molusco

O Molusco de Einstein

 (Contributo para a nossa sobrevivência entre micróbios e robots)

 

            À  chegada, o prestigiado Presidente da ACUM  (Academia das Ciências Universal Microbiana) trocou umas palavras de circunstância com o colega (e candidato à sua sucessão), que tratara dos detalhes e o arrastara para aquele encontro.

            “ Sabe, eu não dou muita importância a estas iniciativas do ministro Ogag, mas sempre é preferivel falar  para os jovens do que para os políticos”.

            “Sim, os jovens de hoje são os políticos de amanhã, são eles o nosso futuro”.

            “Pois,  rosnou para dentro o Presidente, assim vais longe. No mínimo, a presidente da ACUM, e talvez  até….”

            Vieram chama-los.  Ao entrar na sala milhares de jovens micróbios levantaram-se e aplaudiram fazendo vibrar as membranazinhas.  Na realidade, não eram micróbios verdadeiros, mas robots de micróbios. A sessão era transmitida por video-conferência para milhões de outras salas onde biliões de jovens micróbios, estes verdadeiros, a seguiam em directo com a possibilidade de intervirem com perguntas e curtas intervenções.

Um elaborado  programa e um complicado sistema de ligações permitiam escolher as perguntas dos micróbios reais e fazer sínteses das suas intervenções que depois eram apresentadas pelos micróbios robots diante dos conferêncistas.

Embora o sistema ainda não estivesse  inteiramente apurado, a Administração já usava amplamente  o conceito de cidadão-robot.  O que se fazia, ali,  era, exactamente,  uma  aplicação num domínio, o das conferências científicas, em que revelara não estar ainda inteiramente afinado. 

Em sessões  anteriores, os programas elaborados a partir de  elementos estatísticos tinham eliminado as perguntas inteligentes e originais com o argumento de serem  raras. As  intervenções dos jovens micróbios-robots  tinham  a tal ponto sido desinteressantes e  banais  que o público  tinha ficado com uma péssima impressão da juventude.   

Tinha havido uma reacção e, em parte  devido a ela, e com algum apoio da  Academia, tinham sido feitos programas alternativos, muito controversos e desde logo classificados  de “elitistas”,  em que se procuravam seleccionar as “perguntas inteligentes” e fazer sínteses interessantes. 

Naquela reunião ia ser testado um destes programas. Os conferencistas, carregando num botão com a indicação “pi”, podiam fazer com que os robots, em vez das perguntas “médias”, fizessem “perguntas inteligentes”.

O acompanhante do Presidente fez as apresentações . O Presidente, algo distraido, não reteve nada do que ele disse e entreteve-se a contar as vezes em que  fez uso de efeitos especiais (conhecidos de  todos os oradores ) para obter os aplausos dos robots. Tão entretido estava nesta contagem, que foi apanhado de surpresa e teve de entrar de repente no assunto, quando lhe deram a palavra:

“Meus senhores (os jovens gostam sempre de ser tratados por senhores). Venho fazer-vos  uma comunicação da maior importância. Como sabeis, a nossa comunidade científica, além dos seus estudos originais, tem dedicado uma boa parte do seu tempo a decifrar o valiosíssimo espólio científico da extinta espécie humana que, pode-se dizer, se auto-liquidou com aquela questão da globalização que diminuiu a bio-diversidade e a deixou exposta ao nosso mortífero ataque.  Esta espécie (que durou menos  que os dinossauros) era, no entanto, dotada de um notavel  hardware biológico.  Por estranho que pareça, tendo conseguido sobreviver com técnicas rudimentares durante milénios, veio a desaparecer quase instantaneamente (em termos geológicos)  no momento exacto em que a sua Ciência tinha  um desenvolvimento  explosivo.

Num dos últimos  séculos da  sua existência, houve um humano, um cientista,  chamado Albert Einstein, que se destacou e foi justamente homenageado pelos seus semelhantes.  Os nossos matemáticos trabalham hoje intensamente para decifrar a obra de Albert Einstein ( a que se seguiram outras ainda mais complexas) e não a terão ainda inteiramente compreendido,  mas este grande autor teve a  simpática  ideia de escrever  obras de divulgação e  é com base  numa delas, que eu vos trago, hoje, aqui,   uma informação importantíssima para nós, micróbios:

“Nós vivemos no interior de um  imenso molusco, finito, mas sem limites”.

Sentiu-se na sala um ambiente de satisfação. Embora a questão dos limites não fosse muito clara, a ideia de viverem no interior de um molusco era manifestamente agradavel  para os jovens micróbios.

Aproveitando o bom ambiente, o Presidente  carregou no botão  “pi”e  disse: “Podem agora fazer perguntas”.

 O primeiro a falar foi um pequeno robot com uma expressão inteligente: “Como é a pele dele?”. “De quem?”. “Do molusco”. “ Não tem”. “Então como é que está separado do exterior?”.“Não há exterior”. “Então,  o molusco está dentro de quê?”. “Está dentro de ele próprio”. Houve um silêncio e, depois, o pequeno robot disse: “Não entendo”. Outras vozes se foram em seguida ouvindo: “Eu também não”. “Eu também não”.

“Vou tentar explicar”, disse o Presidente.

  “Vocês têm os 6 pontos cardiais que aprenderam na escola: Norte, Sul, Este,Oeste, para Cima e para Baixo. Os humanos não viviam espalhados pelo espaço em blocos de gelatina como nós, mas estavam praticamente confinados à superfície do planeta Terra. Por isso só usavam 4 pontos cardiais. Nos tempos em que só sabiam navegar à vela, um humano, um espanhol chamado Fernão de Magalhães  ( a cultura histórica  do Presidente tinha algumas falhas) saiu com uns barcos do porto de Sevilha   navegou sempre para Oeste e regressou vindo do Este.  Se tivesse navegado para Norte, teria regressado vindo do Sul. No nosso molusco a situação é a mesma. Se andarmos sempre numa direcção regressamos vindos do lado oposto”.    

Um robot com ar de lider estudantil levantou-se no meio da sala  e  disse: “Quer o senhor dizer que o nosso espaço não é euclideano?”.

“Exactamente”, disse o Presidente.

“Então, se o nosso espaço não é euclideano, porque é que nos obrigam  no 17º ano de escolaridade a fazer um exame de acesso ao Ensino Superior da cadeira de Geometria Descritiva euclideana a 4 dimensões?  Esta cadeira deve ser substituida por uma cadeira de Topologia.”

“Não”, disseram imediatamente outros robots. “ A Geometria Descritiva serve para elevar as nossas médias para entrar na Universidade”. 

A polémica estudantil estalou na sala e o Presidente teve a maior dificuldade em em dar a palavra a dois robots que já a tinham pedido.

O primeiro foi um robot com um ar muito sério que perguntou:

“ Já resolveram o problema do “pavé” ?  “Que “pavé”?”. “Eu não entendo um espaço finito que não possa ser visto de fora  se não me indicarem um volume bem definido, o “pavê”, que repetido em N exemplares encostados uns aos outros possa preencher esse espaço”.O Presidente reconheceu que os micróbios matemáticos ainda não tinham resolvido o problema, mas disse que andavam a preocura da solução nos arquivos dos humanos.

O último interveniente foi um pequenino robot, que estava na última fila e começou a falar muito lentamente:

“Se eu tiver um irmão gémeo, ele ficar parado e eu partir numa dessas viagens para um lado com regresso vindo do outro, como é que o senhor me  garante que não nos vamos  encontrar,  ele a mim e eu a ele virados do avesso?”  “Virados do avesso?”. “Sim, com a mão esquerda tocada pela direita”.   

O Presidente sentiu-se ele próprio virado do avesso e compreendeu   que já não era capaz  de dar mais nenhuma explicação.  A polémica estudantil reacendera-se  e todos queriam falar. O indicador do nivel de entropia discretamente encrustado no púlpito do orador atingira   níveis altíssimos, sinal de que de um momento para o outro a reunião ficaria fora de controle.  Decidiu, então, dirigiu-se à sala e dizer:

“Vou pedir aqui ao meu colega mais novo para vos explicar todas estas questões.”

O acompanhante não se fez rogado. Dirigiu-se ao púlpito, desligou imediatamente o botão das “perguntas inteligentes”, e perguntou:

“Vocês querem que eu vos explique tudo isto de um modo muito simples?”.

 “Sim, sim”, gritaram os robots de um modo quase unânime.

“Muito bem. Vocês sabem o que é o “big bang” ?” .

 “Sim, já aprendemos nas cadeiras de Física. Até já fizemos exames sobre isso.”

“Óptimo, basta relacionar o que aprenderam em Física com o que ouviram agora:  o “big bang” foi o instante em que nasceu o molusco em que agora vivemos”.

“Fica tudo claro?” . “Sim, sim”. 

“Há mais alguma dúvida?” “Não, não”.

“Talqualmente como os humanos na última fase”, pensou o Presidente, mas guardou o comentário para si e, como não havia mais perguntas, encerrou a sessão.

No dia seguinte a Imprensa sublinhou a excepcional clareza da intervenção do acompanhante, que quase todos os jornais apresentaram como futuro Presidente da ACUM.        (Dezembro de 1999)     A.B.