Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduada em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense. É Mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996), e Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos (2011), na qual estuda as obras poéticas dos afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira em confronto com a do angolano Agostinho Neto.
QUER SABER MAIS? ACESSE:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa6851/conceicao-evaristo
https://brasilescola.uol.com.br/literatura/conceicao-evaristo.htm
https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/conceicao-evaristo/
https://www.facebook.com/ceicaoevaristo/
https://www.youtube.com/watch?v=QXopKuvxevY
A noite não adormece nos olhos das mulheres
Em memória de Beatriz Nascimento
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
– Conceição Evaristo, em Cadernos Negros, vol. 19.
Da calma e do silêncio
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
– Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
Da menina, a pipa
Da menina a pipa
e a bola da vez
e quando a sua íntima
pele, macia seda, brincava
no céu descoberto da rua
um barbante áspero,
másculo cerol, cruel
rompeu a tênue linha
da pipa-borboleta da menina.
E quando o papel
seda esgarçada
da menina
estilhaçou-se entre
as pedras da calçada
a menina rolou
entre a dor
e o abandono.
E depois, sempre dilacerada,
a menina expulsou de si
uma boneca ensangüentada
que afundou num banheiro
público qualquer.
– Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
De mãe
O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.
A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.
Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.
Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.
Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.
Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.
– Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
Do fogo que em mim arde
Sim, eu trago o fogo,
o outro,
não aquele que te apraz.
Ele queima sim,
é chama voraz
que derrete o bivo de teu pincel
incendiando até ás cinzas
O desejo-desenho que fazes de mim.
Sim, eu trago o fogo,
o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.
– Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
Elisa Lucinda nasceu em Vitória no Espírito Santo. É poetisa, jornalista, cantora e atriz brasileira. Idealizadora e fundadora da Casa Poema, a artista tem seu foco de atuação na arte-educação. Com seu jeito ímpar de dizer versos, Elisa faz com que todos entendam seu conteúdo, conheçam e se apaixonem pela beleza da poesia, sendo considerada a artista da sua geração que mais populariza o viver poético.
Além de admirada pelos seus inúmeros espetáculos e recitais em teatros, empresas e escolas do Brasil e no exterior, a atriz também é conhecida pelos seus encantadores papéis no cinema e nas telenovelas da Rede Globo. Elisa possui 12 livros publicados e atualmente se prepara para lançar no segundo semestre de 2014 o seu primeiro romance: “Fernando Pessoa, o Cavaleiro de Nada”, uma autobiografia não autorizada.
A Lua que menstrua – Produção independente- 1992
Sósia dos sonhos – Produção independente
O Semelhante – Ed. Record 1a ed. em 1995
Eu te amo e suas estréias – Ed. Record – lançado em 1999
A Menina Transparente – Ed. Salamandra; (recebeu o Prêmio Altamente Recomendável, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ).
Coleção Amigo Oculto – Ed. Record. Composta pelos livros: “O órfão famoso” – 2002 / Lili, a rainha das escolhas – 2002 / “O menino inesperado” – 2002, “A Dona da Festa” – 2011
50 Poemas Escolhidos pelo Autor/ – Edições Galo Branco – 2004
Contos de Vista – Ed. Global – 2005, primeiro livro de contos da autora.
A Fúria da Beleza – Ed. Record – 2006, primeiro livro de adultos para colorir.
A Poesia do encontro – Elisa Lucinda e Rubem Alves – Ed. Papirus – 2008
Parem de falar mal da rotina – Ed. Leya – Lua de papel – 20101
A Dona da Festa– Grupo Editorial Record/Galerinha Record -2011
Semelhante – sob o selo da gravadora Rob Digital
Euteamo e suas Estréias – sob o selo da gravadora Rob Digital
Notícias de Mim, com poemas da poeta paulista Sandra Falcone, participação de Miguel Falabella, direção e produção de Gerson Steves. O CD é resultado do espetáculo homônimo com roteiro e direção de Steves.
Estação Trem – Música – Realização de Dakar Produções e Poesia Viva Produções. Criado especialmente para a comemoração dos 150 anos da Ferrovia para a Vale do Rio Doce. É o primeiro Cd onde Elisa canta. 2004
• CD “Ô Danada – primeiro cd pelo selo CCC – Centro Cultural Carioca.
QUER SABER MAIS? ACESSE:
https://www.instagram.com/elisalucinda/?hl=pt-br
http://www.mulher500.org.br/elisa-lucinda-1958/
http://dicionariompb.com.br/elisa-lucinda/biografia
Safena
Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.
Da Chegada do amor
Sempre quis um amor
que falasse
que soubesse o que sentisse.
Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.
Sempre quis um amor
que coubesse no que me disse.
Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice
do macho
quanto a sabedoria do sabedor.
Sempre quis um amor cujo
BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
sabor da mesma golada.
Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.
Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.
Sempre quis uma amor
que não se chateasse
diante das diferenças.
Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.
Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto
que ora eu fosse o fácil, o sério
e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.
Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.
Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos.
Sem senãos.
Sempre quis um amor
com definição de quero
sem o lero-lero da falsa sedução.
Eu sempre disse não
à constituição dos séculos
que diz que o “garantido” amor
é a sua negação.
Sempre quis um amor
que gozasse
e que pouco antes
de chegar a esse céu
se anunciasse.
Sempre quis um amor
que vivesse a felicidade
sem reclamar dela ou disso.
Sempre quis um amor não omisso
e que suas estórias me contasse.
Ah, eu sempre quis uma amor que amasse
Poemeto de Amor ao Próximo
Me deixa em paz.
Deixe o meu, o dele, o dos outros em paz!
Qualé rapaz, o que é que você tem com isso?
Por que lhe incomoda o tamanho da minha saia?
Se eu sou índia, se sou negra ou branca,
se eu como com a mão ou com a colher,
se cadeirante, nordestino, dissonante,
se eu gosto de homem ou de mulher,
se eu não sou como você quer?
Não sei por que lhe aborrece
a liberdade amorosa dos seres ao seu redor.
Não sei por que lhe ofende mais
uma pessoa amada do que uma pessoa armada!?
Por que lhe insulta mais
quem de verdade ama do que quem lhe engana?
Dizem que vemos o que somos, por isso é bom que se investigue:
o que é que há por trás do seu espanto,
do seu escândalo, do seu incômodo
em ver o romance ardente como o de todo mundo,
nada demais, só que entre seres iguais?
Cada um sabe o que faz
com seus membros,
proeminências,
seus orifícios,
seus desejos,
seus interstícios.
Cada um sabe o que faz,
me deixe em paz.
Plante a paz.
Esta guerra que não se denomina
mas que mata tantos humanos, estes inteligentes animais,
é um verdadeiro terror urbano e ninguém aguenta mais.
“Conhece-te a ti mesmo”
este continua sendo o segredo que não nos trai.
Então, ouça o meu conselho
deixe que o sexo alheio seja assunto de cada eu,
e, pelo amor de deus,
vá cuidar do seu.
Aviso da lua que menstrua
Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua…
Imagine uma cachoeira às avessas:
Cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
Às vezes parece erva, parece hera
Cuidado com essa gente que gera
Essa gente que se metamorfoseia
Metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
E ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
Mas é outro lugar, aí é que está:
Cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
Que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
Transforma fato em elemento
A tudo refoga, ferve, frita
Ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
É que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
É que tô falando na “vera”
Conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
Delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
Ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
Já se alcança a “cidade secreta”
A atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
Cai na condição de ser displicente
Diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
Que a mulher extrai filosofando
Cozinhando, costurando e você chega com mão no bolso
Julgando a arte do almoço: eca!…
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
Tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
Então esquece de morder devagar
Esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
Chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
Vaca é sua mãe. de leite.
Vaca e galinha…
Ora, não ofende. enaltece, elogia:
Comparando rainha com rainha
Óvulo, ovo e leite
Pensando que está agredindo
Que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
A escritora Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1822, em São Luís, no estado do Maranhão. Por isso, o 11 de março, em sua homenagem, é o Dia da Mulher Maranhense. Mulher negra, filha da escrava alforriada Leonor Felipa dos Reis e, possivelmente, de João Pedro Esteves, um homem rico da região. Além de escritora, foi professora primária, de 1847 a 1881, e musicista.
Úrsula, sua obra mais conhecida, foi publicada em 1859, com o pseudônimo de Uma Maranhense. A partir daí, Maria Firmina dos Reis passou a escrever para vários jornais, nos quais publicou alguns de seus poemas. Escreveu uma novela, um conto, publicou um livro de poesias, além de composições musicais.
Em 1880, adquiriu o título de mestra régia. Nesse mesmo ano, criou uma escola gratuita para crianças, mas essa instituição não durou muito. Por ser uma escola mista, a iniciativa da professora, na época, provocou descontentamento em parte da sociedade do povoado de Maçaricó. Assim, a escritora e professora entrou para a história como a fundadora, segundo Zahidé Lupinacci Muzart (1939-2015), da “primeira escola mista do país”. Já aposentada, continuou lecionando em Maçaricó para filhos de lavradores e fazendeiros.
Morreu em 11 de novembro de 1917. Segundo José Nascimento Morais Filho (1882-1958), estava cega e pobre. Sua obra ficou esquecida até 1962, quando o historiador Horácio de Almeida (1896-1983) colocou a escritora em evidência. Recentemente, as pesquisas sobre a vida e obra de Maria Firmina dos Reis e a divulgação do seu nome intensificaram-se, e, aos poucos, a escritora vai sendo integrada ao cânone literário brasileiro.
QUER SABER MAIS? ACESSE:
https://revistacult.uol.com.br/home/centenario-maria-firmina-dos-reis/
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/322-maria-firmina-dos-reis
https://mundoeducacao.uol.com.br/literatura/maria-firmina-dos-reis.htm
https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2020/05/maria-firmina-reis-primeira-autora-brasileira
https://mariafirmina.org.br/publicacoes-digitalizadas-coletanea/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/mfirmina.html
http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/mariafirmina
MELANCOLIA
Oh! se eu morresse no cair da tarde,
De tarde amena, quando a lua vem
Chovendo prata sobre o liso mar,
Trajando as vestes, qu’a pureza tem.
Então talvez eu merecesse afetos,
Desses qu’apenas alcancei sonhando;
Talvez um pranto bem sentido, e triste,
Meu frio rosto rociasse brando.
A ti poeta ─ mais te vale a morte
Na flor da vida ─ a sepultura, os céus!
Quem sofre a terra te compreende as dores?
Teus sofrimentos, quem compreende? Deus!
Sim, venha a morte libertar-me, amiga
Da triste vida, qu’a ninguém comove…
Bem-vinda sejas ─ teu palor me agrada,
E a crua foice, que tua destra move.
E tu sepulcro, ─ tu gélido, e negro,
Eu te saúdo, oh! companheiro nu!
Talvez meus cantos te penetrem o seio,
Pálido afeto, me dispenses tu.
Não terá prantos sobre a lisa campa,
Quem peito humano a lhe gemer não tem;
Oh! não poeta: ─ se alvorada chora
Bebe esse pranto, qu’adoçar-te vem.
Inda me resta no correr da vida,
Essa esperança de morrer… a só.
Sentida ─ triste, qu’o sofrer ameiga,
Que segue o homem té fundir-se em pó.
Morra eu ao menos no cair da tarde,
A hora maga, que se pensa em Deus,
Em que se escuta misteriosos cantos,
Concertos sacros nos longínquos céus.
Então já queixas não farei da sorte,
Rirei da vida qu’amargar sentia;
Compensa as dores d’um viver sentido,
Morrer a hora do cair do dia.
- In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 220.
O MEU DESEJO
A um jovem poeta guimaraense
Na hora em que vibrou a mais sensível
Corda de tu’alma ─ a da saudade,
Deus mandou-te, poeta, um alaúde,
E disse: Canta amor na soledade.
Escuta a voz do céu, ─ eia, cantor,
Desfere um canto de infinito amor.
Canta os extremos d’uma mãe querida,
Que te idolatra, que te adora tanto!
Canta das meigas, das gentis irmãs,
O ledo riso de celeste encanto;
E ao velho pai, que tanto amor te deu,
Grato oferece-lhe o alaúde teu.
E a liberdade, ─ oh! poeta, ─ canta,
Que fora o mundo a continuar nas trevas?
Sem ela as letras não teriam vida,
Menos seriam que no chão as relvas:
Toma por timbre liberdade, e glória,
Teu nome um dia viverá na história.
Canta, poeta, no alaúde teu,
Ternos suspiros da chorosa amante;
Canta teu berço de saudade infinda,
Funda lembrança de quem está distante:
Afina as cordas de gentis primores,
Dá-nos teus cantos trescalando odores.
Canta do exílio com melífluo acento,
Como Davi a recordar saudade;
Embora ao riso se misture o pranto;
Embora gemas em cruel saudade…
Canta, poeta, ─ teu cantar assim,
Há de ser belo, enlevador, enfim.
Nos teus harpejos, juvenil poeta,
Canta as grandezas que se encerram em Deus,
Do sol o disco, ─ a merencória lua,
Mimosos astros a fulgir nos céus;
Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz,
Raio infinito de esplendente luz.
Canta, poeta, teu cantar singelo,
Meigo, sereno como um riso d’anjos;
Canta a natura, a primavera, as flores,
Canta a mulher a semelhar arcanjos,
Que Deus envia à desolada terra,
Bálsamo santo, que em seu seio encerra.
Canta, poeta, a liberdade, ─ canta.
Que fora o mundo sem fanal tão grato…
Anjo baixado da celeste altura,
Que espanca as trevas deste mundo ingrato.
Oh! sim, poeta, liberdade, e glória
Toma por timbre, e viverás na história.
Eu não te ordeno, te peço,
Não é querer, é desejo;
São estes meus votos ─ sim.
Nem outra coisa eu almejo.
E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta ─ e morrer.
- In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 202-203.
NO ÁLBUM DE UMA AMIGA
D'amiga a existência tão triste, e cansada,
De dor tão eivada, não queiras provar;
Se a custo um sorriso desliza aparente,
Que máguas não sente, que busca ocultar!?...
Os crus dissabores que eu sofro são tantos,
São tantos os prantos, que vivo a chorar,
É tanta a agonia, tão lenta e sentida,
Que rouba-me a vida, sem nunca acabar.
D'amiga a existência
Não queiras provar,
Há nelas tais dores,
Que podem matar.
O pranto é ventura,
Que almejo gozar;
A dor é tão funda,
Que estanca o chorar.
Se intento um sorriso,
Que duro penar!
Que chagas não sinto
No peito sangrar!...
Não queiras a vida
Que eu sofro - levar,
Resume tais dores
Que podem matar.
E eu as sofro todas, e nem sei
Como posso existir!
Vaga sombra entre os vivos, - mal podendo
Meus pesares sentir.
Talvez assim deus queira o meu viver
Tão cheio de amargura.
P'ra que não ame a vida, e não me aterre
A fria sepultura.
- In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 221-222.
ESQUECE-A
Amor é gozo ligeiro,
Mas é grato e lisonjeiro
Como o sorriso infantil;
Promessa doce, e mentida,
Alenta, destrói a vida;
É um delírio febril.
Muito te amei… minha lira,
Que triste agora suspira,
Nesta erma solidão,
Bem sabes ─ ricas de flores,
Cantava os ternos amores,
Do meu terno coração.
Minha afeição era pura.
Não era engano, cordura,
Não era afeto mentido;
Se ela assim te não cativa,
Esquece-a, que sou altiva,
Esquece-a, sim ─ fementido.
- - In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 228.
A DOR, QUE NÃO TEM CURA
“O que mais dói na vida não é ver-se
Mal pago um benefício,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos.
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato
Que as devera beijar.”
G. Dias
De tudo o que mais dói, de quanto é dor
Que não valem nem prantos, nem gemidos,
São afetos imensos, puros, santos
Desprezados – ou mal compreendidos.
É essa a que mais dói a um’alma nobre.
Que desconhece do interesse a lei;
Rica de extremos, não mendiga afetos,
Que é mais altiva que um potente rei.
É essa a dor, que mais nos dói na vida;
É essa a dor, que dilacera a alma:
É essa a dor, que martiriza, e mata.
Que rouba as crenças, o sossego, a calma.
Não sei, se todos no volver dos anos
Sentem-na funda cruciante, atroz
Como eu a sinto… Oh! é martírio – ou vele,
Ou sonhe, – ou vague mediante a sós.
Eu vi fugir-me como foge a vida
Afeto santo de extremosos pais:
Roubou-mos crua, impiedosa morte,
Sem que a movessem meus doridos ais.
Vi nos espasmos de agonia lenta
Morrer aquele, que eu amei na vida…
Trêmulos lábios soluçando – adeus!
Ouviu-lhe esta alma de aflição transida.
Dores são estas, que renascem vivas
A cada hora – que jamais esquecem;
Enchem de luto da existência o livro,
Conosco à campa silenciosa descem.
Ah! quantas vezes, recordando-as hoje,
Dos roxos olhos se me verte o pranto!
Ah! quantas vezes, dedilhando a lira,
Rebelde o peito, não soluça um canto…
Mas, se essas dores despedaçam a alma,
O pranto em baga nos consola a dor:
Numa outra esfera, num perene gozo,
Vivem, partilham divinal amor.
Mas ah! de quanto nos aflige, e mata
É esta a dor, que mais nos dói sofrer;
Cobrar frieza em recompensa a afetos,
No peito amigo estrebuchar, – morrer!
- In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 265-266.
João da Cruz e Sousa nasceu em 24 de novembro de 1861, na cidade catarinense de Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis).
Ele era filho de ex-escravos, mas sua educação foi patrocinada por uma família de aristocratas (antigos proprietários de seus pais). Foi assim que ele estudou no Liceu Provincial de Santa Catarina.
Desde pequeno, tinha uma inclinação para as artes, língua e literatura. Em Santa Catarina trabalhou como escritor no jornal abolicionista “Tribuna Popular”, além de ter sido diretor.
Quando jovem, sofreu discriminação racial, posto que foi proibido de assumir o cargo de promotor público em Laguna - SC.
Mais tarde mudou-se para o Rio de Janeiro. Na cidade maravilhosa, ele foi colaborador do jornal "Folha Popular" e das revistas “Ilustrada” e “Novidades”. Ademais, trabalhou como arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil.
Note que as publicações de Cruz e Souza para os jornais estavam, muitas vezes, pautadas no tema do racismo e do preconceito racial.
No Rio casou-se com Gavita Gonçalves em 1893, e com ela teve quatro filhos. Infelizmente todos morreram prematuramente de tuberculose.
QUER SABER MAIS? ACESSE:
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/206-cruz-e-sousa
https://brasilescola.uol.com.br/literatura/cruz-sousa.htm
https://www.infoescola.com/escritores/cruz-e-sousa/
https://www.soliteratura.com.br/simbolismo/simbolismo4.php
https://www.ebiografia.com/cruz_e_sousa/
https://www.escritas.org/pt/cruz-e-sousa
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! reteza os músculos, reteza
nessas macabras piruetas d'aço...
E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
Publicado no livro Broquéis (1893).
Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.
Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.
Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!
Nesses silêncios solitários, graves,
Que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!
Publicado no livro Últimos Sonetos (1905).
Livre! Ser livre da matéria escrava,
arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.
Livre da humana, da terrestre bava
dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava.
Livre! bem livre para andar mais puro,
mais junto à Natureza e mais seguro
do seu Amor, de todas as justiças.
Livre! para sentir a Natureza,
para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.
Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouca a pouco...
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
Publicado no livro ÚItimos sonetos (1905).
Poeta, MC, atuante da cultura hip hop desde 1992, integrado em diversos movimentos culturais, idealizador do Coletivo Sarau Alternativo em 2014. Ativista do Sarau do Binho desde 2004, realizou Sarau da cultura em Taboão da Serra 2009, fundador do Sarau Luau no bairro do Pirajussara (Taboão da Serra), 2009 e Sarau da Cumbuca do espaço Zumaluma em Embu das Arte.2011
Participação em três coletâneas de antologias poéticas. Desde 2013 (livro Sarau do Binho vol.I e II e no livro Praçarau), em 2017 pela Felizs(III Felira Literária da Zona Sul) e Lançou seu primeiro livro de Poesia intitulado Lokomotivamente pelo selo Sarau do Binho.
Oficineiro há quatro anos dentro das instituições localizadas no Campo Limpo e Região. No ano de 2015, idealizador de um projeto de Oficina de Mc no espaço CITA (Cantinho de Integração de todas as artes)
Participação em encontros, congressos sobre saraus e literatura:
∙ A Felizs (Feira Literária da Zona Sul 2015/ 2017)
∙ 40º feira do Livro em Buenos Aires 2014
∙ Caravana Poética no Rio de janeiro 2010
∙ Projetos Sesc com Sarau do Binho (2010-2015)
∙ Projeto Veia Ventania 2014/2017
∙ Virada Cultural: 2011/2018.
∙ Idealizador do Sarau Alternativo, desde 10/07/2014 juntamente com Sabrina de Paula, Katia Paixão e Paulo Almeida. Obs.: atualmente Katia Paixão e Paulo Almeida não integram mais ao coletivo.
Trabalhos no Rap como MC e poeta:
∙ Grupo Atitude Fatal (1992)
∙ Grupo Pirajussara Breacking (1993)
∙ Grupo Tirocínio (1998)
∙ Grupo Artefato Bombardeio 2000
∙ Banda Favela Nuclear 2004
∙ Versos em Brisa 2004
∙ Panorama Groove 2013
∙ Sarau do Binho 2004
∙ Sarau Palmarino 2008
∙ Coletivo Sarau Alternativo 2014
∙ Sarau Samba Original 2015
∙ Praçarau 2006
∙ Sarau da Cumbuca 2011
∙ Sarau da Cultura 2008
∙ Sarau Luau 2009
QUER SABER MAIS? ACESSE:
https://www.youtube.com/channel/UCM_AkkbTsI5CLbzoBKGGTpg
https://twitter.com/powrimador
https://www.instagram.com/literaruapow/
https://redesculturais.org.br/embudasartes/pow-litera-rua/
https://www.palcomp3.com.br/rua-litera-pow/
Preta com Notoriedade
Uma Mulher preta com notoriedade manda a letra
Porque mente parada padece então pensa
Somos a treta em pessoa, to no rap pra acontecer e não to atoa
Meu irmão na boa, se não ta pra somar aqui cabelo avoa
Rima Se7e na conexão de Campinas Sp no proceder
Hip hop ´pra vida, na luta sempre sem me abater
Contra este Estado opressor sou um furacão um vendaval
Sou madeira de Lei envergo mas não quebro, derrubando o falso senso moral
(Pow Litera Rua - Poema Novo)
Negrulho
Sou preto, quebrada, pretologia consagrada
Rapper anarco favela de mente blindada
De mente liberta e conscientemente vim denegrir minha imagem
No caso é se tornar-se negro pra quem não entendeu a mensagem
Não posso ser retinto, mas eu me defino quem sou
Miscigenado, condescendente, mas sei que pardo eu não sou
Minha mãe preta meu pai branco e sou ser pensante em constante construção
Como este sistema é desumano, desigual em danos inrreparavel aqui busco conscientização
Universo preconceituoso ,rascista, xenofobico e intolerante que ignora e oculta a verdade
Onde nossas vontades sempre sufocadas e de alguma forma temos uma falsa liberdade
Onde pretas e pretos são mortos na estrema covardia em atos generalizado
Onde são filmados e pela justiça e a governancia nada é feito e será mais um caso ignorado.
(Pow Litera Rua - Livro Powemas Brasifericos)
*Poemas cedidos pelo autor
Alzira dos Santos Rufino nasceu em Santos (SP) em 1949. É escritora, graduada em enfermagem e se intitula “batalhadora incansável pelos direitos da mulher, sobretudo da mulher negra”. Fundou, em 1986, o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista. Em 1990, fundou a Casa de Cultura da Mulher Negra (CCMN), uma organização não governamental de assistência jurídica e psicossocial a mulheres negras voltada a combater a violência doméstica, sexual e racial. Além disso, a CCMN criou em 2001 revista Eparrei, da qual Alzira Rufino é editora. É autora de poesia, romance, contos e ensaios.
OBRAS
– Eu, mulher negra, resisto. Edição da autora, 1988.
– Qual o quê. Edição da autora, 2006.
– Muriquinho, piquininho. Edição da autora, 1989.
– A mulata do sapato lilás. Edição da autora, 2007.
– Bolsa poética. Editora Demar, 2010.
ANTOLOGIAS
– Enfim … nós: escritoras negras brasileiras contemporâneas. (Finally…us: contemporary black brazilian women writers ).Three Continent Press, 1995. (Edição bilíngue).
– Cadernos Negros 19. Grupo Quilombjhoje, 1996.
– Cadernos Negros 21. Grupo Quilombhoje, 1998.
– Literatura e afrodescendência no Brasil. v.2. Editora UFMG, 2011.
ENSAIOS
– A mulher negra tem história. Coautoria com Nilza Iraci e Maria Rosa Pereira. Edição da autora, 1987.
– Articulando. Edição da autora, 1987.
– Mulher negra, uma perspectiva histórica. Edição da autora, 1987. e O poder muda de mãos, não de cor. Santos: edição da autora, 1996.
HOMENAGENS E PRÊMIOS
1991 – Mulher do Ano, concedida pelo Conselho Nacional da Mulher Brasileira.
1992 – Cidadã Emérita, concedida pelas Câmaras Municipais de Santos e de Cubatão(SP).
2000 – Mulher Destaque, concedida pela Câmara Municipal de Santos.
2004 – Mulher Destaque, concedida pelo Clube Soroptimista Internacional de Santos.
2005 – Indicada ao Prêmio Mil Mulheres para o Nobel da Paz.
2009 – IV Prêmio África Brasil, concedido pelo Centro Cultural Africano.
2016 – Prêmio Dandara, concedido pelo Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra da Prefeitura de Santos.
QUER SABER MAIS? ACESSE:
https://www.bibliotecapublica.mg.gov.br/alzira-rufino/
https://guatafoz.com.br/poesia-de-alzira/
https://www.cadaminuto.com.br/noticia/2010/12/27/sou-negra-ponto-final
https://www.geledes.org.br/poetas-negras-da-literatura-brasileira/
Crioula
eu sou crioula decente
não sou vil
estou nas cordas
em equilíbrio
de um brasil
a minha cor apavora
essa raça agride ouvi dizer
não é nos dentes do negro
não é no sexo do negro
é na arte do negro
de viver
melhor dizendo
sobreviver
com essa coisa que arrasta
o tronco que tentam esconder
mas esses troncos existem
no conviver
os troncos estão nas favelas
vejo troncos nas vielas
nas moradias fedidas
nas peles sem esperança
nas enxurradas de não
no jogo das damas e reis
eu me perdi
nas rotas dos estiletes
nas celas e nos engodos
negro carretel de rolo
querem fazer um mundo
marginal crioulo.
Femineira
baraculê
eu sou mulhé
baraculé
femineira
responde a lua
minha sei lá
diz que o sol é forte
mas vive no luá
da mulhé na rua.
Resisto
De onde vem este medo?
sou
sem mistério existo
busco gestos
de parecer
atando os feitos
que me contam
grito
de onde vem
esta vergonha
sobre mim?
Eu, mulher, negra,
RESISTO.”
Bianca Gonçalves (São Paulo, 1992) é poeta, performer e tradutora. Graduada em letras pela Universidade de São Paulo, onde também concluiu o mestrado, atualmente é doutoranda em teoria e história literária na Unicamp. É autora dos livros de poemas como se pesassem mil atlânticos (Urutau, 2019) e A sexualidade de meninas ex-crentes (Garupa, 2021).
QUER SABER MAIS? ACESSE:
Segunda Onda
com as feministas
que lutavam contra a ditadura
aprendemos
mas fazer pacto suicida com o companheiro
é pouco feminista
daí fomos morar juntas
e o pessoal de casa finalmente ficou político
Natal 2018
todos os olhos dos convivas voltaram-se à ana
antes que fosse tarde
e a atravessassem uma bala
ana chamou à casa
demolição
com todos os convidados
incluindo a avó fazendo bordado
duas galinhas num cercado
Ancestralidade
catação de pelos no queixo
seja com a pinça ou com os
próprios dedos
é a prática mais antiga
das mulheres de casa
analógicas experientes
recolhem pela ponta
dos pelos
desencravam com
finíssimas unhas
outras investem
em pinças
e se contorcem
diante do espelho
as mais velhas andam
pelos corredores
na eterna catação
inclusive eu mesma
enquanto escrevo
a dissertação
me flagro no
gesto ancestral
de dedos que se
encontram com o
queixo
talvez para evitar
na próxima visita
minha vó que sempre
bulia com a barba
das meninas
o que explica
o fato da
mais nova
da família
ter inaugurado
uma franquia
de clínica de depilação