revolucionarioa

A  terrível história do revolucionário  A

 

 

 

    Em recordação do Adolfo Ayala  e de outros da emigração política portuguesa.

 

    (O texto que se segue não é um texto de  ficção.  É o relato de um sonho verdadeiro, de um sonho verdadeiramente sonhado em Argel em Março de 1965)

 

            O primeiro episódio  pode-se considerar definitivamente perdido.

            No texto que guardo,  rabiscado na Cafetaria, numa manhã em que fiz um esforço de memória para tudo registar,  há páginas com palavras e frases soltas.

 Transcrevo esses elementos,  que hoje nem sei como surgiram,  e outras recordações, nem todas relacionadas com  A , porque guardo a sensação de que, de algum modo, estarão relacionadas com esse primeiro episódio e gostava de as não perder.  Talvez  alguém um dia  possa tudo interpretar.

 

            Do segundo episódio há um fragmento  dificilmente reconstruido, importante porque revelador do tipo de relacionamento de  A  com os Exércitos.  Junto uma citação de um livro  -  naturalmente nunca escrito  -  em que se diz  ter  A , na prática  (nunca foi um teórico), ultrapassado  de   certo modo  os ensinamentos de Mao.  Uma nota à margem  indica que este segundo episódio se terá passado em 1938, o que para  A,  pode estar certo  -  já nessa altura tinha uma intensa actividade  -  mas, para mim, obriga a um deslocamento no tempo.

 

            O terceiro episódio  creio estar quase completo.  As imagens ainda hoje as guardo.  O hall  é o do grande pavilhão de  El Harrach  onde se realizavam exposições de máquinas agricolas.  O telhado,  embora com um ângulo diferente,  é o da Embaixada do Brasil  que se via da janela do último andar da Pide virada para o rio.

 

                                   1º episódio  (vestígios e recordações)

 

                           Cemitério                        sanduiches            

                           Bigode                      realidade

                           Extrema prudência.

                           Porque somos revolucionários.        

                            ....  o sorriso de uma criança que pertence à classe OPERÁRIA.

 

 

            A  não é um liberal.  Desprezo pelo humanismo da ineficiência .

            Brasil ...   sua negra inteiramente dedicada à revolução trabalhando com eficácia. 

Recife: … se  A  estivesse presente o 4º Exército teria tido muito maiores dificuldades.

            A  disse que a polícia inglesa é a pior que há .  (A prudência face à polícia não significa que não cometa erros).

            Actividades revolucionárias num apartamento em Moscovo, ...  documentos   enterrados no Sahara, ... outros lançados ao Sena numa noite de terrorismo.

 

            Reseau contra os advogados da Baixa.           

            A  aceitará a aliança com a burguesia.  Futuros ministros terão dificuldades tremendas com  A.

            Um automovel com  A  lá dentro é já uma máquina de guerra.

 A  foi visto num taxi na  banlieu Norte. 

 Algo de tremendo se prepara.

            Tinha jeito para comprar armas.

 

            A última noite que  A  esteve no quarto de uma mulher dormiu dois dias seguidos.  Vinha duma revolução.  Estava escondido, naturalmente.

            O sonho  ...  acho que A não sonha.

            A revolução continuará sempre.

 

                        2º  episódio  (fragmento)

 

            “Não era só no meio das populações mas também no meio dos exércitos que  A  se conseguia infiltrar”.  (Comparar com os ensinamentos de Mao sobre os peixes na água). 

A  estava praticamente comandando os soldados que procuravam A. Vasculhavam a cave toda  e foi  nessa altura que  reparei que  A  apareceu com um capacete alemão na cabeça.  Teve mesmo um excesso de confiança  (que nos ia sendo fatal).  Veio falar comigo para dizer que as coisas iam bem.  Foi quando apareceram mais três soldados alemães. Aí o caso era mais sério e  A  tinha evidentemente de se  esconder.  Fê-lo, talvez com uma certa  precipitação,  atrás de uma coluna de cimento, mas foi visto por um dos soldados portugueses que também estavam presentes. Foi um momento em que tudo se podia perder.  Demos-lhe uma mocada, dominamo-lo  (creio que ajudei  A )    e deitamo-lo inconsciente para uma pequeno patamar por detrás da janela.  Aí, um daqueles acidentes que podem custar a vida de um revolucionário, aconteceu.  O capacete caiu com grande estrondo onde havia mais soldados alemães.  A  estava evidentemente descoberto.  Mas foi ainda a sua iniciativa e presença de espírito que o salvou.  Os alemães gritaram e procuraram  A  subindo pelas escadas do lado direito.  A saltou pelo lado esquerdo e apareceu no meio dos soldados portugueses  no momento em que estes perguntavam:

            “Onde é que ele está?”

            A  gritou:

            “Fugiu por ali.”      

            E desatou a correr com os soldados portugueses atrás, na perseguição de  A.

 

             Para se libertar da incómodo posição de comandante dos soldados que o perseguiam  parou em determinado momento fingindo apertar um sapato.  Quando os outros passaram afastou-se para o lado e disse:

            “Desta já me safei.”

            E readquiriu de imediato a segurança que sentia numa cidade quando não era perseguido de perto pela polícia. ( Este episódio, revelador da personalidade de  A , diz, muito sobre a sua maneira de actuar na prática , o que é fundamental num revolucionário) .

 

Fragmentos mais tarde encontrados:

 

            Os tanques entravam na cidade.  A  disse: “Vou dormir”. Já sabia como actuar no dia seguinte.

            O chefe da polícia mandou-o buscar ao calaboiço e negociaram de igual para igual.  As algemas atrás das costas tinham-no, de facto, magoado muito.

            Não se atrapalhava com as chamadas telefónicas do Paquistão.

 

                        3º  episódio (que se julga quase completo)

 

            Houve acontecimentos tremendos, talvez a guerra.  Ele andou lá metido. Estamos certos que ele se safou.

            Há um grande hall  -  género Génie Rural.  Nós chegamos,   somos um grupo. A presença dos outros é bastante apagada. Viemos procurar  A. Não temos ainda nenhuma notícia. Estamos certos que o  encontraremos.

            No chão objectos indefinidos.  Uma certa impressão de coisas a serem montadas. Peças velhas a serem  remontadas.  Um ambiente de arrumação depois de acontecimentos importantes.  Actividade.  Vida que recomeça, ainda pouco intensa. Para os figurantes o passado passou.  Agem no presente.  Preparam o futuro.

 

            Nós, meio turistas, estamos lá naturalmente.  Deslocamo-nos com liberdade.  Ninguém nos incomoda.  Também não perturbamos e não temos influência.

            Numa parede há grandes quadros.  Talvez cartas suspensas, com rolos de madeira em cima e em baixo.  Representam os resultados “estatísticos” dos “terriveis acontecimentos” , talvez da guerra.

 

            Nas cartas (que parecem de África)  estão, em cada uma,  diferentes paises postos em realce.  Sobre cada país  (posto em realce)  há números e talvez algumas palavras.  Representam, talvez, os mortos, os fuzilados,  dos terriveis acontecimentos por que  A  passou.   Não temos notícias, mas os terríveis números não nos fazem duvidar de que encontraremos  A .

 

            Procuramos  A  entre as gentes, entre as coisas  (talvez máquinas). Deslocamo-nos,  subimos escadas.  Chegamos aos andares mais altos.  Já demos volta a quase todo o edifício. Chegamos a uma água furtada e espreitamos.  Vemos um bocado do telhado  -  um bocado da superfície dos telhados.  Vemos, de repente, três crianças  ( 8 anos e menos). Deslocam-se pelo telhado por um caminho meio desenfiado das vistas da janela.

            Vemos que estão habituadas a esse caminho.

            As crianças pertencem a uma população diferente da gente do hall em baixo .  Param quando nos vem.  Procuravam esconder-se seguindo um caminho encoberto. Não têm mêdo.  Ficam paradas um bocado, olham-nos sem pedir esmola  e, depois,  seguem o caminho sem se importarem.   

            Compreendemos que  pertencem a uma população de refugiados que esta escondida.  Notamos que o caminho por elas seguido foi inteligentemente escolhido.  É o primeiro indício de que vamos encontrar A .

 

            Saimos pela água furtada e, seguindo o caminho revelado pelas crianças, entramos por outra, que de resto é perto.  Entramos por um sotão com um corredor com quartos.  Há uma população.  Uma população que esta no passado  (cujo presente esta ligado ao passado).  Esta população sofreu os acontecimentos,  mas de uma forma não muito dramática  -  ou então já recuperou.  É  uma  população  que vive  (sobrevive)  na base do aproveitamento de restos . Talvez as crianças tivessem ido buscar meios de sobrevivência.

            Seguimos pelo corredor e entramos num quarto do lado esquerdo.  Sentado em cima de uma cama  -  a única cama do quarto  -  está  A .  É  o  centro de actividade.  Tem tudo organizado à sua volta.

 

            Há anos que não nos encontravamos.  Falamos de coisas várias, dos detalhes em volta, dos acontecimentos  dos últimos anos . A certa altura disse-me:

            “A propósito.  Da última vez fui eu que garanti ao Partido que tu, apesar de não seres do Partido, és um tipo porreiro.”  ( O próprio  A  já não pertence ao Partido, mas o Partido não pode deixar de ter em conta a sua opinião, apesar dos terríveis combates que entre ambos se travaram).

            A  movimenta toda a população à sua volta.

            De cima da sua cama,  A  dirige a Revolução .