Artigo 186.º – Casamento ou união de conveniência

1 — Quem contrair casamento ou viver em união de facto com o único objetivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

2 — Quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos atos previstos no número anterior, é punido com pena de prisão de dois a seis anos.

3 — A tentativa é punível.


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Comentários


Nota SEF: A norma, na redação anterior à Lei n.º 29/2012, referia apenas o casamento e não a união de facto de conveniência, nos seguintes termos:

Artigo 186.º - Casamento de conveniência

1 - Quem contrair casamento com o único objectivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto ou uma autorização de residência ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.

2 - Quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos actos previstos no número anterior é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

3 - A tentativa é punível.


1 — A "conveniência" que tipifica este casamento ilícito está caracterizada no texto do n.º 1 do artigo. Não é uma conveniência qualquer. Quando se diz que o casamento é feito "por conveniência", só o objectivo ali inscrito, e não outro, é razão para a sua criminalização, sem prejuízo da sua anulação por "falta de vontade" com assento na sua simulação (art. 1635.º, al. d), do Código Civil). O escopo da norma é, por conseguinte, evitar a proliferação de casamentos fictícios, cada vez mais frequentes entre cidadãos portugueses e nacionais de outro Estado, com vista à obtenção de um visto ou de autorização de residência ou até mesmo à aquisição de nacionalidade.

O crime consuma-se no momento em que o casamento civil for celebrado (arts. 1600.º e segs. do Código Civil e arts. 153.º a 155.º do CRC). Contudo, sem que se prove a intenção dolosa, o ilícito não se pode dar por cometido.

A anterior redacção do projecto não pressupunha que, para a verificação do ilícito, o casamento tivesse por exclusiva finalidade aquele objectivo (obtenção de visto, autorização de residência ou aquisição de nacionalidade). Mas agora, com a introdução do adjectivo "único", parece estar fora de causa a incriminação se, por exemplo, a par do interesse na aquisição da nacionalidade, por exemplo, o cidadão estrangeiro for capaz de revelar uma intenção amorosa genuína pela pessoa portuguesa com quem contraiu matrimónio. Em tal hipótese, o propósito sério do casamento escapa totalmente ao "objectivo" caracterizado no ilícito-tipo.

Se houver suspeita de fraude ou de casamento de conveniência, podem ser efectuados inquéritos e controlos específicos. Sendo confirmada a suspeita, será cancelada a autorização de residência emitida ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar, nos termos do art. 108.º (sobre o assunto, ver anotações 1 e 2 a esse dispositivo legal).


2 — A própria tentativa é punível. Isto quer dizer que o agente será punido pelo crime se, apesar de não o ter consumado, chegou a realizar actos de execução (art. 22.º, n.º 2, do CP), como sejam a declaração para casamento (arts. 135.º e 136.º do CRC) e a organização do respectivo processo (arts. 137.º e segs. do CRC).


3 — Quando o casamento tiver tido por fim único permitir à pessoa interessada entrar ou residir no país, a autorização de residência que tiver sido emitida ao abrigo do reagrupamento familiar será cancelada (v. art. 108.º, n.º 1; cfr. também o art. 69.º do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de Novembro). 


Nota SEF: Ver também o disposto no artigo 31.º da Lei n.º 37/2006, de 9 de agosto (regula o exercício do direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União Europeia e dos membros das suas famílias no território nacional, e transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2004/38/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril), que se transcreve, sob a epígrafe «Abuso de direito»: "1 – Em caso de abuso de direito, de fraude ou de casamento ou união simulada ou de conveniência, são recusados e retirados os direitos de residência e os apoios sociais conferidos ao abrigo da presente lei. 2 – O disposto nos artigos 25.º e 26.º é aplicável a qualquer decisão tomada nos termos do número anterior.". Aquele artigo 69.º do Decreto Regulamentar, referindo-se ao cancelamento de autorizações de residência, aduz: "Sem prejuízo do disposto no n.º 7 do artigo 108.º e no n.º 2 do artigo 121.º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação atual, o cancelamento dos títulos de residência previsto naqueles artigos opera independentemente de processo de outra natureza, desde que no respetivo procedimento seja produzida prova de que o casamento, a união de facto ou a adoção teve por fim único permitir ao beneficiário do reagrupamento familiar a entrada e a residência no País.".


Jurisprudência  


A questão que se discute nos dois arestos é a mesma, ou seja: saber se em processo de oposição à aquisição da nacionalidade, com fundamento no conhecimento de que os Requeridos/estrangeiros, teriam cometido crimes punidos pelo Código Penal Português com pena de prisão igual ou superior a três anos, deverá ser suspensa a instância após os articulados, nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, a fim de aguardar que o Ministério Público obtenha a prova da condenação com trânsito em julgado, através das autoridades competentes, para se apurar se se mostra preenchido o requisito de oposição à aquisição da nacionalidade previsto no artigo 9.º, al. b), da Lei da Nacionalidade, Lei n.º 37/81, de 3/10, na redacção da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04, e com referência ao artigo 56.º, n.º 2, al. b), do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo DL n.º 237 -A/2006, de 14/12.

Uniformiza/confirma a jurisprudência do STA, nos seguintes termos: Só a condenação, com trânsito em julgado, pode obstar à aquisição da nacionalidade. Se a condenação não se verificava à data em que foi instaurada pelo MP a oposição à aquisição de nacionalidade, constituindo mera circunstância de verificação futura incerta e eventual, a oposição à aquisição da nacionalidade com o fundamento previsto na alínea b), do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade sempre teria que improceder, não sendo de aplicar o regime da suspensão da instância previsto no n.º 1 do art.º 272.º do Código do Processo Civil.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, Acórdão n.º 7/2017, de 17 de novembro



I) Comete o crime do artº 186º, nºs 1 e 2 e 3 da Lei nº 23/2007, de 4/7,em co-autoria, na forma tentada a arguida que conjuntamente com um cidadão de nacionalidade tunisina, se apresenta na Conservatória do Registo Civil, declarando verbalmente a intenção de celebrar casamento entre si e, depois de informados dos procedimentos que ao caso cabiam, apresentaram na Conservatória documentos para a organização de processo preliminar de casamento, sendo certo que a arguida e o referido tunisino, nunca tiveram intenção de contrair matrimónio, porquanto a sua real intenção era tão-só regularizar a situação de permanência do arguido, nomeadamente obter autorização de residência, uma vez que o mesmo residia em França, na qualidade de "ilegal". A arguida não atingiu o seu propósito, por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente por a Conservatória ter desencadeado um processo preliminar de averiguações, junto do SEF.

II) É que tal conduta, ao contrário do que sustenta a arguida/recorrente, contém, ela própria, um momento de ilicitude, posto que, apesar de ainda não produzir a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime de casamento por conveniência, produz já uma situação de perigo para esse bem, sendo que, de acordo com a experiência, tal conduta era de natureza a fazer esperar que se lhes seguisse a organização do processo preliminar de casamento (artºs 135º a 137º do CRC), o que apenas não veio a acontecer por razões alheias à sua vontade.

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-04-2017, no Processo 49/14.6T9BRG.G1



Na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos artigos 9.º, alínea a), e 10.º da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro [Lei da Nacionalidade] na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, cabe ao Ministério Público o ónus de prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional.

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO Processo n.º 4/2016, de 30 de setembro



I – Nos termos do actual artº 623º do NCPC (Lei nº 41/2013, de 26/06) – antigo artº 674º-A do CPC -, ‘A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração’.

II - Se uma pessoa for condenada em matéria penal, com trânsito em julgado, não tendo sido apreciada a questão da responsabilidade civil decorrente desse facto, nem por isso na acção cível que venha a propor-se poderá ter-se como apurada a culpa por parte do condenado, vigorando apenas uma presunção juris tantum de que o autor do facto agiu com culpa, presunção que pode, portanto, ser ilidida.

III - Nos termos do artº 1618º, nº 1 do C. Civil, a vontade de contrair casamento importa aceitação de todos os efeitos legais do matrimónio, sem prejuízo das legítimas estipulações dos esposos em convenção antenupcial.

IV - Quando tal não se verifique, ocorre uma causa de anulabilidade do casamento, conforme artº 1631º, al. b) do C. Civil – anulabilidade do casamento por falta de vontade -, designadamente quando o casamento tenha sido simulado – artº 1635º, al. d) do C. Civil.

V - Esta causa de anulabilidade do casamento (simulação do casamento) consiste, pois, num acordo firmado pelos outorgantes do casamento no sentido de não se sujeitarem às obrigações e não exercitarem os direitos que decorrem da celebração do casamento, isto é, de não assumirem a condição e o estado de casados entre si.

VI - Verificando-se uma situação desta natureza, não pode considerar-se como existente um dado casamento, a não ser para fins ilegais, pelo que se impõe obter a anulação desse casamento.

VII - Um desses casos de ‘casamento ilegal’ é o chamado ‘casamento de conveniência’, ou casamento contraído com o único objectivo de proporcionar a um dos seus outorgantes – porque estrangeiro – uma vantagem ilegal, como seja, p. ex., a obtenção de uma autorização de residência ou de obter um visto de residência em Portugal…, conduta esta que se enquadra num tipo legal de crime, conforme artº 186º, nº 1 da Lei nº 23/2007, de 4/07 (Aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional).

"...Ora, é manifesto que o caso que temos em apreciação reflete precisamente o único propósito, pelos RR., de ser celebrado um casamento de conveniência, precisamente porque a Ré havia sido alvo de uma decisão de expulsão do país, decretada pelo SEF, pretendendo-se, dessa forma, que a Ré pudesse obter a revogação dessa mesma decisão e obter uma autorização de residência em Portugal. Donde terem os RR. sido já condenados pela prática do crime de casamento por conveniência, p.p. no artº 186º, nº 1 da Lei nº 23/2007, de 4/07.

Como os Prof.s Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira escrevem, em ‘Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª edição, pgs. 278, ‘simulam-se casamentos para adquirir uma nacionalidade estrangeira, para obter uma autorização de residência ou de trabalho em país estrangeiro e, assim, evitar uma expatriação, para adquirir uma situação vantajosa decorrente do estado de cônjuge ou até para contornar uma disposição legal. Decerto que qualquer destes motivos pode determinar as pessoas a casar e os motivos dos contraentes são irrelevantes, no casamento como nos negócios jurídicos em geral. Se embora determinados por um destes motivos os nubentes têm disposição de fazer e fazem realmente vida em comum, não há simulação e o casamento é válido. Mas se apenas pretendem prosseguir o fim visado e recusam a ‘comunhão de vida’ que constitui a essência do casamento, este é simulado: a declaração que prestam perante o conservador do registo civil de que querem casar um com o outro não corresponde à sua vontade real”.

“A solução da validade do casamento simulado era a tradicional,mas veio a prevalecer na doutrina a orientação contrária  e foi esta que o Código consagrou, com boas razões, no artº 1635º, al. d).”. Donde resulta, pois, que estando provada a simulação do casamento havido entre os RR., o qual não foi mais do que um casamento dito por conveniência, para assim poderem lograr evitar a expulsão da Ré do país, já que esta é de nacionalidade brasileira (ver fls. 62 a 67), sem que jamais tenham assumido a condição de casados um com o outro, impõe-se a declaração de anulabilidade desse casamento, como foi pedido pelo M.º P.º e como foi decidido na sentença recorrida, o que importa, pois, confirmar e se decide.

Neste sentido, entre outros, veja-se o Ac. Rel. de Lisboa de 29/04/1993, Proc.º nº 0070212, onde também se escreve: “A questão fundamental suscitada no recurso consiste na interpretação da expressão "casamento simulado".

Para determinar o sentido dessa expressão, dever-se-á recorrer, como o fez a sentença, ao conceito expresso no art. 240, n. 1 do Código Civil, nos termos do qual "se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado". E na verdade o art. 1577 do Código Civil define o casamento como o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida. É portanto um contrato, mas um contrato sui generis em que para a sua celebração é essencial que "cada um dos cônjuges queira a plena comunhão de vida com o outro como meio de constituir a família" - cfr. Direito de Família, pag. 169, do Prof. Antunes Varela.

Ora, como refere o Prof. Varela, obr. citada, pag. 17, a interpretação da lei, "obriga a uma permanente reconstituição histórico-racional do conflito de interesses"... " subjacentes a cada norma, à inventariação das várias soluções teoricamente possíveis desse conflito e à descoberta das razões determinantes da opção real ou presuntivamente feita na lei". ... "Só através do constante processo dialéctico que a interpretação envolve entre a lei e a vida ... se torna possível a determinação do elemento capital da interpretação, que é a chamada ratio legis".

A relevância da simulação como fundamento de anulação do casamento começou por não ser considerada admissível em razão da certeza e estabilidade do vínculo matrimonial, alicerçada numa relação orgânica destinada à tutela do interesse familiar, ao qual se deviam subordinar os interesses individuais das partes. Porém, com o advento da guerra de 1939-45 surgiram situações de tal forma críticas que muitas pessoas se serviram, como expediente, do casamento, para se livrarem dos perigos a que se achavam expostas ou para fugirem a providências ou perseguições, institucionalizadas pelos beligerantes, que os ameaçavam (caso de internamentos ou trabalho obrigatório). E, então, a jurisprudência e a doutrina, perante tais situações de manifesto estado de necessidade, passaram a admitir que nestes casos o casamento era nulo por falta de consentimento em que o intuito simulatório era indubilitável. Daqui resultou uma orientação generalizada oposta áquela da irrelevância da simulação no casamento. Tal orientação encontra-se consagrada no art. 1635, d) do Código Civil. Considerando, assim, a razão de ser da lei, o sentido da expressão "casamento simulado" não pode ser outro que não seja aquele em que há falta absoluta de consenso, em que a vontade dos cônjuges não se dirigia à criação do vínculo matrimonial, com os correspondentes direitos e obrigações. Ou, como refere o Prof. Varela, obr. citada, pag. 257, "a simulação no casamento consiste especialmente no acordo das partes em se não sujeitarem às obrigações e não exercitarem os direitos que, essencialmente, decorrem do matrimónio". Por conseguinte, deste conceito que se perfilha de "casamento simulado", não é elemento essencial o intuito de enganar terceiros.”.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01-03-2016, no Processo 750/14.4TBCTB.C1



I – O Ministério Público dispõe de legitimidade processual para intentar uma acção de anulação de casamento baseada em simulação, nos termos do artigo 1635º, alínea d) do CC, quando essa simulação se traduziu na realização de um casamento que, excluindo a finalidade constante da noção dada pelo artigo 1577º do CC, foi contraído com o único objectivo de proporcionar a algum dos nubentes a obtenção de um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou de defraudar a legislação em matéria de aquisição da nacionalidade.

II – Não constitui obstáculo a esta atribuição de legitimidade a circunstância do artigo 1640º, nº 1 não referir o Ministério Público entre os legitimados para essa acção de anulação.

III – A forte presença de um interesse público referido ao Estado-Colectividade na anulação de um casamento fraudulento com as características indicadas em I, justifica amplamente a consideração do Ministério Público, enquanto portador natural desse interesse no ambiente de um processo judicial, como parte legítima.

IV – A construção interpretativa dessa legitimidade pode ocorrer por referência ao trecho final do artigo 1640º, nº 1 do CC, interpretado extensivamente, ou por via de uma extensão teleológica da razão de ser da legitimação do Ministério Público para acções de anulação de casamento prevista no artigo 1639º, nº 1 e 1642º do CC.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-03-2015, no Processo 2051/11.0TBPBL.C1



"...Do direito. Determina o artº 186 nº 2 da Lei nº 23/2007 que quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos atos previstos no número anterior, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos. Não restam dúvidas que a apurada atuação da arguida preenche os elementos constitutivos do tipo. De facto esta, de forma reiterada, com regularidade praticamente semanal e ao longo de vários meses, criou condições para a celebração de casamentos de conveniência, uma vez que, ao invés de tomar medidas que evitassem a realização de casamentos que sabia serem de conveniência, para fins proibidos, fomentou-os, aligeirando procedimentos, contornando a lei e demostrando absoluta disponibilidade para executar diariamente vários casamentos, se necessário após as horas de expediente, com base na mera solicitação feita pelos arguidos angariadores, nesse sentido.

A sua atuação foi querida, logo dolosa.”

6. Presente esta fundamentação da decisão do Tribunal da Relação, não é possível retirar dela que se tenha professado um entendimento do princípio da livre apreciação da prova no sentido que decorre de qualquer dos enunciados do requerimento de interposição de recurso dos recorrentes. De modo algum se afirma no acórdão recorrido a possibilidade de modificação da decisão de facto da 1º instância contra a prova testemunhal produzida, contra a força probatória de documentos autênticos, com base no “talvez”, sem indicação racional da concreta razão da divergência. O que há é um diferente juízo quanto ao conhecimento, por parte dos arguidos recorrentes, da natureza simulada dos casamentos e relativamente à consciência da ilicitude, com base na circunstanciada exposição das razões pelas quais se não aceita a conclusão a que chegara a 1ª instância. De modo que, ainda que hipoteticamente se reconhecesse natureza normativa aos enunciados apresentados pelos requerentes no requerimento de interposição do recurso, não pode dizer-se que tenha sido feita aplicação do sentido aí indicado...".

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 289/2013 de 23-05-2013, no Processo n.º 169/13



OBJECTO RECURSO JURISDICIONAL - DIREITO RESIDÊNCIA - ABUSO DIREITO

I. O recurso jurisdicional visa a decisão judicial, e deverá consubstanciar pedido de revisão da sua legalidade, com base em erros ou vícios da mesma, erros ou vícios que deve afrontar, dizendo do que discorda e porque discorda;

II. Caso assim não faça, limitando-se a repetir argumentos usados para impugnar o acto administrativo objecto da acção especial, o recurso jurisdicional terá, em princípio, de improceder;

III. Estas situações devem ser tratadas com prudência e com rigor, a fim de não se limitar injustificadamente o direito de recurso; 

IV. Em caso de abuso de direito, de fraude ou de casamento ou união simulada, ou de conveniência, deve ser recusado ou retirado o direito de residência e os apoios sociais conferidos ao abrigo da Lei nº37/2006 de 09.08 [que regula o exercício do direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União Europeia e dos membros das suas famílias no território nacional e transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº2004/38/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29.04].

"...Como vemos, a decisão administrativa impugnada teve por base, sobretudo, a convicção de que o ora recorrente contraiu com a cidadã portuguesa um - assim chamado - casamento branco, tendo como objectivo contornar as regras relativas à entrada, e permanência, de nacionais de países terceiros, e obter, para si e familiares autorização de residência em Estado membro da União Europeia [Portugal].

Esta convicção é gerada pelas declarações claras, e dotadas de óbvia razão de ciência, prestadas pela ex-cônjuge, que não consta ter qualquer motivo para querer prejudicar o recorrente.

Os direitos fundamentais de audiência e de defesa, transversais na nossa ordem jurídica, impediam que a pronúncia, assim baseada, pudesse prejudicar o recorrente sem que lhe tivesse sido facultado o direito de intervir, apresentando a sua defesa. O que foi feito.

Mas, face a essas declarações contundentes, da sua ex-esposa, o ora recorrente, na pretensão de infirmá-las, limitou-se a apresentar como testemunha precisamente a amiga que terá falado nele à sua ex-mulher [MJ. …]. Tendo o seu depoimento sido totalmente inconclusivo para as pretensões do recorrente.

E a verdade é que as referidas declarações da ex-esposa do ora recorrente encontram uma verosímil correspondência na actuação do mesmo, pois que o seu percurso foi o de passar de uma autorização de permanência em Portugal [artigos 3º e 19º do DL nº244/98, de 08.08, na redacção dada pelo DL nº34/2003, de 25.02], que não lhe dava residência legal, para a obtenção do cartão de residência na qualidade de cônjuge de cidadã portuguesa, e, depois, enquanto titular deste último, tentar reagrupar o seu novo, e eventualmente verdadeiro, agregado familiar.

Não é verdade, pois, que da autorização de permanência, como título temporal que era, se possa retirar, como parece querer fazer o recorrente, qualquer tipo de argumento em favor da sua tese. Tinha, e isso transparece obviamente da leitura do seu procedimento face à lei aplicável, verdadeiro interesse em obter o cartão de residência.

Ressuma, assim, do que foi dito, e numa abordagem generosa do objecto deste recurso jurisdicional, que o julgamento de direito que foi realizado pelo TAF deve ser mantido, porque fiel à lei e ao direito...".

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 24-02-2012, no Processo 02370/08.3BEPRT



DIREITO DE CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA - CIDADÃOS DA UNIÃO - FAMILIARES - CARTÃO DE RESIDÊNCIA - ABUSO DE DIREITO

I - A norma do art. 15º não pode deixar de ser analisada no contexto do diploma em que se encontra inserida - a Lei nº 37/2006 -, que regula o exercício do direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União Europeia e dos membros das suas famílias no território nacional e que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2004/3 8/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril (cfr. art. 1º); II - A “ratio legis” deste diploma legal (e da Directiva que lhe subjaz) é da “protecção do interesse da unidade familiar”, mas se tal protecção é imperativa relativamente às situações em que exista um real núcleo familiar, não se basta com mera aparência, não cobrindo, naturalmente, as situações fraudulentas;

III - Existe um imperativo legal, resultante da Lei nº 37/2006 e da Directiva nº 2004/3 8/CE, cometido ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de investigar condutas, que possam corresponder às situações usualmente designadas de casamentos brancos, com a sanção estabelecida no citado art. 31º, nº 1 quando se apura a sua existência (cfr. tb. art. 1º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 252/00, de 16/10);

IV - Não é irrelevante que a ora Recorrente não coabite com o marido e se dedique à prostituição e que tenha referido apenas ter a viver em Portugal sobrinhas, sem referir o marido; Ou, que o “marido” refira que foi a Recorrente que o pediu em casamento e que poderia ter pedido € 1.500,00 para o fazer;

V - No caso concreto, a interferência do Estado Português, por via do SEF, na esfera da reserva privada e familiar dos cidadãos, não contende, em primeiro lugar, com “a extensão e o alcance do conteúdo essencial” do dito direito (art. 18º, nº 3 in fine da CRP), “limitando-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (art. 18º, nº 2 in fine), precisamente, a segurança interna e a ordem pública que aqui podem ser postas em causa por condutas “de abuso de direito, de fraude ou de casamento ou união simulada ou de conveniência” (citado art 31º, nº 1 da Lei nº 37/2006).

"...Efectivamente, o que se verifica é que não existe um único indício da existência de vida em comum - nem coabitação, nem assistência, nem cooperação, nem assunção de encargos de vida familiar, o que funda a convicção de que não existe no caso concreto qualquer comunhão de vida, nem intenção de a constituir (cfr. arts. 1577º e 1672º a 1676º do C. Civil).

E, é ao SEF que cabe averiguar, aquando da solicitação de um cartão de residência, se a relação familiar invocada consubstancia uma ligação familiar efectiva, de acordo com o art. 26° da CRP e os diplomas supra mencionados...".

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17-12-2009, no Processo 05523/09 



"... Urge concluir, ao arrepio do douto Acórdão, que o ora recorrente [SEF] está obrigado a averiguar, aquando da solicitação de um cartão de residência, se a relação familiar invocada consubstancia uma ligação familiar efectiva, fazendo-o de harmonia com o art.º 26° da CRP, os art.°s 8° e art.° 12° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o art.° 16° da Declaração Universal dos Direitos do Homem. 

É unânime, na doutrina constitucionalista que: - os direitos não são absolutos e que admitem restrições (mesmo os Direitos, Liberdades e Garantias); - a Constituição prescreve excepções e admite que a lei estabeleça outras, desde que justificadas e limitadas (cf. art.º 18° da CRP); - aquelas têm de obedecer a princípios de prossecução do interesse público, de proporcionalidade, de justiça (cf. art.° 266° n.° 1 e 2 da CRP e art.°s 4°, 5° e 6° do CPA) ...

Na investigação sobre a ligação familiar invocada, recorre-se de vários indícios, apontados na Resolução do Conselho supra, v.g. a ausência de vida comum e/ou de contribuição adequada para os encargos decorrentes do casamento, o facto dos cônjuges se enganarem sobre os dados respectivos (nome, morada, nacionalidade, emprego), as circunstâncias em que se conheceram ou outras informações importantes de carácter pessoal, a eventual recepção (ou a ponderação) de uma quantia em dinheiro para que o casamento seja celebrado, etc;..."

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, Processo n.º 0718/09, de 30 de setembro


Informação adicional


I DECRETO REGULAMENTAR N.º 84/2007, de 5 de novembro (capítulo IV, autorização de residência e cartão azul UE - Artigo 69.º - Cancelamento de autorização de residência) P HANDBOOK ON ADDRESSING THE ISSUE OF ALLEGED MARRIAGES OF COVENIENCE BETWEEN EU CITIZENS AND NON-EU NATIONALS IN THE CONTEXT OF EU LAW ON FREE MOVEMENT OF EU CITIZENS – Comissão Europeia, 2014  N COMBATER OS ABUSOS AO DIREITO À LIVRE CIRCULAÇÃO DOS CIDADÃOS DA UE: A COMISSÃO AJUDA OS ESTADOS-MEMBROS A LUTAR CONTRA OS CASAMENTOS DE CONVENIÊNCIA – Comunicação da Comissão Europeia, 26 de setembro de 2014 T RESOLUÇÃO DO PARLAMENTO EUROPEU 2013/C 131 E/08 – sobre a criminalidade organizada na União Europeia, publicada a 8 de maio de 2013 P IMIGRAÇÃO ILEGAL E TRÁFICO DE SERES HUMANOS: INVESTIGAÇÃO, PROVA, ENQUADRAMENTO JURÍDICO E SANÇÕES – Coleção Ações de Formação, Centro de Estudos Judiciários P UTILIZAÇÃO INDEVIDA DO DIREITO AO REAGRUPAMENTO FAMILIAR: Casamentos de conveniência e falsas declarações parentesco – SEF/REM, 2012 P ASPECTOS JURÍDICO-PENAIS E PROCESSUAIS DO REGIME JURÍDICO DE ENTRADA, PERMANÊNCIA, SAÍDA E AFASTAMENTO DE ESTRANGEIROS – Gabriel Catarino, JULGAR on line, 2009 

 

Origem do texto


Direito nacional 

A norma foi introduzida no regime jurídico de estrangeiros pelo actual diploma, com o intuito de prevenir a fraude ou a simulação de relações de parentesco para efeitos da concessão do direito de residência, nomeadamente por via do reagrupamento familiar, bem como para a aquisição da nacionalidade por via do casamento com cidadãos portugueses.

Uma afloração da ilicitude do casamento por conveniência podia ser encontrada no disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 93.º do diploma anterior, introduzido pela redacção do Decreto-Lei 34/2003, de 25 de Fevereiro, como fundamento de cancelamento do direito de residência.

 

Procedimento legislativo


Proposta de Lei 93/X do Governo (2006)          

Artigo 186.º - Casamento de conveniência

1 - Quem contrair casamento com o único objectivo de proporcionar a um nacional de Estado terceiro a obtenção de um visto ou de uma autorização de residência ou a fraude à lei da nacionalidade é punido com pena de prisão de um a quatro anos.

2 - A tentativa é punível.

Discussão e votação indiciária: proposta apresentada pelo BE de eliminação do artigo 186.º da proposta de lei n.º 93/X — rejeitada, com votos contra do PS, PSD e CDS-PP, votos a favor do BE e a abstenção do PCP; Proposta de alteração Artigo 186.º Casamento de conveniência (eliminar). Proposta apresentada pelo PSD de substituição do artigo 186.º da proposta de lei n.º 93/X — aprovada, com votos a favor do PS, PSD e CDS-PP, votos contra do BE e a abstenção do PCP, ficando consequentemente prejudicada a redacção da proposta de lei n.º 93/X para este artigo.




Proposta de Lei 50/XII do Governo (Lei n.º 29/2012)

Artigo 186.º – Casamento ou união de conveniência

1 - Quem contrair casamento ou viver em união de facto com o único objetivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto, uma autorização de residência ou um cartão azul UE ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.

2 - Quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos atos previstos no número anterior, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.

3 - A tentativa é punível.

Discussão e votação na especialidade: artigo 186.º da Lei n.º 23/2007 – Proposta de alteração aos n.ºs 1 e 2, apresentada pelo PS, na versão de substituição – aprovado com votos a favor do PSD, do PS e do CDS-PP e abstenções do PCP, do BE e do PEV; Proposta de alteração Artigo 186.º (…) 1 — Quem contrair casamento ou viver em união de facto com o único objetivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade é punido com pena de prisão de um a cinco anos. 2 — Quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos atos previstos no número anterior, é punido com pena de prisão de dois a seis anos. 3. (…). Texto da PPL 50/XII – prejudicado pela votação anterior. Redação original da Lei n.º 23/2007:     

Artigo 186.º - Casamento de conveniência

1 - Quem contrair casamento com o único objectivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto ou uma autorização de residência ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.

2 - Quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos actos previstos no número anterior é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

3 - A tentativa é punível.