O Sono da Pessoa que lida com o Trauma
Autores: Tânia Alves e Sancho Ferreira
RESUMO
O sono é descrito nas teorias de Enfermagem como um alvo dos nossos cuidados, pois repercute-se no estado de saúde do ser humano. Segundo Carpenter & Carpenter (2003) “é essencial uma porção ininterrupta de sono adequado, para prevenir a exaustão ou doença, e manter o bem-estar fisiológico e psicológico….” (p.639).
O “sono é um barómetro preciso do estado mental do sujeito, respondendo rapidamente a situações de tensão e ansiedade, algumas vezes antes mesmo de qualquer outro sistema corporal o fazer.” (Lavie, 1998, p.168)
Porque a recuperação de energias, proporcionada pelo sono não pode ser induzida de nenhuma outra forma, consideramos que o enfermeiro na prestação de cuidados de qualidade deve promover um sono restaurador que permita às pessoas atingir o seu máximo potencial de saúde.
Cremos que o enfermeiro tem um papel crucial na detecção de factores de cariz psicológico que possam afectar o sono da população. A vivência de uma situação traumática poderá provocar alterações de sono, pela ansiedade e apreensão que lhe está associada.
Serra (2007), refere que
…as vítimas de uma tragédia não são apenas aquelas que estão directamente envolvidas na situação. A par destas, existem também os familiares das vítimas e ainda aqueles que prestam socorro…bombeiros, policias, médicos e para-médicos, conhecidos enfim, todos os que na ocasião procuram ajudar ou que tomam conhecimento repentino da tragédia… (p.38)
Este estudo de carácter descritivo-exploratório tem como objectivos comparar as características do sono actual dos indivíduos, com as características do sono antes da vivencia da situação traumática e identificar as principais alterações de sono ocorridas após a situação traumática nos indivíduos que prestam socorro a vítimas de situações trágicas.
Foram analisados os resultados de 202 questionários aplicados a bombeiros de cinco corporações regionais, socorristas da Cruz Vermelha e ainda médicos e enfermeiros da EMIR, constituindo uma amostra não probabilista acidental e estratificada.
O desenvolvimento teórico fundamentou-se em autores como Lavie (1998), Teresa Paiva (2001 e 2007), Friedman (2003), Serra (2007), Maia (2007), entre outros.
As situações potencialmente traumáticas mais experienciadas pelos indivíduos foram as lesões graves em situação de acidente e a morte de desconhecido. Após a vivencia dessas situações as reacções mais assinaladas são o evitar pensar sobre o assunto e o reviver do acontecimento através de flashbacks.
Foram analisadas duas dimensões, a quantidade e a qualidade de sono dos participantes antes e após a vivência da situação traumática, verificando-se uma diminuição em média de 40 minutos no tempo de sono após a situação potencialmente traumática. A satisfação de sono também diminuiu, aumentando os níveis de insatisfação ou pouca satisfação.
No período em que a situação ocorreu as principais alterações de sono assinaladas foram a dificuldade em adormecer, o sono “superficial” e os sonhos e pesadelos. Actualmente, as pessoas referem acordar frequentemente durante a noite, após acordar sentir maior dificuldade adormecer e sentir sonolência diurna.
ABSTRACT
The sleep is described in Nursing theories as a target of our care, as it reflects itself in the state of health of human beings. According to Carpenter & Carpenter (2003) "an uninterrupted part of appropriated sleep, is essential to prevent exhaustion or disease, and to maintain the physiological and psychological welfare…” (p.639).
The "Sleep is an accurate barometer of the subject’s mental state, quickly responding to situations of tension and anxiety, sometimes even before any other body system doing so." (Lavie, 1998, p.168).
As the recovery of energy provided by sleep can not be induced in any other way, we believe that the nurse should promote a restorative sleep, in the providing of a quality care allowing people to achieve their maximum potential of health.
We believe that the nurse has a crucial role in detecting psychological factors that may affect the sleep of the population. The experience of a traumatic situation may cause changes in sleep, by the anxiety and concern that is related to that kind of situation.
Serra (2007), states that
…the victims of a tragedy are not only those who are directly involved in the situation. Alongside these, there are also the relatives of the victims and those who provide assistance… fire-fighters, police, medical and para-medical, known in short, all those who at the time seek help or become aware of the sudden tragedy…(p.38).
This descriptive exploratory study aims to compare the current sleep characteristics, with the sleep characteristics before the experience of the traumatic situation in individuals who provide assistance to victims of tragic situations; it is also our purpose to identify key changes in sleep occurred after the traumatic situation.
We analyzed the results of 202 questionnaires applied to fire-fighters from five regional corporations, assistance of the Red Cross, doctors and nurses of the Emir, creating a non probabilistic, accidental and stratified sample.
The theoretical backgrounds of this study are based in autores such as Lavie (1998), Teresa Paiva (2001 e 2007), Friedman (2003), Serra (2007), Maia (2007), among others.
The potentially traumatic situations most experienced by the subjects where “severe lesions” in the circumstance of an accident, and the “death of unknown people”. After going by that sort of situations, the reactions more pointed out by the subjects where “avoid thinking” about the situation they’ve experienced and “felling like going thru the same experience by flashbacks”.
We analysed the quantity and the quality of sleep of the participants, before and after the experience of the potentially traumatic situation, and verified that the sleep time has decreased in average by 40 minutes after the traumatic situation occurred. Sleep satisfaction also decreased, increasing the levels of sleep dissatisfaction or poor satisfaction.
At the time of the situation the main changes in sleep referred by the subjects were difficulty falling asleep, superficial sleep, dreams and nightmares.
Currently, people state that they awake frequently during the night, after awaking they have more difficulty in falling asleep again and that they feel daytime sleepiness.
INTRODUÇÃO
Passamos uma grande parte do nosso tempo de vida a dormir. A alternância entre estados de vigília e períodos de sono é essencial à homestase do ser humano, e por vezes só nos apercebemos do real impacto do sono sobre as nossas vidas quando dele ficamos privados.
O papel exacto do sono não é matéria de consenso, no entanto segundo a bibliografia por nós consultada parece-nos existir uma certa congruência no que concerne à sua função restauradora.
A enfermagem como ciência procura um conhecimento mais abrangente do Homem, de forma a prestar um melhor cuidado, um cuidado global e personalizado. O estudo do sono assume pois, toda a pertinência pois, este influência a saúde e o bem-estar da pessoa. Senão vejamos, segundo Friedman (2003)
Crê-se que mais de metade da totalidade dos adultos referem dificuldades com o sono, em algum momento das suas vidas. Os problemas resultam em sofrimento; risco de acidente; preocupações com a perda da função psíquica, intelectual ou neurológica; perturbação; exacerbação de outros problemas de saúde. (p.395)
Para além de factores de ordem física inerentes seja ao ambiente ou ao organismo, factores de carácter pessoal e mesmo psicológico podem assumir um papel preponderante sobre o sono. Os estados emocionais muitas vezes latentes ao longo do dia podem insurgir-se à hora de dormir assombrando o sono.
O sono implica relaxamento das tensões diárias. Quando a pessoa se vê confrontada com situações ansiogénicas poderá levar consigo para a cama uma carga emocional da qual não consegue soltar-se mantendo um estado de vigília constante. Por outro lado, ainda que consiga adormecer poderão surgir sonhos perturbadores e intrusivos, que afectam a manutenção do sono. Tudo isto poderá afectar a qualidade do sono, na medida em que, o impacto dos factores psicológicos sobre o sono poderá manifestar-se por perturbação do repouso por ele oferecido e comprometimento da sua função restauradora.
Em concordância Sands e Wilson (2003) afirmam que
É difícil prever quais os efeitos do stress num indivíduo, mas a verdade é que o ritmo desenfreado de muitos estilos de vida contemporâneos reduz, de modo significativo, o tempo livre para um repouso e um sono, reparadores e continua a aumentar o numero de adultos que referem não “conseguir dormir o suficiente. (p.64)
Um sono que é perturbado por situações de grande impacto emocional poderá ter repercussões diárias no período de vigília, como um maior cansaço e consequentemente menor rendimento. Em situações em que existe uma privação considerável de sono, a pessoa poderá inclusive sentir-se irritada o que pode prejudicar o seu funcionamento social. Assim, o sono assume um papel marcante no período de vigília. Não obstante, Sands & Wilson (2003) referem que “Os padrões de sono variam muito de indivíduo para indivíduo, mas a maioria das pessoas sabe claramente o padrão de sono que melhor contribui para a sensação de bem-estar diário.” (p.64).
Este estudo, realizado no âmbito do curso de Licenciatura em Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem de S. José de Cluny intitulado “O sono da pessoa que lida com o trauma”, visa estudar aspectos relativos ao sono em pessoas que desempenham funções de socorro, estando assim em maior contacto com situações potencialmente traumáticas.
De carácter descritivo-exploratório, este estudo, pretende comparar as características do sono dessas mesmas pessoas antes e após a ocorrência da situação potencialmente traumática, bem como identificar as principais alterações de sono após a dita ocorrência.
CONCLUSÕES
A realização deste trabalho de investigação constituiu uma grande experiência de aprendizagem aos mais diversos níveis, contribuindo para a nossa formação pessoal e profissional e facultando-nos a oportunidade de desenvolver competências ao nível da investigação. Sentimos grande contentamento em saber que de alguma forma, ainda que modesta, demos o nosso contributo para aumentar o conhecimento em Enfermagem.
O sono constitui uma grande parte das nossas vidas, é nele que podemos ter os sonhos mais belos, é através dele que plenamente restauramos as nossas energias. Assim, podemos dizer que funciona como um motor impulsionador das nossas forças para o dia seguinte. Porém quando este está perturbado, o nosso equilíbrio físico e psicológico é perturbado. As emoções reflectem-se na forma como agimos e para alguns de nós também no modo como dormimos. Por tudo isto vinculado ao estudo do sono em si, preocupamo-nos em estudar o sono em pessoas cujas profissões/actividades as predispõem à vivência de situações emocionalmente perturbadoras.
Passamos a apresentar as principais conclusões. No concerne à primeira parte do questionário aplicado, que se refere às variáveis de caracterização, os resultados mostram que os participantes têm idades compreendidas entre os 18 e os 63 anos, sendo maioritariamente jovens adultos. Pertencem maioritariamente (82,18%) ao sexo masculino, 47,03% são casados e 41,10% solteiros. Tendo a maioria, 55,94%, escolaridade igual ou superior ao Ensino Secundário.
Na análise ao tempo de profissão foram considerados apenas os indivíduos profissionais. Destes 42,22% exercem a sua profissão entre 6 e 10 anos e 23,70% entre 11 a 15 anos. Quanto ao horário de trabalho, 77,04% dos profissionais trabalham por turnos e os restantes 22,96% têm um horário fixo.
A existência de doença crónica foi assinalada por 14 indivíduos, sendo as doenças oftálmicas e a Diabetes Mellitus as mais assinaladas.
Ainda no que concerne às variáveis de caracterização da amostra, mas no que se refere ao tipo de situação traumática presenciada verificamos que as lesões graves e a morte de uma pessoa desconhecida foram as situações mais indicadas, com 87,13 e 79,21%, respectivamente. Os acidentes graves foram mencionados por 75,74% dos indivíduos e a morte de amigo/familiar por 69,31%. O incêndio ameaçador foi referido por 67,82%.
As reacções mais evidenciadas após a vivência dessas situações, foram o evitar pensar no que aconteceu e reviver a situação através de flashbacks, com 46,53 e 38,12%, respectivamente. A ansiedade e nervosismo foi referida por 21,87% e 18,81% considerou que alguns aspectos da vida diária desencadeavam o reviver da situação.
Verificou-se que antes da situação potencialmente traumática 66,83%, dormiam mais do que oito horas de sono e após a situação potencialmente traumática a percentagem diminuiu para 45,05%.
Por sua vez, o número de pessoas que dormia menos de oito horas antes da situação potencialmente traumática era de 33,17% tendo aumentado para 54,95% após a situação potencialmente traumática. Em média, o tempo de sono diminuiu 40 minutos após a vivência da situação potencialmente traumática.
A diminuição do tempo de sono verificou-se em ambos os géneros, sendo mais evidente no género feminino, pois notou-se um aumento de referências ao tempo de sono inferior às oito horas e uma diminuição após as oito horas de sono.
Estas alterações no tempo de sono verificaram-se apenas nos bombeiros e voluntários da Cruz Vermelha, nos elementos da EMIR (médicos e enfermeiros) o tempo de sono não se alterou.
A satisfação de sono diminuiu após a experiência potencialmente traumática, pois o nível insatisfatório sofreu um aumento de 3,95 pontos percentuais e o nível pouco satisfatório averbou um aumento de 14,36%. Quanto aos níveis satisfatório e muito satisfatório registaram uma diminuição de 10,39 e 7,92%, respectivamente.
O somatório dos níveis insatisfatório e pouco satisfatório sofreu um aumento de 19,28% nos indivíduos do género masculino, e um aumento de 13,89% no nível pouco satisfatório nos indivíduos do género feminino.
Os bombeiros foram os únicos que referiram o sono insatisfatório, tanto antes como após a situação ocorrer. Entre estes indivíduos houve um aumento de 5,72%, no sono insatisfatório. O nível pouco satisfatório sofreu um aumento de 17,86% nas corporações de bombeiros e um aumento de 8,51% nos voluntários da Cruz Vermelha.
É curioso verificarmos que apesar destes resultados, 51,98% dos indivíduos considera que a pós a situação potencialmente traumática a qualidade de sono não se alterou, 25,25% referiram que o sono se alterou pouco, 15,84% assinalaram uma alteração moderada e 6,93% revelaram que o sono se alterou muito.
A maior parte dos indivíduos do género masculino (53,01%), afirma que o sono não se alterou e 52,78% dos indivíduos do género feminino afirma que o sono sofreu alterações. Desta, 38,89% consideram que o sono se alterou pouco, 8,33% referiram uma alteração moderada e 5,56% consideram que o sono se alterou muito.
No período em que a situação potencialmente traumática ocorreu as principais alterações de sono sentidas foram a dificuldade em adormecer, com 27,23%, o sono “superficial” e os sonhos e pesadelos relativos à situação vivida, com 14,36 e 12,87%, respectivamente. Ambos os géneros, afirmaram que a dificuldade em adormecer e o sono “superficial” eram as principais alterações de sono sentidas.
Actualmente, 28,22% da amostra refere acordar frequentemente durante a noite, 26,73% considera que após acordar sente maior dificuldade em voltar a adormecer e 26,24% afirma sentir sonolência durante o dia. A principal queixa masculina é acordar frequentemente durante a noite e maior dificuldade em voltar a adormecer após acordar. As queixas de sono do género feminino incidem principalmente, na sonolência durante o dia, acordar frequentemente durante a noite e maior dificuldade em adormecer após acordar.
Com a realização deste estudo pudemos ainda constatar que as pessoas manifestavam necessidade de um maior apoio de outros técnicos, nomeadamente expressavam a necessidade de um psicólogo derivado ao tipo de situações com as quais lidavam e os sentimentos que delas despertavam.
Devido ao facto de esta ser uma temática pouco estudada deparamo-nos na realização deste trabalho com algumas dificuldades, nomeadamente no que concerne à revisão de literatura, pois encontrámos poucos estudos que abordassem a presente temática, especialmente estudos realizados em Portugal. Da mesma forma o acesso a este tipo de estudos era muitas vezes restrito. A realização simultânea de diversas actividades curriculares, condicionou também o nosso trabalho pois o tempo para a sua realização era restrito, exigindo grande esforço da nossa parte para o conseguir concretizar.
Consideramos que cumprimos com os objectivos a que nos propusemos, no entanto, existe ainda muito por estudar acerca do sono e o seu impacto na vida das pessoas. Assim, seria pertinente a realização de outros estudos que abordassem temáticas semelhantes como sejam, um estudo sobre o impacto de um sono não restaurador sobre o desempenho diário do indivíduo, outro tema digno de estudo seria quais as alterações de sono sentidas pela população ao nível regional. De igual forma, um estudo sobre os factores que as pessoas identificam como perturbadores do seu sono seria adequado.
Seria igualmente de interesse o estudo dos sentimentos e percepções dos profissionais de socorro, sobre as situações às quais prestam assistência.
Apontamos como principal limitação ao nosso estudo, o facto de não demonstrarmos que a situação traumática vivenciada esteve na origem das alterações de sono encontradas, (embora esse não fosse o objectivo deste estudo). Apenas podermos afirmar, que as mesmas ocorreram após a dita situação.
Ainda assim consideramos que este trabalho tem implicações para a prática de Enfermagem, na medida em que, contribui para o aumento de conhecimentos sobre o sono, e através da detecção precoce de alterações de sono, poderemos actuar preventivamente no alívio destas.
Por outro lado uma maior atenção a indivíduos que desempenham funções de socorro, é uma forma de aproximar a Enfermagem da comunidade e de outras profissões. Proporcionando uma oportunidade para que os enfermeiros possam ajudar estes profissionais, na forma de lidar com os sentimentos subjacentes a determinadas situações.
Por tudo isto, e pela gratificação que pudemos obter na realização deste trabalho, esperamos que a investigação seja estimulada no seio da Enfermagem, pois só assim poderemos prestar cuidados com rigor e excelência.