Lei de Deus & Lei de Moisés - II

Acreditar que as Sagradas Escrituras utilizam sempre a palavra "lei" como referência a todos os mandamentos, estatutos e juízos divinos, sem distinção, é tratá-las como um amontoado de contradições. É afirmar que havia discordância doutrinária entre os discípulos; é declarar que Paulo era instável em seus ensinos ao comparar, por exemplo, Romanos 2:13 e Gálatas 2:16; é obrigatoriamente assumir que os Dez Mandamentos foram abolidos na cruz do Calvário, e assim, apoiar um dos maiores sofismas de Satanás contra eles (Apocalipse 12:17 cf. João 14:30-31, João 15:10). Diversos textos bíblicos são interpretados grosseiramente às avessas com o intuito de sustentar a fictícia ideia de que todas as coisas vinculadas a palavra "lei" foram revogadas. E os mais utilizados com este propósito são: Efésios 2:14-16; Colossenses 2:14 e Hebreus 10:1.

"Lei dos mandamentos na forma de ordenanças"

"Porque Ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na Sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em Si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade." (Efésios 2:14-16 RA).

O tema central da carta aos efésios é a unidade da igreja (na época formada por judeus e gentios, Atos 13:43-48). E esta unidade estava ameaçada por: interpretações equivocadas da lei de Moisés (Tito 1:12-14 cf. Marcos 7:7-9); exigências feitas aos gentios para que seguissem integralmente a lei mosaica(a) (cf. Atos 15:1-5); e, pelo comportamento exclusivista e hostil de alguns judeus (cf. Gálatas 2:12). Estes fatores foram os responsáveis pelas desavenças e separação entre judeus e gentios, não a lei de Moisés. Esta lei não foi estabelecida por Deus para proporcionar essa desunião(b), ao contrário, embora ela possua regimentos restritos a Israel, o seu conteúdo foi elaborado para beneficiar a todos os povos.1

As mudanças no sacerdócio levítico, que era orientado pela lei (Hebreus capítulo 7), não foram compreendidas de imediato após a morte de Cristo, isso ocorreu gradativamente e com fortes conflitos ideológicos. Quase todas as desavenças que desencadearam a divisão ("parede da separação") entre judeus e gentios originavam-se de questões litúrgicas da lei de Moisés. E Cristo destruiu essa "parede" ao encerrar em Si mesmo o conjunto de regras cerimoniais ("lei dos mandamentos na forma de ordenanças") que simbolizavam a Ele e Seu sacrifício. Esta é a questão tratada em Efésios 2:14-16. Ressaltando que essas cerimônias foram cessadas devido o cumprimento de suas funções e não por causa da turbulência entre judeus e gentios. A destruição da "parede de separação" foi um benefício adicional proporcionado pela cruz.

A palavra "ordenança" usada em Efésios 2:15 provém do grego "dogma", e significa: doutrina; regulamento; ordem civil ou cerimonial; requerimento da lei de Moisés.2 Estas definições reforçam o entendimento de que não houve revogação integral da lei mosaica, mas, de sua parte cerimonial; visto que muitos ensinos trazidos nesta lei são indispensáveis, sobretudo os Dez Mandamentos transcritos das tábuas de pedra(c). Adiante alguns comentários que seguem este posicionamento bíblico:

John Calvin, considerado o personagem mais importante da segunda geração da Reforma, afirma:

"O que havia sido metaforicamente compreendido pela palavra 'parede', é agora mais claramente expresso. As cerimônias, pelas quais a divergência foi mencionada, foram abolidas por meio de Cristo (...). Quando uma obrigação é revogada, a escrita é destruída; uma metáfora que Paulo utiliza, neste assunto, [encontra-se] em outra epístola (Colossenses 2:14). (...) Esta é a habitual frase de Paulo para descrever a lei cerimonial, a qual o Senhor não ordenou aos judeus meramente como uma simples conduta de vida, pois ligava-os a vários estatutos. É evidente, também, que Paulo está tratando aqui exclusivamente da lei cerimonial, visto que a lei moral não é um muro de divisão que nos separa dos judeus, mas estabelece instruções nas quais os judeus não eram menos interessados em relação a nós mesmos."3

John Wesley, fundador da igreja Metodista, declara:

"Tendo abolido pelo Seu sofrimento na carne, a causa da inimizade entre judeus e gentios, como a lei de mandamentos cerimoniais e todos os decretos dela. Com isso oferece misericórdia a todos; ver Colossenses 2:14."4

Adam Clarke, teólogo metodista, esclarece:

"A inimizade de que fala o apóstolo era recíproca entre judeus e gentios. O primeiro detestava os gentios, e dificilmente admitia classificá-los de homens; e o segundo tinha o maior desprezo pelos judeus por causa da peculiaridade de seus ritos e cerimônias religiosas, que diferenciavam de todas as demais nações da Terra."5

Albert Barnes, escritor e ministro presbiteriano, sustenta:

"(...) A ideia é, que a lei cerimonial dos judeus, que eles tanto orgulhavam-se, foi a causa da hostilidade existente entre eles. (...) Quando Cristo veio e aboliu através de Sua morte a peculiar lei cerimonial, naturalmente que a causa desse afastamento cessou. (...) Isto não se refere à lei moral, que não era a causa da separação, e que não foi abolida pela morte de Cristo, mas às leis que determinam sacrifícios, festivais, jejuns e etc.; que constituem as particularidades do sistema judaico. (...) A palavra 'ordenança' significa: decreto, edito, regra (Lucas 2:1; Atos 16:4; Atos 17:7; Colossenses 2:14)."6

John MacArthur, escritor e pastor batista, assevera:

"(...) Agora, qual foi o maior obstáculo, a maior e genuína barreira entre um judeu e um gentio? O que era ela? Basicamente, a lei cerimonial, não foi? No geral, as questões judaicas. O conjunto cerimonial: festa religiosa, jejum, vestimenta, comida, circuncisão; todas as coisas que tinham. (...) ele [Paulo] não está falando sobre a lei moral. Permita-me antecipar isto. Deus tem uma lei moral, e a lei moral de Deus nunca muda. Nunca. Ela jamais mudou. A lei moral de Deus não foi abolida. Romanos 1 e 2 dizem que ela está escrita no coração de cada homem. A lei moral de Deus foi formalizada nos Dez Mandamentos em Êxodo 20. A lei moral de Deus está resumida em Mateus 22, onde há um grande mandamento."7

Geneva Bible(d), primeira tradução da Bíblia em inglês baseada diretamente de fontes hebraica e grega, traz em suas notas de rodapé o seguinte comentário:

"Cristo ofereceu em Seu próprio corpo o sacrifício definitivo, do qual os sacrifícios do templo eram apenas sinal [simbolismo]. As leis cerimoniais do Antigo Testamento que separavam judeus dos gentios não têm mais razão de ser após o seu cumprimento em Cristo."8

"Escrito de dívida"

"Tendo cancelado o escrito de dívida", que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz." (Colossenses 2:14 RA).

A expressão "escrito de dívida" de Colossenses 2:14 é traduzida do grego "cheirographon", que significa: manuscrito (formalmente estabelecido); nota manuscrita; nota promissória; dívida a ser restituída.9 "Escrito de dívida" não é sinônimo de lei. A palavra "lei" nem ao menos é usada na carta aos colossenses.

Deus estabeleceu uma lei justa para direcionar o proceder individual e coletivo, e não para ser um conjunto de regras "prejudiciais". Prejudicial, no verso em questão, é a punição destinada ao violador da lei. E esta punição auxilia na integridade e respeito da própria lei. A dívida mencionada em Colossenses 2:14 existia (subsistia) por causa das transgressões contra o regimento da lei, como por exemplo, as violações cometidas contra as ordenanças. Por isso a afirmativa: "cancelou a escrita de dívida, que consistia em ordenanças [dogma]" (Colossenses 2:14 NVI).

Certamente que houve preceitos cerimoniais da lei de Moisés que foram revogados devido ao cumprimento de seus propósitos, e Paulo menciona isso em Efésios 2:14-16. Contudo, Colossenses 2:13-14 volve-se especificamente sobre o cancelamento do débito ("escrito de dívida") gerado pelo desrespeito à lei. Pois, assim como a lei prescreve bênçãos aos que lhe obedecem, ela também determina maldições e penalidades aos que se desviam de suas orientações.10 E existia uma dívida a ser paga por aqueles que a transgrediram; porém, ela foi quitada ("removida") pelo sacrifício de Cristo.

Embora a cruz do Calvário seja o ponto de referência para Efésios 2:15 e Colossenses 2:14, há um contraste entre eles, visto que existe diferença entre: revogar algo após a sua função ter sido concluída, como ocorreu com as ordenanças cerimoniais da lei(e) citadas em Efésios 2:15; e, revogar algo motivado pelo perdão, como ocorreu com a "dívida" mencionada em Colossenses 2:14, que foi gerada pela transgressão da lei. Outra interpretação atribuída a Colossenses 2:14, afirma que o "escrito de dívida" refere-se aos preceitos cerimoniais da lei mosaica, e entre os adeptos deste posicionamento estão: Adam Clarke,11 Albert Barnes,12 John Calvin,13 John Gill14 e Matthew Henry15.

"Sombras dos bens vindouros"

"Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem." (Hebreus 10:1 RA).

A lei de Moisés possui normas cerimoniais que orientavam os simbolismos, as prefigurações de Jesus Cristo e Seu sacrifício em oferta pelos pecados da humanidade (Hebreus capítulo 9); normas que tratavam das questões litúrgicas do santuário terrestre, tais como: ofertas, holocaustos, abluções, festividades e etc. E estas liturgias são chamadas por Paulo de "sombra dos bens vindouros" ou "sombra dos benefícios que hão de vir" (NVI).

A lei mosaica não é constituída integralmente de preceitos cerimoniais(f). O verso de Hebreus 10:1 afirma que esta lei "tem", e não que ela é a "sombra dos bens vindouros". A flexão verbal "tem" origina-se do verbo grego "echo", que significa: possuir; conter; incluir; manter; reter algo e utilizá-lo. É até ridículo considerar a lei de Moisés, em sua totalidade, uma "sombra de benefícios futuros", pois a mesma possui mandamentos morais e éticos que promovem benefícios imediatos quando obedecidos.

a. Acesse: O Concílio de Jerusalém

b. Além da inimizade entre judeus e gentios, pode-se adicionar a inimizade destes para com Deus, pois ambos os grupos violaram o segundo fundamento de Sua lei, o "amor ao próximo" (Levítico 19:18 cf. Mateus 22:39).

c. Acesse: Lei de Deus & Lei de Moisés

d. Obra coordenada por Miles Coverdale (foi adepto do luteranismo e auxiliar de Willian Tyndale na tradução do Pentateuco) e John Knox (principal líder da Reforma na Escócia). A Geneva Bible (Bíblia de Genebra) foi a precursora da versão King James (1611).

e. As regras cerimoniais da lei de Moisés não foram anuladas para que a punição do pecador fosse cancelada, não existe este ensino nas Escrituras. Perdão se obtém pelo arrependimento e fé em Cristo, unicamente por intermédio dEle, Deus elimina e esquece a pendência, a dívida, o castigo cobrado pela lei (Jeremias 5:25; Jeremias 11:10; Isaías 43:25; Hebreus 8:8-12; Hebreus 10:16-18 cf. Isaías 1:18-20). Acesse: Perdão e Salvação.

f. Acesse: Lei Moral e Lei Cerimonial

1. Êxodo 19:5-6 cf. Romanos 3:2; Levítico 24:22; Isaías 51:4; Isaías 56:6-7; Romanos 3:29-30; Gálatas 3:28-29.

2. STRONG, J. (1981). The Exhaustive Concordance of the Bible, ed. Macdonald Publishing Company; (ref. n.º 1378).

3. CALVIN, JOHN. Commentary on Galatians and Ephesians, Grand Rapids, MI: CCEL, p. 197-198.

4. WESLEY, J. Wesley's Notes on the Bible, Grand Rapids, MI: CCEL, p. 483.

5. CLARKE, A. (1838). The New Testament of our Lord and Saviour Jesus Christ, Philadelphia: Cowperthwait & Co., p. 229.

6. BARNES, A. (1854). Notes, Explanatory and Pratical, on the Epistles of Paul to the Ephesians, Philippians, and Colossians, New York: Harper & Brothers Publishers, p. 53b.

7. John Fullerton MacArthur, The Unity of the Body, part 2, sermon n.º 1910 (March 12, 1978).

8. Geneva Study Bible, commentary on Ephesians 2:14.

9. STRONG, J. op. cit., (ref. n.º 5498).

10. Deuteronômio capítulos 28, 29 e 30; Josué 1:1-8; Josué 8:34-35.

11. CLARKE, A. op. cit., p. 270a.

12. BARNES, A. op. cit., p. 304a.

13. CALVIN, J. Commentary on Philippians, Colossians, and Thessalonians, Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, p. 164-165.

14. GILL, J. Exposition of the Bible: New Testament Commentary; (Colossians 2:14).

15. HENRY, M. The Concise Commentary on the Whole Bible, Grand Rapids, MI: CCEL, p. 1934-1935.

Outros estudos: