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Henrique Galvão

 

 

Doi-me que em três semanas de liberdade não tenha aparecido escrito na Imprensa Portuguesa o nome de Henrique Galvão.

No entanto, deste Portugal libertado, para o mundo, por um momento, foi ele o libertador.

O “Santa Maria”, parcela de Portugal Livre a sulcar os mares, foi pura epopeia. Os portugueses de Portugal, com a informação controlada pela Censura, não o terão sentido. Mas para os portugueses espalhados pelo mundo, que também são Portugal, o momento foi de pura libertação.

Galvão desencadeou um processo.

Pela primeira vez  Portugal saiu das minúsculas notícias dos jornais para, durante 10 dias, ser a notícia de todos os jornais, de todas as rádios, de todas as televisões.

Em oposição ao Portugal de Salazar, passou a haver um Portugal Livre, que pela vez se afirmou e fez ouvir como o verdadeiro Portugal.

Este Portugal Livre nunca mais morreu. Os partidos socialista, os partidos comunistas, os partidos democratas, os jornalistas,  homens espalhados por todo o mundo, passaram a considerar o Portugal Livre uma realidade   e a acreditar que ele podia ser o Portugal do futuro.

Se anos depois Mário Soares tem tanta facilidade a contactar com os partidos socialistas em boa parte o deve a Galvão.  Desde o “Santa Maria” que os partidos socialistas andavam à procura de socialistas portugueses.

 

Coincidindo com os últimos dias da aventura do “Santa Maria”, em Luanda, os militantes do MPLA atacam as prisões para tentar libertar os presos políticos.

A notícia vem para o mundo porque na cidade estão inumeros jornalistas que ali se tinham concentrado para esperar a eventual chegada do navio.

Quando é preciso descobrir informações e documentação sobre o colonialismo em Angola, praticamente, o que se encontra é o relatório de Galvão. As informações mais válidas sobre as condições a que o colonialismo português sujeitava os povos negros vêm, assim, dum relatório subscrito pelo próprio comandante do navio “Santa Liberdade”, que por isso mesmo sofrera anos de prisão. 

E por isso, para o mundo, desde o primeiro dia, a luta pela independência dos povos das colónias foi apresentada como uma luta contra o Portugal de Salazar, mas não contra o Portugal Livre.

Galvão pode ainda vir a fazer declarações consideradas colonialistas, mas mais do que qualquer outro, pelos factos e pela acção, contribuiu para que fosse compreendida a ideia de que a libertação de Portugal e a libertação das colónias seria simultânea.

É esta ideia que permite, anos mais tarde, aos portugueses instalarem-se na Argélia libertada.

Galvão, o evadido do Hospital de Santa Maria, o comandante do navio livre, o organizador do primeiro assalto aéreo, foi o primeiro a fazer da acção um meio de combate e propaganda. Foi bem um precursor do LUAR , das Brigadas Revolucionárias e da ARA.

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Os portugueses do exílio, os que durante tantos anos foram o Portugal dos paises em que viveram, todos regressaram.

Os vivos e os mortos. Os vivos, à chegada, disseram as palavras que todo o país deles esperava.  Os mortos são lembrados.  E regressaram também na recordação dos companheiros. Com eles podemos prolongar nesta Lisboa libertada as longas conversas do exílio.  Podemos imagina-los à chegada. Sabemos o que eles diriam.

Só Henrique Galvão não voltou.

Vivo quem o esperaria? Lisboa? O Porto? Os escritores portugueses? Os militares? As multidões?

Que diria à chegada? O que iria fazer? Seria ministro? Ninguém é capaz de o imaginar.

Não sei se tinha companheiros que o recordem. Nunca troquei com ele uma carta. Mas hoje, ao escrever esta crónica,  senti que para respirar um país novo queria lembrar Henrique Galvão.  A ele fiquei a dever dias de alegria e de esperança.

Chamou “Santa Liberdade” ao navio que comandou.  Que Liberdade era essa? Talvez fosse só a palavra, uma Liberdade pura, sem qualquer espécie de confronto com a realidade. Uma Liberdade para uso do Capitão de uma lenda.  Talvez por isso não tenha voltado.

 

            (Artigo  publicado no jornal “República”,  nas primeiras semanas depois do 25 de Abril, numa série que teve o Título: “Respirar um país novo”)