Artigo 108.º – Cancelamento da autorização de residência

1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 85.º, a autorização de residência emitida ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar é cancelada quando o casamento, a união de facto ou a adoção teve por fim único permitir à pessoa interessada entrar ou residir no País.

2 — Podem ser efetuados inquéritos e controlos específicos quando existam indícios fundados de fraude ou de casamento, união de facto ou adoção de conveniência, tal como definidos no número anterior.

3 — Antes de ser proferida decisão de cancelamento da autorização de residência ao abrigo do reagrupamento familiar, são tidos em consideração a natureza e a solidez dos laços familiares da pessoa, o seu tempo de residência em Portugal e a existência de laços familiares, culturais e sociais com o país de origem.

4 — A decisão de cancelamento é proferida após audição do cidadão estrangeiro, que vale, para todos os efeitos, como audiência do interessado.

5 — A decisão de cancelamento é notificada ao interessado com indicação dos seus fundamentos, dela devendo constar o direito de impugnação judicial e o respetivo prazo.

6 — A decisão de cancelamento é comunicada por via eletrónica ao ACIDI, I. P., e ao Conselho Consultivo, sem prejuízo das normas aplicáveis em matéria de proteção de dados pessoais.

7 — A decisão de cancelamento da autorização do membro da família com fundamento no n.º 1 é suscetível de impugnação judicial, com efeito suspensivo, perante os tribunais administrativos.


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Comentários


1 — O reagrupamento familiar, sendo um importante instrumento de integração da comunidade imigrante e pressuposto indispensável para que os imigrantes possam usufruir de uma vida familiar normal, presta-se todavia a ser utilizado para fins fraudulentos, nomeadamente através da criação de falsos laços familiares, por forma a permitir, a quem não tem direito, o ingresso e residência no território nacional. Daí que, para além das condições gerais de cancelamento de autorização de residência, previstas no art. 85.º, se prevejam ainda outras situações, normalmente associadas a procedimentos irregulares, em sede de reagrupamento familiar. As situações mais frequentes são as referidas no n.º1 deste artigo, particularmente os chamados "casamentos brancos", as falsas uniões de facto e pseudo adopções que, não tendo por verdadeiro objectivo a constituição de família, visam permitir a legalização de imigrantes em situação irregular ou através de um procedimento mais simplificado, como é o do reagrupamento familiar.

O DL n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, era mais cauteloso no que se refere à atribuição de título de residência ao abrigo do reagrupamento familiar. De facto, excepto no caso de o beneficiário ter filhos menores residentes em Portugal, aos membros da família só era atribuída uma autorização de residência autónoma, decorridos dois anos sobre a emissão da primeira, e apenas na medida em que subsistissem os laços familiares (art. 58.º, n.º 4).

A lei criava pois uma espécie de período de espera, destinado a certificar a genuinidade da relação familiar. Este diploma seguiu por diferente caminho, sem todavia deixar de ter em conta eventuais situações de fraude, sancionadas com o cancelamento da autorização de residência. Para além disso, a lei é fortemente restritiva em termos de cancelamento da autorização de residência. Enquanto, nos termos do art. 16.º da Directiva 2003/86/CE, de 22 de Setembro, se prevêem diversas situações que podem permitir o cancelamento, como por exemplo o facto de o requerente do reagrupamento e os seus familiares tiverem deixado de ter uma vida conjugal ou familiar efectiva (art. 16.º, n.º 1, a1. b)), na previsão deste artigo exige-se ter havido uma conduta dolosa do requerente e beneficiários, com vista simplesmente à obtenção do título de residência.

Importa ainda ter em conta o disposto no art. 186.º, n.º 1, que criminaliza o casamento de conveniência, punindo o facto com pena de 1 a 4 anos de prisão.

Por outro lado o cancelamento da autorização de residência, ao abrigo deste artigo, opera independentemente de qualquer outro processo (art. 69.º do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de Novembro), ou seja, é uma decisão autónoma em relação a qualquer processo crime, disciplinar ou de outra natureza.


2 — Permite o n.º 2 a realização de inquéritos e controlos específicos, quando existir uma presunção fundamentada de fraude de casamento, união de facto ou adopção de conveniência, com o fim indicado no n.º 1. O que seja presunção fundamentada não é explícito na lei. Todavia, a mesma haverá de partir da constatação entre uma realidade jurídica que não tem correspondência com a realidade sociológica. Efectivamente, se os cônjuges ou pessoas em união de facto não fazem vida em comum ou uma vida social normal correspondente a esse estatuto, ou se o filho adoptado não vive com ou a expensas do adoptante, está-se perante um indício de fraude. Estas serão as situações mais óbvias, outras havendo todavia, muito diversas também pelo universo de pessoas, etnias e culturas, nas quais se podem detectar diferentes sinais dessa realidade anómala.

Haverá no entanto de ter em conta que, a realização de inquéritos ou controlos específicos, exige presunção fundamentada de fraude. De facto, não pode uma qualquer suspeita legitimar tais procedimentos, que sempre representam um perigo de devassa da vida familiar. E há que considerar o disposto no art. 26.º, n.º 1, da CRP, segundo o qual "A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação".

Esta exigência verifica-se também relativamente ao processo de renovação da autorização de residência dos familiares, uma vez que a lei não acolheu a faculdade prevista na parte final do n.º 4 do art. 16.º da referida directiva, permitindo, independentemente de outros requisitos, a realização de controlos específicos aquando da renovação da autorização de residência dos familiares.


3 — Nos casos de cancelamento da autorização de residência, ao abrigo do regime previsto neste artigo, o n.º 3 determina que se tome em consideração a natureza e a solidez dos laços familiares da pessoa e o seu tempo de residência em território nacional, bem como a existência de laços familiares, culturais e sociais com o país de origem.

A nosso ver esta norma não pretende estabelecer qualquer condicionamento ao cancelamento da autorização, como de resto resulta da sua redacção, referindo expressamente, "em caso de cancelamento". Nem seria razoável que, constatada a existência de uma fraude, com o único propósito de obter um título de residência, a situação pudesse ser consolidada na ordem jurídica.

Atente-se que, nos termos do art. 17.º da Directiva 2003/86/CE, prevê-se idêntico regime para os casos de indeferimento, retirada ou não renovação de autorização de residência, bem como de decisão de afastamento. Só que a directiva prevê um leque mais amplo de situações que permitem a retirada da autorização, desde logo a dissolução da relação familiar do requerente com os beneficiários. Em tais situações compreende-se claramente que as aludidas situações devam ser tomadas em conta.

Sendo inevitável o cancelamento da autorização, uma vez constatada a fraude que permitiu o reagrupamento, e não podendo a norma em análise ser considerada inaplicável ou inútil, em que âmbito pode ter efeito?

A nosso ver apenas na medida em que, face ao tempo de residência em Portugal, laços familiares estabelecidos, intensidade da relação com o país de origem, etc., tais factores possam contribuir para possibilitar a obtenção de um título de residência em qualquer das hipóteses que prevejam a dispensa de visto, ou ao abrigo dos diferentes regimes que na lei permitam a obtenção de título de residência, que não por via do reagrupamento familiar.


4 — A audição do interessado é uma exigência do art. 100.º do [anterior, agora artigo 121.º e seguintes] CPA. Nos termos do mesmo artigo o interessado deve ser informado do sentido provável da decisão.

Sobre esta questão v, ainda anotações 2 e 3 ao art. 148.º


5 — A decisão de cancelamento é de notificação obrigatória, tendo desde logo em conta o art. 66.º, al. b), do CPA. Para além do que se dispõe no n.º 5 deste artigo, da notificação deve constar o texto integral do acto administrativo, identificado o procedimento, autor do acto e respectiva data (art. 68.º, n.º 1, als. a) e b), do CPA). A exigência de comunicação ao ACIDI, I.P., e ao Conselho Consultivo decorre naturalmente da missão que compete a estes órgãos.

Sobre esta questão v. anotação 9 ao art. 10.º


6 — O acto administrativo que determine o cancelamento da autorização de residência é seguramente um daqueles cujo conteúdo é susceptível de lesar direitos ou interesses especialmente protegidos, sendo portanto impugnável, nos termos do art. 51.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro). Neste caso, diferentemente do regime regra, o recurso tem efeito suspensivo, dados os efeitos do cancelamento, que implicaria o afastamento do interessado do território nacional. E se tal consequência é perfeitamente compreensível, por exemplo no caso de uma recusa de entrada, a mesma seria manifestamente excessiva relativamente a quem tem uma relação estável com o nosso país, em resultado de uma radicação, ainda que não muito prolongada, com o território nacional.

Nota SEF: A Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, que aprova o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, veio alterar os artigos 180.º e 187.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002.


Origem do texto


Direito comunitário                              

Reproduz, com alterações, o disposto nos artigos 16º, 17º e 18º da Directiva n.º 2003/86/CE, do Conselho, de 22 de Setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar.



Direito nacional                                    

A origem da normas dos n.º 1 e 2 reporta às diligências instrutórias que resultavam do disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 93.º do Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do Decreto-Lei 34/2003, de 25 de Fevereiro, que visavam apurar a autenticidade dos laços e das relações familiares invocadas, para efeitos de cancelamento (ou para a não concessão) do direito de residência solicitado, entre outros, no âmbito do reagrupamento familiar. Semelhante norma consta, pelos mesmos motivos, no artigo 104.º, referente à união de facto.

No entanto introduz-se pela primeira vez um conjunto de critérios de ponderação na instrução dos pedidos, com o intuito de assinalar a importância que o legislador atribuiu ao direito ao reagrupamento familiar e à protecção à família, sem precedentes nos diplomas anteriores.

 

Procedimento legislativo


Proposta de Lei 93/X do Governo (2006)       

Artigo 108.º - Cancelamento da autorização de residência

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 85.º, a autorização de residência emitida ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar é cancelada quando o casamento, a união de facto ou a adopção teve por fim único permitir à pessoa interessada entrar e residir no País.

2 - Podem ser efectuados inquéritos e controlos específicos quando existam indícios fundados de fraude ou de casamento, união de facto ou adopção de conveniência, tal como definidos no número anterior.

3 - Antes de ser proferida decisão de cancelamento da autorização de residência ao abrigo do reagrupamento familiar, são tidos em consideração a natureza e a solidez dos laços familiares da pessoa, o seu tempo de residência em Portugal e a existência de laços familiares, culturais e sociais com o país de origem.

4 - A decisão de cancelamento é proferida após audição do cidadão estrangeiro, que vale, para todos os efeitos, como audiência do interessado.

5 - A decisão de cancelamento é notificada ao interessado com indicação dos seus fundamentos, dela devendo constar o direito impugnação judicial e o respectivo prazo.

6 - A decisão de cancelamento é comunicada por via electrónica ao ACIME.

7 - A decisão de cancelamento da autorização do membro da família com fundamento no n.º 1 é susceptível de impugnação judicial, com efeito suspensivo, perante os tribunais administrativos.

Discussão e votação indiciária: proposta apresentada pelo PS de alteração do n.º 1 do artigo 108.º da proposta de lei n.º 93/X — aprovada, com votos a favor do PS, PSD e CDS-PP e votos contra do PCP e BE, ficando consequentemente prejudicada a redacção da proposta de lei n.º 93/X para este número - Proposta de substituição Artigo 108.º (…) 1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 85.º, a autorização de residência emitida ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar é cancelada quando o casamento, a união de facto ou a adopção teve por fim único permitir à pessoa interessada entrar ou residir no país. 2 — (…) 3 — (…) 4 — (…) 5 — (…) 6 — (…) 7 — (…).  Proposta apresentada pelo PCP de alteração do n.º 6 do artigo 108.º da proposta de lei n.º 93/X — aprovada, com votos a favor do PS, PSD, PCP e BE e a abstenção do CDS-PP, ficando consequentemente prejudicada a redacção da proposta de lei n.º 93/X para este número - Proposta de aditamento/substituição Artigo 108.º (…) 1 — (…) 2 — (…) 3 — (…) 4 — (…) 5 — (…) 6 — A decisão de cancelamento é comunicada por via electrónica ao ACIME e ao Conselho Consultivo. 7 — (…). Artigo 108.º da proposta de lei n.º 93/X, n.º 2 — aprovado, com votos a favor do PS, PSD e CDS-PP, votos contra do BE e a abstenção do PCP; N.os 3, 5 e 7 — aprovados por unanimidade, registando-se a ausência de Os Verdes; N.º 4 — aprovado, com votos a favor do PS, PSD, PCP e CDS-PP e a abstenção do BE.




Proposta de Lei 50/XII do Governo (Lei n.º 29/2012)

Artigo 108.º – [...]

1 - [...].

2 - [...].

3 - [...].

4 - [...].

5 - [...].

6 - A decisão de cancelamento é comunicada por via electrónica ao ACIDI, I.P., e ao Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração.

7 - [...].

Discussão e votação na especialidade                         

Artigo 108.º da Lei n.º 23/2007 – Proposta de alteração do n.º 6, da PPL, apresentada pelo PSD/CDS-PP – aprovada por unanimidade - Proposta de alteração Artigo 108.º  (…) 1 – (…). 2 – (…). 3 - (…). 4 (…). 5 (…). 6 - A decisão de cancelamento é comunicada por via electrónica ao ACIDI, I.P., e ao Conselho Consultivo, sem prejuízo das regras legais aplicáveis em matéria de proteção de dados pessoais. 7 (…). N.º 6 do texto da PPL 50/XII – prejudicado pela votação anterior. Redação original da Lei n.º 23/2007:     

Artigo 108.º - Cancelamento da autorização de residência

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 85.º, a autorização de residência emitida ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar é cancelada quando o casamento, a união de facto ou a adopção teve por fim único permitir à pessoa interessada entrar ou residir no País.

2 - Podem ser efectuados inquéritos e controlos específicos quando existam indícios fundados de fraude ou de casamento, união de facto ou adopção de conveniência, tal como definidos no número anterior.

3 - Antes de ser proferida decisão de cancelamento da autorização de residência ao abrigo do reagrupamento familiar, são tidos em consideração a natureza e a solidez dos laços familiares da pessoa, o seu tempo de residência em Portugal e a existência de laços familiares, culturais e sociais com o país de origem.

4 - A decisão de cancelamento é proferida após audição do cidadão estrangeiro, que vale, para todos os efeitos, como audiência do interessado.

5 - A decisão de cancelamento é notificada ao interessado com indicação dos seus fundamentos, dela devendo constar o direito de impugnação judicial e o respectivo prazo.

6 - A decisão de cancelamento é comunicada por via electrónica ao ACIDI, I. P., e ao Conselho Consultivo.

7 - A decisão de cancelamento da autorização do membro da família com fundamento no n.º 1 é susceptível de impugnação judicial, com efeito suspensivo, perante os tribunais administrativos.