelo ingresso de Bernardo e de seu grupo. 


De fato, se o mosteiro não recrutava e caminhava inexoravelmente para seu fim, de onde lhe vinham as forças para fundar uma nova abadia? Há porém quem sustente, em amparo da tese tradicional, que a fundação de La Ferté foi feita em previsão do acolhimento do grupo de Bernardo que já estaria em contacto com Cister e seu abade Estêvão Harding. Contudo, mesmo se La Ferté não dependeu da entrada daquele grupo e Cister não estava a ponto de desaparecer, todos concordam que o impacto de Bernardo e de seus companheiros foi decisivo para sua expansão posterior, incluindo as fundações de Pontigny (1114), Morimond e Clairvaux ou Claraval (1115), a testa da qual o jovem Bernardo foi colocado como abade. Bernardo e seus companheiros terão daí por diante uma considerável influência na Ordem em formação, sobretudo no plano dos ideais.


Voltando porém à pessoa de Bernardo, sua personalidade extremamente rica e complexa tem despertado o interesse dos historiadores ou dos estudiosos da espiritualidade de todas as épocas. Ainda na atualidade, regularmente são lançadas publicações sobre sua vida ou obra. Aliás, falar sobre o Abade de Claraval de forma compreensiva é tarefa difícil e arriscada, pois muitos e diversos são os aspectos a considerar. 


Pode-se abordar o monge e o abade, com seu exemplo de vida e sua doutrina espiritual que deixa entrever o místico, mas não se pode esquecer o homem público e o reformador, o escritor genial - talvez o maior de seu tempo - ou o homem sensível e de intenso relacionamento humano. Sabe-se que seu desejo inicial de humilhação e ocultamento não pôde ser realizado. 


Desde muito cedo Bernardo destacou-se, primeiro como apologista e difusor do monaquismo reformado de Cister, depois, a partir de seu envolvimento na defesa da legitimidade da eleição do papa Inocêncio II, tornou-se uma personalidade de projeção européia. A promoção dessa causa colocou-o em contacto com reis e príncipes e a deposição de Anacleto que se havia imposto como papa em Roma, deve-se em grande parte a sua atuação. Desde então o prestígio de S. Bernardo não conheceu limites. Sua atuação no plano eclesial mais amplo foi marcada pelos ideais da Reforma Gregoriana.


Seu zelo pela reforma da Igreja levou-o a interferir em diversas questões, seja corrigindo e admoestando bispos - certa vez escreveu ao arcebispo de Sens, seu próprio metropolita, que a sede episcopal que ocupava exigia um homem de relevantes méritos e lamentava não encontrá-los nele - e soberanos, seja combatendo erros doutrinais e heresias. A carta 238, a primeira das muitas que escreveu ao papa Eugênio III, seu antigo discípulo e monge de Claraval, é muito clara quanto às suas preocupações:


“Quem me dera poder contemplar, antes de minha morte, a volta da Igreja aos belos tempos apostólicos, quando estendia as redes para apanhar almas e não para pescar riquezas de ouro e prata.”


Embora estivesse consciente do papel próprio do monge, sua atividade externa que o levou freqüentes vezes para fora do claustro foi movida pela caridade e o desejo de servir à Igreja. Deve ser observado, porém, que sua ação não teria nenhuma repercussão se não estivesse baseada na sua autoridade moral e na reputação de virtude de que gozava. Sua vasta correspondência - mais de quinhentas cartas foram conservadas - mostra-o em contacto com as mais diversas categorias de pessoas, religiosos e religiosas, prelados, papas, nobres, reis e rainhas, dando a perceber a grande ascendência que tinha sobre muitos de seus correspondentes. 


S. Bernardo foi procurado para dirimir conflitos, efetuar reconciliações, opinar sobre questões teológicas, confortar e dirigir pessoas que depositavam nele toda sua confiança. A ele coube, por incumbência do papa Eugênio III, pregar a Segunda Cruzada, vista por Bernardo antes como empreendimento espiritual e uma causa justa do que como empresa bélica ou de conquista. Enfim, pode-se dizer que foi canonizado, ainda em vida, por seus contemporâneos, que viam nele, mais do que o grande abade e pregador que falava com autoridade a reis e papas, o modelo acabado de santidade. 


Por isso mesmo, Guilherme de Saint-Thierry, um dos mais fecundos e cultos autores espirituais da época, seu grande amigo e também abade, mas depois simples monge cisterciense, iniciou, ainda enquanto Bernardo vivia, sua biografia, certo de estar narrando a vida de um santo. Eis aqui um trecho deste escrito, denominado Vita Prima, onde Guilherme narra seu primeiro encontro com o ainda jovem abade de Claraval, em convalescença numa pequena cabana próxima ao mosteiro, em razão de seu esgotamento causado por austeridades excessivas:


“ Tendo entrado nessa cabana real, ao considerar tanto a habitação, como aquele que ali estava, senti-me penetrado de um tão grande respeito que, invoco a Deus por testemunha, era como se tivesse subido ao seu altar sagrado. Experimentava tão grande felicidade em contemplar esse homem e um tal desejo de compartilhar sua pobreza e a simplicidade de sua habitação que, se me fosse dada a escolha, nada teria desejado mais que permanecer sempre a seu lado para servi-lo.”


Incansável foi também o promotor da reforma monástica. Muito da intensa atividade de S. Bernardo explica-se pelo desejo de difundir a vida cisterciense e fazer crescer a filiação de sua querida Abadia de Claraval . Nesse campo sua atuação foi prodigiosa. O ritmo de expansão da Ordem Cisterciense durante sua vida nunca mais foi atingido. Bernardo pôs a serviço dessa causa seu talento extraordinário de escritor e teve o mérito de dar forma e expressão, de maneira eloquente e atrativa, ao ideal de Cister. Uma célebre passagem de sua carta 142 tornou-se para a posteridade uma espécie de definição da vida cisterciense:


“Nossa maneira de viver é de abnegado serviço, de humildade, de pobreza voluntária. É a obediência, paz e alegria no Espírito Santo. Nossa vida é estar sob um mestre, um abade, uma regra e uma disciplina. Nossa vida é aplicar-se ao silêncio, praticar o jejum, as vigílias, orações, trabalho manual e sobretudo seguir o mais excelente caminho que é a caridade. Em todas essas observâncias, ir crescendo dia-a-dia e nelas perseverar até o último dia.”


Mas o monge cheio de ardor cuja ascese rigorosa comprometeu para sempre a saúde, soube também ser um pai espiritual cheio de ternura, que lamenta estar fora do mosteiro e longe de seus monges de Claraval. Da Itália, escreveu certa vez a Claraval, na carta 143, que, enquanto seus filhos choram pela ausência de um só, ele, Bernardo, deve chorar muito mais, pois é um só a sentir a ausência de todos. De fato, em sua concepção, o mosteiro é uma escola de caridade, onde Cristo é o mestre e a disciplina ministrada é o amor. Exercitando-se no amor mútuo e no amor a Cristo o monge prova ser discípulo da verdade. 


No exercício desse encargo de paternidade espiritual, além de sua terna caridade, ajudou-o muito seu conhecimento da alma humana. Seus escritos revelam-no possuidor de fina psicologia , como nas descrições que faz das diversas manifestações do orgulho humano no seu “Tratado dos graus da humildade e da soberba”, sua primeira obra, onde apresenta o itinerário da conversão à união mística com Deus. Eis aqui um trecho cheio de humor em que apresenta o monge tomado pela jactância, o quarto grau da soberba:


“É preciso que fale ou então arrebentará. Tem muito o que dizer e não pode conter-se mais. Tem fome e sede de ouvintes, aos quais lance suas vaidades, a quem declare seus sentimentos e faça conhecer o que é e o quanto vale. Encontrada ocasião de falar, se o assunto tratado são as letras, saem coisas novas e velhas, voam as frases, ressoam empoladas as palavras. Antecipa-se a quem o interroga, responde a quem não lhe pergunta. Ele mesmo pergunta, ele mesmo resolve, interrompendo a frase incompleta do interlocutor.”


Sua vastíssima obra compreende alguns tratados, uma grande coleção de sermões, cartas e outros escritos. A contribuição de Bernardo para a Teologia, sobretudo na Cristologia, ainda está para ser devidamente avaliada. Sua sólida reputação de autor espiritual valeu-lhe o título de doutor da Igreja. Alguns de seus mais belos sermões foram dedicados à Virgem Maria, uma devoção de todos os cistercienses.

Do que escreveu, sobretudo dirigindo-se a monges, pode-se colher algo de seu itinerário espiritual. 


O ponto inicial deste parece ter sido um sadio encontro consigo mesmo de maneira a conhecer a própria ambiguidade. Bernardo percebeu certamente em si, nos seus primeiros anos de vida monástica, o homem sujeito a fraquezas e paixões, como ele mesmo o admite nesta passagem de um de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos (s. 16,1):


“Muitas vezes, não me envergonho de dizê-lo, sobretudo no início, quando entrei no Mosteiro, descobria em mim um coração duro e frio...”


Nesse processo de autodescoberta chegou à humildade que define como o conhecimento de si mesmo que torna o homem desprezível a seus próprios olhos. Todavia o autoconhecimento, com todas as decepções em que acarreta, não o levou ao desespero ou ao pessimismo mas projetou-o para Cristo. Assim descreve sua atitude (cf. s. 43,1 sobre o Cântico):


“ Também eu, quando me converti, irmãos, dei-me conta de que me faltava toda espécie de méritos. Em seu lugar tratei de fazer um pequeno ramalhete, para colocar junto ao meu peito, contendo todas ansiedades e amarguras de meu Senhor:...as bofetadas, as troças, as acusações, os cravos e todos os demais sofrimentos que sabemos ter padecido até a saciedade....para a salvação da humanidade.”


Bernardo, o amigo de Cristo, ascendeu na vida espiritual através da humildade e da confiança em sua misericórdia e seu amor. Por essa sadia ascese, que o fez olhar com simpatia e compaixão para seus irmãos, em quem via a mesma fragilidade que soube reconhecer em si, abriu-se a uma caridade mais perfeita e tornou-se mais capaz de receber os dons de Deus. Em um texto composto na última etapa de sua vida, certamente expressou algo do que viveu em seu íntimo (cf. Sermão sobre o Cântico 74, 5-6):


“ Ocorre às vezes que a alma é de tal forma arrastada para fora de si, separando-se de seus sentidos corporais, que não sente mais a si mesma, pois só é capaz de sentir o Verbo. Isto se realiza quando o espírito, encantado com a doçura do Verbo inefável, rouba-se por assim dizer a si mesmo, ou melhor, é arrebatado e tirado a si para gozar do Verbo.”



Num outro plano, encontramos o homem que se revela em toda sua sensibilidade afetiva, através de grandes e ternas amizades. Durante sua vida Bernardo esteve ligado intimamente a várias pessoas, homens e mulheres. Em suas amizades o natural - afeição, simpatia, afinidades - está ligado ao sobrenatural, os amigos e amigas eram amados em Deus. É assim que podia escrever à duquesa Emengarda da Bretanha, na carta 116:


“Se pudesses ler em meu coração o que aí o dedo de Deus dignou-se escrever quanto à minha afeição por ti...”



Bernardo, cuja saúde era precária desde a juventude, faleceu afinal em 1153, venerado como um santo e rodeado de seus monges em Claraval. Era então, segundo a expressão de Galand de Reigny, também cisterciense, o homem “cuja face todo o mundo desejava contemplar.”


SIMPOSIO CISTERCIENSE 

900 ANOS DE APROVAÇÃO DA CARTA DA CARIDADE

Congregação Brasileira dos Cistercienses - Hardehausen-Itatinga/ SP 

Maio de 2019

 

Tema:  Uma família de mosteiros: unidade, diversidade, perspectivas

Introdução

            Certamente, um Simpósio é uma realização de longo alcance nas duas direções: tanto para traz, quanto para frente e como uma âncora, funda-se na realidade atual para fecundar o presente. Busca na história razões que, por força de circunstâncias, foram esquecidas ou pelo desgaste de nossas humanas condições se perderam no tempo, ou simplesmente, deixaram de exercer o seu vigor. Vendo assim, queremos resgatar o fio condutor, a herança ofuscada no tempo e com o mesmo desejo e intensidade, queremos olhar para Aquele que é o autor do tempo e da História, e aclamarmos: Senhor, estamos aqui! Ajude-nos a acertarmos a direção, concede-nos um futuro e deixe-nos perpetuar na História, edificados no seu Reino.

É nesse contexto de alegria e gratidão que queremos exalar o sentido de celebrarmos o Jubileu da aprovação da Carta da Caridade, reconhecendo as graças de Deus que nos sustenta em nossa vocação, apesar de nossas fraquezas. Fazendo uma pausa de reflexão analisamos a direção em que estamos seguindo e, ao mesmo tempo, aproveitarmos dessa oportunidade para revigorarmos as nossas forças e assim, avançarmos na conversatio morum, no seguimento de Cristo e no serviço à Igreja.

            Partindo dessas razões pelas quais estamos aqui, dentre muitos outros acontecimentos, alargamos os nossos horizontes com as seguintes intuições: em 29 de junho de 2016, o Papa Francisco publicou a Vultum Dei Quaerere, como uma chamada especial para a valorização da vida consagrada contemplativa, reconhecendo o seu papel fundamental de especial serviço prestado à Deus e ao mundo. E no dia 08 de dezembro de 2018, a celebração da beatificação dos 19 Mártires da Argélia, dos quais, 07 eram monges Trapistas de Notre-Dame de l'Atlas, em Tibhirine, Argélia, caracterizados como “memória Evangélica da Igreja, mártires do diálogo e da simplicidade”, um testemunho retumbante para a toda a humanidade, particularmente, a nós Cistercienses, inspirando-nos no valor da fidelidade e no dom de si, na entrega total ao Senhor. Eles também seguiam a Regra de São Bento, eram como nós - também Cistercienses, e viviam a mesma espiritualidade...

Assim, a celebração jubilar de 900 anos da aprovação da Carta da Caridade, um Documento importante para a nossa Ordem, ao qual podemos atribuir, é como o nosso Registro de nascimento, o nascimento de um Novo Mosteiro, que pela fidelidade e entusiasmo espiritual, expandiu o seu odor de santidade, vindo a se tornar uma Ordem, que, surpreendentemente, em menos de um século já contava com mais de 300 Mosteiros, inspirados no mesmo ideal. 

Hoje, nós monges e monjas, continuadores desse inicio prodigioso, novamente somos convocados: Absculta, o fili praccepta magistri... , a estarmos na dominici scola servicii, em comunhão com a Igreja[1] e queremos refletir o tema que nos foi proposto: Uma Família de Mosteiros, unidade, diversidade e perspectivas.

A)    Contexto (ex curso - Aproximação)

O tema proposto: Uma Família de Mosteiros...,  antes de prosseguir, gostaria de questionar: de que família estamos falando? Talvez, se pegássemos um Atlas Cisterciense dos inícios da Ordem, ficaríamos encantados, constatando o número de Mosteiros, a grande expansão da Ordem em forma de “pontinhos”, ou outra “figura geométrica” ilustrativa, identificando cada comunidade, residência, priorado ou abadia. Poderíamos fazer um estudo dessa realidade, seria muito interessante, mas não passaríamos de uma constatação histórica do passado. Certamente tal estudo tem o seu valor, mas ainda ficaríamos somente com os “pontinhos”. Talvez, para o Mundo, numa dimensão horizontal da História, não sejamos tanto mais do que isso, apenas um aglomerado de pontinhos.... Entretanto, necessitamos ir além, devemos aprofundar a sua essência e sua consistência, conforme constatamos nesta expressiva ocasião jubilar, cientes que o mais importante é buscar o significado dessa História, suas causas e consequências e, como ela poderá ser útil em nossos dias.

 

a)      O termo Família: raízes bíblicas

Podemos indagar o tema a partir da sua realidade mais frequente. Iniciando pela via natural, podemos ampliar o nosso horizonte sobre o mesmo constatando-o mais realista, e com mais facilidade atinjamos a meta espiritual e sobrenatural que buscamos. Então: O que é a Família? Qual a sua origem e seu significado?

A família é a primeira comunidade da raça humana. Ela surgiu antes de todas as instituições. Antes que se formassem os povos e as nações. Ela é o núcleo básico da sociedade. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. E Deus os abençoou…”[2]. E Jesus eleva essa união natural à dignidade de sacramento indissolúvel[3], simbolizando a sua união com a Igreja, por quem Ele deu a sua vida[4].

O Novo Catecismo a define desta forma: “Ao criar o homem e a mulher, Deus instituiu a família humana e dotou-a de sua constituição fundamental. Seus membros são pessoas iguais em dignidade. Para o bem comum de seus membros e da sociedade, a família implica uma diversidade de responsabilidades, de direitos e de deveres”[5]

Assim, a família é um projeto divino, na criação tem a sua origem em Deus, está fundamentada e orientada em Cristo na sua realização terrena busca a felicidade e está destinada a atingir sua meta na plenitude da eternidade em Cristo. Deus não é solidão, mas unidade, comunhão de amor e comunicação na Trindade. A Família é plasmada nesse mistério de unidade, comunhão de amor e comunicação. No mistério da Trindade as nossas Famílias tem a sua origem, seu modelo perfeito, sua motivação mais profunda e seu destino mais elevado. 

Mas nem tudo é maravilha, assim como logo após a criação o homem rompeu-se com o seu criador, perdendo o Paraíso[6] e já na primeira Família da Bíblia encontramos o fratricídio[7], as nossas famílias ainda hoje se encontram bastante fragilizadas. Entretanto, amplamente comprovado no decurso da História, a Igreja ainda realiza um grande esforço por resgatar o seu significado original e dar-lhes e seu sentido verdadeiro[8]. Olhando socialmente, como podemos entender a família, hoje?

b)     O termo Família: panorama social, político e cultural[9]

Para Aristóteles, no livro sobre a Política, a “família é a comunidade que se constitui para a vida cotidiana segundo a natureza”, e tendo em vista as necessidades humanas, constitui os vilarejos e, no conjunto das famílias e das cidades, ordenado como o escopo da felicidade de todos, temos a constituições do Estado[10], cuja meta é conexa com o desenvolvimento e uso da parte nobre do homem: a razão e o cultivo das virtudes; em sua criação, o homem está orientado ou ‘destinado’ para o bem. O que Aristóteles chama de “natureza”, para os Padres da Igreja e Teólogos medievais vem atribuído como o “ordenamento divino do mundo”, orientados para o bem na dimensão terrena e, finalmente, a plenitude do bem na vida eterna.

Embora saibamos dos grandes e calorosos debates sobre essas concepções e de todo o processo de desenvolvimento da política como ciência e do direito que lhe fornece o sustento, salientamos que o discurso sobre a família assume relevância e significado em seus confins: do “ordenamento da natureza” passamos para o estado e a política. Entramos na monarquia e seu conflito com a burguesia e desta, com a situação de confusão e crise da família na modernidade, com as suas trágicas consequências nos nossos dias. Salientando a sua importância, mencionamos[11] alguns filósofos influentes referentes ao assunto. Por outro lado, também observamos o empenho em defesa da família[12], entretanto, parece que a família se torna objeto do Estado.

Antropologicamente falando, se reconhece o desafio e a complexidade da situação familiar, visto em sua composição histórica de parentela e suas relações sociais diversas. Assim, como já mencionamos, do “natural” se passou ao social, acrescentamos também agora que, do “natural” se constitui o cultural. Entretanto, notamos que nem sempre tudo é pacífico, às vezes prevaleceu o individualismo, predominou o machismo, a situação financeira e econômica falou mais alto e a influência de tantos outros fatores...

Sociologicamente falando, constatamos hoje, que as nossas famílias vivem uma grande crise, enfrentam uma degradação geral de ideais e de valores, é vitima de um sistema enganador que marcha em busca da felicidade somente na linha horizontal. Buscam um suporte que lhes de significado mas não encontram, porque buscam em lugares e de modos errados[13]. Consequentemente, isso reflete no âmbito espiritual individual e familiar, experimentamos a negação da transcendência humana, do processo natural de vida familiar e do social.

Nessa linha de argumentação, teríamos muito a dizer, mas nos restringimos à essas informações gerais sobre o termo Família, o que achamos suficiente como pre-requisito para argumentar o nosso tema: Uma Família de Mosteiros.

 

1.      Ideal: Tradição e desenvolvimento, em torno da RB

 

Ainda no contexto do apogeu de Cluny (sec. X-XI) surgem alguns personagens inspirados e novos movimentos com iniciativa de renovação, mais tarde as Ordens monásticas, dentre as mais importantes, citamos algumas: São Romualdo fundador dos Camaldulenses (1015) e juntamente, São Pedro Damião (1007-1072), grande personagem camaldolensi de Fonti Avelana (1047) que, com o seu testemunho e escritos, contribuiu não só na reforma do monaquismo, mas também na renovação da vida eclesial; São João Gualberto fundador dos Valambrosanos (1038); e ainda, temos São Bruno, com uma Regra própria, desenvolveu um novo estilo monástico de vida eremítica: os Cartuxos (1084).

            Dentre os diversos movimentos de renovação monástica desse período, saindo do Mosteiro de Molesme, encontramos a mais forte manifestação de reforma na fundação de um “Novo Mosteiro” inspirado na pureza da Regra de São Bento e na Tradição monástica antiga, o que se dá com a fundação de Citeaux (Cister), em 1098, conduzida por São Roberto e seus companheiros que, logo em seguida, a pedido da comunidade de Molesme, retornou para o seu Mosteiro de origem. 

Em julho de 1099, como sucessor de Roberto em Citeaux, foi eleito o abade Alberico, “amante da Regra e dos Irmãos”; finalizou os seus dias em 26 de janeiro de 1108, na tristeza da carestia e da falta de vocações. A sucessão, transmitindo essa tristeza deixada, ocorreu com a eleição de Estevão Harding, o qual permaneceu no cargo até 1133. Estevão manteve o mesmo ideal no espirito de fidelidade dos abades Roberto e Alberico, abandonando-se à providencia divina diante das dificuldades. Como uma resposta de confirmação celeste ao novo estilo de vida assumido pelos monges de Cister, obteve em 1113, a chegada de novas vocações, o jovem Bernardo e seus 29 companheiros. Assim, do Novo Mosteiro, se origina também uma nova fundação, chamada La Ferté, que significa a alegria do ressurgimento e a fecundidade da graça divina. 

            Inicia-se em Cister um processo acelerado de expansão. Em 1114, ocorre a fundação de Pontigny e em 1115, as fundações de Morimond e Claraval. Sucessivamente, essas Abadias fundam novos Mosteiros, contando em 1151, com 333 Abadias e 11.600 membros, aproximadamente. É impressionante notar o desenvolvimento internacional da Ordem. Ao mesmo tempo se torna um desafio, como manter os princípios do Novo Mosteiro? Como conduzir e garantir a unidade dessas casas? Nesse período, Citeaux contava com 24 casas, diretamente afiliadas e assim, respectivamente, Pontigny – 16; Morimond – 27 e Claraval - mais de 80. 

Gradativamente, o aumento das novas fundações começa a diminuir. Um século depois, em 1.252, contava com 647 Abadias e 20.000 membros. Entretanto, em 1500, a Ordem contava aproximadamente, com 654 Abadias femininas[14] e em 1.675, a Ordem contava com 742 Mosteiros masculinos[15]. Assim, forma-se uma grande rede internacional de Mosteiros em toda a Europa. 

Conforme constatamos, é surpreendente o aumento das vocações e o numérico das novas fundações e dos Mosteiros que aderem à observância monástica Cisterciense nos inícios da Ordem. Qual a razão desse fenômeno monástico, principalmente nos séculos XII e XIII? Quais os elementos que lhes dão garantia e sustentabilidade à nova Instituição?

Tal realidade se constata numericamente, mas não se menciona numericamente; menciona-se, ou melhor, compreende-se organicamente e qualitativamente. É a qualidade de vida e a organização estruturada de nossos primeiros Pais que produz um efeito impactante, se irradia e atrai com a força da graça divina um grande número de novas vocações, proporcionando o surpreendente aumento de novas Fundações. Esse desenvolvimento extraordinário ocorre graças ao fervor com o qual todos os Mosteiros abraçam o mesmo ideal de santidade presente na nova forma de vida em Citeaux e na sucessão das novas Fundações. A adesão ao ideal inicial proporciona uma coesão interna nas comunidades e entre os diversos Mosteiros em expansão, proporcionando um alto grau de fervor espiritual e de vida fraterna.

Dentro do contexto das Reformas monásticas, acima mencionadas no século XI, Citeaux e as novas Fundações no século XII, tem como eixo central a observância fiel na vivência da Regra de São Bento. O principio gerador e norteador desse movimento ascendente da Ordem Cisterciense encontra-se na sua espiritualidade expressa através dos seguintes elementos: conformidade com a Regra, na austeridade de vida e no trabalho manual, na simplicidade e pobreza a exemplo de Cristo pobre, na autenticidade e nas observâncias monásticas no plano espiritual e litúrgico, na solidão que conduz o homem à busca de Deus, abertos à fraternidade com os irmãos. Podemos também acrescentar a dedicação à lectio divina, conforme se constata no legado do Patrimônio Cisterciense e nos valores constantes na Carta de Caridade e nos outros Documentos Primitivos da Ordem[16], condensados e aprovados pelos Capítulos Gerais e autoridades eclesiásticas. 

Outro elemento importante desse momento histórico foi a capacidade dos Cistercienses em “ler os sinais dos tempos” e discernir entre os elementos fundamentais da Tradição e a necessária evolução da vida monástica, seja no âmbito de irradiação na vida eclesial, seja na vida social, buscando uma resposta adequada à evolução de seu tempo[17]. O legado do Patrimônio Cisterciense demonstra essa capacidade de discernimento e de adequação à realidade como um princípio de renovação fiel à Tradição.

Referindo-se à essa capacidade de adequação, constatamos que os Cistercienses deixam de receber crianças como vocacionados à vida monástica, mas por outro lado, abrem a possibilidade para a recepção de irmãos provenientes das diferentes classes sociais: intelectuais, clérigos, agricultores e artesãos. Dentro do claustro, no cotidiano, coexistem dois grupos diferentes: os irmãos de coro e os irmãos conversos, reunidos para uma vida de simplicidade e oração, a serviço da glória divina e da caridade fraterna. Segundo São Bernardo, o claustro é a via mais segura para a salvação. A Ordem sintoniza-se no âmbito das mudanças sociais, econômicas e demográficas de sua época. Para ajudar no melhor desempenho das atividades cotidianas, sejam dentro ou fora do Mosteiro, os irmãos conversos, geralmente em grande número, assumem uma forma de vida mais simples, vinculados ao Abade, conforme a realidade claustral[18].

Em relação à fidelidade e à Tradição, São Bento deixa em aberto a questão quando no capitulo 73,5 da RB, cita as “Colações dos Padres, as Instituições e suas vidas, e também a Regra de nosso Pai Basílio”, assim, ele nos remete ao monarquismo anterior à sua Regra, caracterizados em duas dimensões: a via eremítica, surgida entre os Padres do deserto e a via cenobítica, ligada à São Basílio. Ambas, por sua natureza e finalidade espiritual, estão diretamente vinculadas à Tradição apostólica.

Outro elemento consistente e de fundamental importância que marca a direção do Novo Mosteiro e das novas fundações é processo de desenvolvimento do principio de governo caracterizado no início como monárquico e depois a criação, passagem e consolidação de um novo princípio, o de autocracia, ou seja, a descentralização do poder. Na linha cluniacense, segue-se vida monacal com um estilo parecido ou caracterizado pela Monarquia, Cluny centralizava e liderava uma grande rede de Mosteiros que estavam à ele submetidos. Citeaux cria e segue uma estrutura diferente, um caminho descentralizado, onde prevalece não as características dos princípios monárquicos, mas as características de uma autocracia com um sistema bem definido de representações[19]

Entretanto, salientando a importância da RB, no início da Carta da Caridade, Estatuto 1 cita a RB 61 e Pr 3, onde se menciona que somos servos (inúteis) do único Rei e Senhor, constatamos: “Entretanto, ... a fim de que por nossa solicitude, possam retornar à retidão de vida, no caso em que, Deus nos livre, tivessem ousado se afastar, por mínimo que fosse, de seu santo projeto de vida e da observância da santa Regra”[20]. Também: “Eis agora a nossa vontade: nós queremos que se observe em tudo a Regra do bem aventurado Bento,... que não se introduza nenhum sentido diferente na interpretação da Santa Regra”[21]. E, sobre o Capítulo Geral, também se determina:“...eles tratarão da salvação de suas almas, decidirão sobre aquilo que deve ser corrigido ou acrescentado na observância da santa Regra”[22]. Prosseguindo, se um abade desprezar a Regra, deverá ser corrigido e se persistir, deverá ser deposto[23].

          São Bernardo exerce um papel fundamental nesse processo de desenvolvimento, tanto por sua eloquência, como pelo seu testemunho de santidade; exerce grande influência no âmbito social, político e religioso, mas, sobretudo, através de seus escritos, expande sua irradiação espiritual na Igreja, particularmente, no âmbito monástico. 

          Contudo o quanto foi exposto, percebe-se que entre os Cistercienses existe uma sólida convicção de seu ideal enraizado na Tradição; profundo senso de obediência e vínculo com a Igreja; compreensão da realidade, acolhida das diferentes classes para a vida claustral e abertura para o desenvolvimento e a própria organização interna da Ordem. Vejamos mais detalhadamente alguns elementos desse contexto. 


2.      Pilares da Carta de Caridade: notas fundamentais

Desde o inicio, os fundadores de Cister se preocuparam em deixar registrado o seu ideal monástico, o percurso histórico do Novo Mosteiro e o estilo de vida por eles assumido. Conforme acima mencionado, o Novo Mosteiro se inspira na fidelidade à RB. Atento aos sinais dos tempos e ao rápido desenvolvimento das novas fundações, houve a necessidade de ordenamento de questões não previstas na RB: tais como a manutenção dos princípios de unidade e de fidelidade na Ordem nascente, a isenção de interferências externas seja das autoridades eclesiásticas, seja por parte da nobreza referindo-se aos benfeitores, as relações entre as novas fundações e a casa mãe. 

Já, na carta do Bispo Gautier, da Diocese de Chalon, ao Papa Pascal, pedindo a proteção ao Novo Mosteiro, o Bispo reafirma tal estilo de vida, mencionando outras autoridades eclesiásticas e, em mérito destes, recomenda ao Papa aprovação da comunidade com o seu ideal nascente. Em resposta, o Papa concede o Privilégio Romano. Não se trata de isenção de jurisdição, mas da proteção necessária, garantindo-lhes a paz e a tranquilidade aos membros do Novo Mosteiro, assegurando-lhes a não interferência de autoridades externas. O Papa concede-lhes a bênção da liberdade necessária para poderem prosseguir no seu renovado ideal de vida monástica.

Conforme a RB, cada Mosteiro tem o seu governo independente, cujo abade, vem eleito pela própria comunidade. Para os Cistercienses era importante garantir esse princípio da RB, e igualmente, sustentar a fidelidade aos valores e o ideal inicial. Diante da centralização de Cluny, os Cistercienses rejeitam a subordinação do governo centralizado e através da Carta de Caridade, conservam a autonomia de governo prevista na RB e estabelecem o amor recíproco como princípio nas relações fraternas e entre as casas: “e assim, neste decreto, [...] elucidaram, estatuíram e transmitiram [..] qual pacto de amizade, qual modo de vida, que tipo de caridade se deveriam unir indissoluvelmente em espírito, seus monges corporalmente espalhados pelas abadias em diferentes pontos da região”. Prosseguindo o texto: “rejeitando o fardo de qualquer exigência material, procuram exclusivamente a caridade e a utilidade das almas nas coisas divinas e materiais”[24].

Podemos enumerar três pilares inovadores, como base de sustentação da Ordem, presentes na Carta de Caridade: a relação fraterna pelo sistema de filiação, a visita anual do abade da casa mãe para as casas filhas como uma forma de correção e manutenção da fidelidade e o Capítulo Geral, como Assembleia legislativa e de máxima importância, para manutenção da unidade. Esses elementos constituem uma dinâmica constante, garantindo a unidade, respeitando a diversidade e promovendo a caridade entre os membros e as Abadias da Ordem.

Conforme estabelecido na Carta de Caridade, o abade da casa mãe se responsabilizava pela casa filha e exercia seu ministério através da visita pastoral anual. O abade visitador devia estar atento e examinar com a comunidade a fidelidade à RB e o cumprimento das normas estabelecidas nos Capítulos Gerais. Essas relações criavam um laço Familiar entre os mosteiros, ligados à casa mãe. Cada filiação criava uma nova Família dentro da Ordem, independente das fronteiras políticas ou nacionais. 

Outro elemento fundamental da Carta de Caridade foi o estabelecimento da obrigação de participação no Capítulo Geral. Essa prática iniciou-se com o costume do Abade de Cister, reunindo-se anualmente com os quatro Abades das quatro primeiras fundações: La Ferté, Pontigny, Morimond e Claraval. Sucessivamente, todos os abades, anualmente na data combinada, geralmente iniciando a 13 de setembro, nas vésperas da celebração da Exaltação da Santa Cruz, eram convocados a se reunirem em Capítulo Geral na Abadia de Citeaux. Cabia ao Abade anfitrião, presidir as Sessões, que duravam de sete a dez dias. 

Essa dinâmica de relações permitia a avaliação permanente das fundações e a manutenção dos princípios inspiradores de vida inicial, embora, com o aumento do número de participantes, tenha se tornado a ocasião para tratar apenas de questões formais. Entretanto, devido à internacionalidade da Ordem e às longas distâncias, com o tempo tornou-se cada vez mais difícil a participação de todos os Abades, sem contar que uma ausência prolongada do Pastor em sua casa, não fazia bem ao seu rebanho, isto é, à comunidade. Outro fator de prejuízo eram os custos das viagens. Nos registros do capítulo Geral de 1140, já se estabelece o Definitório, com a participação dos Abades de Citeaux e das quatro primeiras fundações e mais os Abades eleitos, totalizando o numero de 25 representantes tendo em vista facilitar a resolução de casos específicos.

É importante salientar que no Capítulo Geral da Ordem Cisterciense, havia participação cosmopolita, produzia legislação com a diversidade de representações culturais, um momento importante de intercâmbio internacional. O Capítulo Geral anual era o instrumento capaz de manter a coesão espiritual e a disciplina de tão grande organização, que povoava toda a Europa de então. Era a primeira Assembleia legislativa, que se reunia regularmente na Europa que, embora de cunho monástico, havia ao menos algum espaço para informações de âmbito ou de interesse aberto ao publico leigo[25], um princípio da Comunidade Europeia de hoje.

E para finalizar, o Papa Innocêncio III, no IV Concílio de Latrão, realizado em 1215, o Capítulo Geral dos Cistercienses foi reconhecido, aprovado oficialmente e recomendado a todos os Mosteiros desprovidos de uma organização semelhante. 


3.      A Unidade na Diversidade

Pelo conteúdo apresentado, parece ser mais evidente o elemento da unidade que o da diversidade. Entretanto, desde a concepção de Molesme ou a fundação de Citeaux, principalmente com o aumento das novas fundações, são evidentes os elementos da unidade e da diversidade presentes na Ordem nascente.

A unidade se caracteriza nos seguintes elementos: pela adesão e vivencia do mesmo ideal de santidade; pela forma de interpretar a RB, enfatizando o seu aspecto literário e dispensando outros interpretações e comentários; pelos usos e costumes que foram longamente argumentados nos Documentos Primitivos, também já mencionados e ainda, temos que incluir os escritos dos Padres Cistercienses, que deixaram o legado de um grande Patrimônio de espiritualidade para a Ordem e para toda a Igreja. Vastos campos a explorar evidenciando a unidade na Família Cisterciense. 

Enquanto que a diversidade, isenta de qualquer sombra de contradição, se constata de imediato e mais amplamente na forma em que nossos antecessores viviam os próprios elementos constitutivos do ideal cisterciense primitivo, também acima mencionados. Destacamos: o rompimento com o monaquismo tradicional cluniacense e, conforme a via cisterciense, marcado pela descentralização do poder, pela simplicidade, pela autenticidade, pela austeridade e pela solidão. Igualmente, a seriedade na forma de assumir esses valores fundamentais e determinantes da espiritualidade gera a diferença entre os diversos movimentos de reforma que se difundiam na época. Acrescenta-se à esses itens, outros elementos que são inovadores na forma de organizar a comunidade monástica: a abertura da vida monástica às diferentes classes sociais, a abertura àqueles que não tinham recebido instrução na sociedade, formando uma comunidade monástica mais simples no interior do mosteiro ou fora dele, nas granjas e nos campos de trabalho, com a revalorização da agricultura e o aperfeiçoamento de técnicas agrícolas de produção. O desenvolvimento da arquitetura e da literatura, marcados pelos valores fundamentais próprios da reforma cisterciense, cunhando uma teologia e espiritualidade próprias. Ainda devemos recordar os três pilares da Carta de Caridade: sistema de filiação, visita regular e Capítulo Geral anual, com a participação de todos os Abades.

            Analisando esse amplo conjunto de elementos, constatamos que entre os Cistercienses existe unidade com a Tradição monástica que perpassa o arco da história, de antes de São Bento e posterior à ele, até o momento de então. Romper com Cluny e o sistema daquele período, não quer dizer negar a Tradição, mas discernir o que lhes convém, segundo critérios determinados. A unidade se torna mais clara e forte, constatando os elementos da diversidade.

Existe a diversidade, e bem presente por se constituir um novo estilo de vida divinamente inspirado, propondo o ideal de santidade, através do desenvolvimento da espiritualidade com bases sólidas no que se refere à organização de cada Mosteiro e individualmente, na vivência desse mesmo ideal. A diversidade nesse caso, porta o enriquecimento e o crescimento com novo vigor. É isso que constatamos no inicio da Ordem e são esses elementos que justificam o seu rápido desenvolvimento e o impacto causado na sociedade e na Igreja. 

Diante desse quadro panorâmico, com esse amplo elenco, quais as perspectivas para esse Simpósio ou mais precisamente, quais as perspectivas para a nossa vida monástica hoje?

4.      Perspectivas

Inicialmente mencionamos o conceito Família, em suas diversas acepções: sentido bíblico-religioso, filosófico, socio-político e antropológico. Apenas citamos algumas Famílias monásticas em suas origens, no sentido de diferentes ramos do monaquismo, sem o merecido desenvolvimento, pelos limites do nosso espaço. Finalmente, apresentamos alguns aspectos da Família monástica Cisterciense e seu sentido mais estrito nas origens da Ordem, a partir das fundações e das suas ramificações.

            Pela realidade natural e biológica, sabemos que é muito bela a vida em Família, mas em seu cotidiano, a mesma não é fácil, enfrenta diferentes tipos e graus de crises. Exige uma doação contínua, um permanente espírito de sacrifício, de renúncia e de serviço, o que não ofusca o seu significado espiritual, a sua beleza, sua alegria e sua dignidade. Em uma Família, prevalece o princípio do amor.

Em lato senso também constatamos as mesmas exigências e realidade de significados para a vida na Família monástica. O Mosteiro, embora tenha uma constituição diferente e própria, também é uma Família. No inicio da Ordem, o sentido do termo Família estava mais ligado a um grupo de Mosteiros provenientes de uma casa fundadora, a casa mãe. A Carta de Caridade estabelecia a vigilância e o diálogo nas visitas regulares, a fidelidade na observância dos costumes e a caridade fraterna como meio através dos quais se mantinham o fervor inicial e se resolveriam ou se encaminhariam todos os seus problemas e suas dificuldades.

Hoje, dado às circunstâncias e exigências atuais, a Ordem está organizada em Congregações, restando apenas alguns Mosteiros ou localidades que ainda conservam o principio de filiação. Entretanto, com as devidas adequações previstas no Código de Direito Canônico e nas Constituições da Ordem e de cada Congregação, através do Abade Geral e dos Abades Presidentes de cada Congregação, a Ordem ainda conserva o mesmo espírito de fervor inicial e os princípios de atuação e de organização.

            Entretanto, como uma pequena Congregação proveniente de diferentes origens, não ouso oferecer uma proposta e nem dar respostas, pretendemos apenas questionar, de nosso plenário podemos colher pistas importantes a serem assumidas:

1. Hoje, as nossas famílias são vitimas de um sistema social, político e econômico que não respeita os verdadeiros valores de uma vida familiar. Os Mosteiros também são afetados por esses males, pois estão em contato com o mundo e recebem os vocacionados provenientes dessas famílias e muitas vezes, se deixa contaminar e crescer os vícios pessoais e tendências humanas do individualismo, do relativismo, do comodismo, do relaxamento e de outras fragilidades humanas. Então, como criar nos Mosteiros um clima de convivência fraterna onde seja possível superar esses vícios e tendências, resgatando os valores naturais para uma boa convivência humana?

2. A nossa sociedade faz inúmeras ofertas prometendo a felicidade, o sucesso, o bem estar e o prazer, propõem uma vida fácil e imediatista, numa linha horizontal. Os nossos Mosteiros seguem a Regra de São Bento, e conforme a Tradição cisterciense, seguimos o Cristo pobre e humilde, encarnado e crucificado que nos apresenta valores permanentes e eternos, uma linha de seguimento vertical. Considerando a nossa Profissão monástica: a obediência, a estabilidade e a conversatio morum, como resgatar o fervor espiritual e o ideal de santidade de nossos pais na vivência dos valores espirituais que eles cultivaram?

3. A vida Eclesial e os Mosteiros têm uma orientação e tendências naturais próprias. A vida monástica é um sinal profético para a Igreja e para o mundo. Os Cistercienses primitivos identificaram os sinais dos tempos e as tendências da Igreja e da sociedade e, respondendo com sabedoria, adaptaram-se às realidades epocais de forma inovadora, deixando um grande Patrimônio como legado. 

- Como identificar os ‘sinais dos tempos’?

- Como discernir linhas de atuação inovadora para a vida monástica e os nossos Mosteiros, para a Igreja e para a nossa sociedade?

- Qual legado que os nossos Mosteiros estão deixando como Patrimônio à perpetuidade?

 

Pe. João Crisóstomo Rivelino de Almeida, O.Cist.

Itaporanga - SP


[1] O Concílio Vaticano II propõe uma renovação geral à Igreja, mas particularmente, o Decreto Perfectae Caritatis, refere-se diretamente aos religiosos e, consta na PC, 02 “A conveniente renovação da vida religiosa”.

[2] Gn 1, 27s.

[3] Mt 19, 1-9.

[4] Ef 5, 23.

[5] Catecismo da Igreja Católica, n. 2203.

[6] Gn 3, 1ss.

[7] Gn 4, 1ss.

[8] Com o Papa S. João Paulo II, em 1980, tivemos a V Assembleia do Sínodo dos Bispos sobre a Família: “A Missão da Família no mundo contemporâneo”. Em 22 de novembro de 1981 publicou a “Familiaris Consortio” e no artigo 56 podemos ler: “A vocação universal à santidade é dirigida também aos cônjuges…”. Com o Papa Francisco, tivemos a XIV Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, entre os dias 4 e 25 de outubro de 2015, com o tema: "A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo". No dia 18 de outubro de 2015, o Papa Francisco canonizou, entre outros, o casal Luís Martin e Maria Zélia Guérin, (pais de Santa Teresinha). Em 19 de março de 2016, como fruto das duas Assembleias Sinodais, o Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica Amoris Laetitia. Salientamos ainda a importância das celebrações da Semana da Família, da Campanha da Fraternidade, etc...

[9] Apenas citamos linhas gerais ilustrativas, pois não é nosso argumento. 

[10] Buscar em Aristóteles, A República. 

[11] O inglês John Locke (1632-1704), mestre do empirismo e do pensamento liberal: argumenta e distingue o poder paterno e o poder do estado. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) pequena sociedade familiar e a grande sociedade civil, com princípios e finalidades de diferenças radicais. Immanuel Kant (1724-1804) em relação à família, o indivíduo é fruto de um cálculo racional dos meios e dos fins, segue o concepção burguesa da época, onde primeiro se atende o indivíduo em suas necessidades e secundariamente, conforme suas possibilidades e conveniência, coloca-se em relacionamento social. Charles Fourier (1772-1837) utópico, propõe um ordenamento social e divisão de trabalhos de forma igualitária e sobre a família: reconhece seu papel fundamental, mas a deixa a deriva.

[12] George Friedrich Hegel (1770-1831) Família e sociedade civil são reinos particulares diante do Estado. A família é a instituição em que o espírito adquire sua relação com o mundo externo. (HEGEL, 1990, p. 160).

[13] Is 55,8 “Com efeitos, meus pensamentos não são vossos pensamentos...”. 

[14] F. Vongrey e F. Hervay, Notes critiques sur l’Atlas de l’Ordre Cistercien, in ASOC 23 (1967) 115-152.

[15] L. J. Lekai, I Cistercensi, Ideali e Realità, Certosa di Pavia 1989, 45-63. Embora tenhamos consultado fontes diversas, sabemos que a estatística e as datas na Ordem, principalmente, no período inicial, é sempre um desafio e difícil de encontrar exatidão.

[16] Dentre outros, a título ilustrativo, mencionamos alguns Documentos: Exordium Parvum: contem 19 capítulos, narrando as circunstâncias da Fundação da Ordem; Exordium Cistercii: redigido pouco depois de 1119; Carta Caritatis: de Estevão Harding, aprovada pelo Papa Calisto II em 23 de dezembro de 1119, descreve as relações entre a casa mãe e as novas fundações, cujo ponto central é a caridade, prosseguindo com outros temas: o funcionamneto da Capítulo Geral, o direito de solucionar os problemas particulares, etc... . Summa Cartae Caritatis, representa uma interpretação à Carta Caritatis. Instituta: agrupamento, no decurso dos anos, das decisões capitulares que se juntavam formando um corpo legislativo, objeto de revisão do Capítulo Geral de 1151, tendo em vista a aprovação do Papa Eugênio III, no ano de 1152. Ecclesiastica officia: usos monásticos e Usus Conversorum: regulamento para os irmãos conversos. Exordium Magnum ou Liber de viris illustribus Ordinis Cistercii: uma espécie de relatório de histórias edificantes, aproximadamente de 1206, por Conrado (+ 1221), monge de Claraval e Abade de Eberbach. Não é possível mencionar algumas polêmicas e estudos de datas e de textos; incluimos anotações pessoais de aulas do Pontifício Ateneo de Santo Anselmo, ano 2010.

[17] G. Tripodi, «Cultura, ideologie e società in Francia nell’età di San Bernardo e di Abelardo», Rivista Cistercense, 5 (1988) 275. É um erro pensar na Idade Medieval como um tempo estático da sociedade. Sob diversos aspectos, já vinha ocorrendo o desenvolvimento social, econômico e cultural em toda a Europa.

[18] C. H. Lawrence, Il Monachesimo Medievale. Forme di vita religiosa in Ocidente, Milano 1993, 241-246.

[19] J. B. van Damme, Les pouvoirs de l’Abbé de Citeaux aux XIIe et XIIIe siécles. ASOC 24 (1968) 47-85.

[20] Carta da Caridade, estatuto 01 e 02.

[21] Carta da Caridade, estatuto 03a.

[22] Carta da Caridade, estatuto 13.

[23] Carta da Caridade, estatuto 14.

[24] Os Cistercienses, Documentos Primitivos, Carta de Caridade, Prólogo.

[25] No Capitulo de 1254, o Papa Innocencio IV enviou uma longa Carta de interesse e utilidade comum, dando explicações da excomunhão aplicada à Frederico II, cf. C. H. Lawrence, Il Monachesimo Medievale. Forme di vita religiosa in Ocidente, Milano 1993, 254.