Enviado em 10/11/2022
Parágrafo de contexto: O texto é uma pequena análise comparativa entre duas novelas, Uma vida em segredo (1964), de Autran Dourado, e A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector. O trabalho serviu como avaliação parcial da disciplina Literatura Comparada II, ministrada pelo Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco.
Um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Raimundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era “Humilhados e Ofendidos”. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. (LISPECTOR, 1998, p. 40.)
Este trabalho propõe uma análise comparatista entre as novelas Uma vida em segredo (1964), de Autran Dourado, e A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector. O recorte escolhido foi a aproximação do arquétipo social, aparente nas personagens da ficção: Biela e Macabéa. O objetivo aqui é mostrar os possíveis pontos de convergências na construção das personagens. Para isto, recorri a conceitos de Literatura Comparada.
Publicado na década de 1960, Uma vida em segredo de Autran Dourado narra o deslocamento da protagonista Biela do espaço rural para o ambiente urbano, após o falecimento de seu pai Juvêncio. Ainda menor de idade, em seu testamento, o pai da moça a deixa sob a tutela de Primo Conrado. A partir desse momento, a vida a qual Biela estava acostumada na roça deixa de existir e ela se vê obrigada a se encaixar no estilo de vida da família de seu primo, na cidade.
De outra forma, mas com pontos convergentes, Clarice Lispector, em A hora da estrela, apresenta-nos, através do narrador Rodrigo S. M., a sofrida vida de Macabéa, uma nordestina também órfã que migra para o Rio de Janeiro, com sua tia para conquistar melhores condições de vida. Após a morte da tia, a protagonista torna-se responsável por sua própria vida. Semianalfabeta, exercendo a função de datilográfica, torna-se um sujeito às margens no espaço urbano.
As narrativas cruzam-se em vários momentos, seja pela história parental e os maus tratos da família ou até mesmo pelo fim de ambas personagens: a morte. No entanto, é no plano do conteúdo que as protagonistas sentem o deslocamento e/ou o não pertencimento a realidade a elas imposta. Buscando diferentes formas de se conectar consigo mesmas e com o outro.
Posto isto, podemos defender que haja uma possível convergência entre os textos, uma espécie de intertextualidade entre as novelas. Leyla Perrone-Moisés, em seu texto “Literatura comparada, intertexto e antropofagia”, defende que “a literatura nasce da literatura” (PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 94), visto que ela se “produz num constante diálogo de textos” (PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 94), a partir daí surge os empréstimos e trocas, logo, “escrever é, pois, dialogar com a literatura anterior e contemporânea" (PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 94). Essa ideia de convergência traz consigo também a noção de influência.
Desse modo, conseguiríamos dizer que Clarice Lispector é contemporânea de Autran Dourado. Uma vez que as obras possuem aspectos semelhantes e uma distância temporal entre as novelas é de aproximadamente uma década. Entretanto, Tiniánov considerava que
[s]obre determinado chão cultural (discursivo) podem ocorrer confluências, coincidências de temas e de soluções formais que nada tem a ver com influências, mas com a existência de certas condições literárias em determinado momento histórico (TINIÁNOV apud PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 95).
Ou seja, não podemos afirmar ao certo se Lispector leu Dourado. Pode ter ocorrido uma coincidência devido às condições literárias do momento histórico, como também fica aberto para a especulação sobre uma possível influência.
Por extensão, a questão da influência provoca outro pensamento: "quem disse primeiro?”. No entanto, Borges já debruçou-se sobre esse questionamento e propôs uma subversão da tradição e noção de uma possível "dívida" entre autores e/ou textos ao propor uma alteração na ordem cronológica dos “precursores”. Mas de pouco importa a questão de influência ou dívida. Pois, Perrone-Moisés defende que os estudos comparados consiste em “qualquer estudo que incida sobre as relações entre duas ou mais literaturas nacionais” (PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 91).
Tanto em Uma vida em segredo, quanto em A hora da estrela, o espaço urbano parece ser feito para colocar Biela e Macabéa em estado de tensão, acuando-as, excluindo-as e deixando-as à margem da sociedade. Primeiro, o belo e o feminino são negados as personagens. Macabéa é descrita como feia, “magricela esquisita” (LISPECTOR, 1998, p. 52), “não tinha força de raça, era subproduto” (LISPECTOR, 1998, p. 59). Biela “tinha o rosto feio e velho, maracujá enrugado” (DOURADO, 1964, p. 33). Nem dignas de amor elas eram. Desse modo, ambas são marcadas pela solidão de família e amigos. Segundo, o drama vivido pelas personagens evidencia os preconceitos das metrópoles e o desconforto do ser migrante de seu lugar de origem para as regiões centrais, restando apenas o conforto da memória.
Pensava na sua vida lá longe, adormecida na Fazenda do Fundão. Se via outra vez dando sal ao gado, correndo atrás das galinhas ligeiras, apalpava-as para ver se tinham ovo. E sentia os cheiros todos do mato, do curral, da bosta e do mijo quente das vacas. Os melhores momentos ainda continuavam a ser quando se lembrava da mãe sentada no canapé, afagando-lhe a cabeça, a cantiga mais linda e mansa que ela cantava brancamente, lentamente, feito uma nuvem preguiçosa no céu. Sentia de novo o mesmo quentume gostoso e antigo que sua alma guardava (DOURADO, 1964, p. 40).
Tinha saudade de quando era pequena – farofa seca – e pensava que fora feliz. Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que susto (LISPECTOR, 1998, p. 35).
No ensaio “Comparativismo cultural hoje”, Edgar Cézar Nolasco discorre acerca do termo alemão Weltliteratur, forjado por Goethe, e quais ideias ele carrega, além do papel e o lugar do comparativismo cultural na Literatura Comparada. Nolasco abre seu texto com considerações de Achugar sobre Weltliteratur, entendida como “Literatura universal”, que consiste em uma ideia de homogeneização do mundo, no caso da literatura produzida ao redor do globo. No entanto, essa ideia trouxe consigo implicações políticas e culturais vinculados a questões da Literatura Comparada e também do universalismo versus particularismo.
As novelas aqui apresentadas estão contaminadas por esse particularismo do Brasil. Desconstruindo o domínio colonial e “evidencia[ndo] para seu[s] leitor[es] os valores que estariam alicerçando uma leitura ético-política, de caráter contingencial, da memória universal” (SANTIAGO, 2021, s.p.). Assim, possibilitando visualizar a distância e a diferença entre a literatura brasileira e a literatura ocidental. Essa visão decolonial, conforme Rita Schmidt, perpassa pelas noções de traduções culturais e demarcações de espaço histórico-geográfico de produção, além claro, da recepção dos textos literários. Dessa forma, valorizando as diferenças de regiões não-centrais em relação às nações imperialistas ocidentais.
A respeito da desocidentalização da América Latina, Rita diz o seguinte:
[...] do comparatismo latino-americano cujos acentos e tendências se constituem sob o signo das múltiplas mediações que o campo literário estabelece com os diferentes lugares da cultura – a local e a importada – a contingência das transferências e os trânsitos intra-culturais e seus impactos se constituem através de processos de ambivalência, negociação e resistência aos mecanismos institucionais de controle simbólico, o qual forja não somente as fronteiras da nação, mas também suas fronteiras internas (SCHMIDT, 2017, p. 376-377).
Por fim, verificamos, por meio de uma comparação entre textos, questões conceituais acerca da disciplina de Literatura Comparada, pensando as narrativas por um olhar sobre as fronteiras. Dessa maneira, ampliam-se as noções do comparatismo e repensa-se a literatura por suas relações intersistemas, realocando-a “no interior de sistemas semióticos/culturais em espaços geopolíticos específicos e suas histórias particularizadas” (SCHMIDT, 2017, p. 377). Finalmente, comparando as personagens da ficção pelo arquétipo social de mulheres as margens e as consequência do não enquadramento nas expectativas sociais.
Referências
CANDIDO, Antonio. Literatura comparada. In. Recortes. Companhia das Letras, São Paulo, 1993.
CARVALHAL, Tania F. Sob a égide do cavaleiro errante. In. Revista brasileira de literatura comparada, Rio de Janeiro, n°8, 2006, p. 11-17.
DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1964.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. In: Cadernos de Letras da UFF. Dossiê: Literatura, Língua e Identidade, n. 34, 2008, p. 287-324.
NOLASCO, Edgar Cézar. Comparatismo Cultural Hoje. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.17, Mato Grosso do Sul, 2010.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Literatura comparada, intertexto e antropofagia. In. Flores da escrivaninha. Companhia das Letras, São Paulo, 2006.
SANTIAGO, Silviano. Quando saio de casa, piso o mundo (Sobre a formação artística e crítica). In: Suplemento Pernambuco. 18/06/2021. Disponível em: http://suplementopernambuco.com.br/in%C3%A9ditos/2711-quando-saio-de-casa,-piso-o-mundo-sobre-forma%C3%A7%C3%A3o-art%C3%ADstica-e-cr%C3%ADtica.html Acesso em: 09/12/2022.
SCHMIDT, Rita Terezinha. Literatura comparada: uma identidade em transformação e expansão. In: VASCONCELOS, Mauricio Salles et al. (Org.) Comparativismo Contemporâneo. São Paulo: FFLCH-USP, 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/42941592/Testemunhos_da_Desraz%C3%A3o_alguns_exemplos_na_literatura_brasileira_dos_s%C3%A9culos_XX_e_XXI. Acesso em: 09/12/2022.
SOUZA, Eneida Maria de. Literatura Comparada: o espaço nômade do saber. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, São Paulo, n. 2, p. 19-24, 1994.