teseberkeley3-palavras

III - Palavras

A função primitiva das relações entre idéias de diferentes modalidades sensíveis é a

antecipação do futuro. O tempo é a sucessão das idéias. Fazer previsão é tomar consciência

de que certas idéias se seguirão se forem executadas determinadas ações. Uma idéia da visão

permite a antecipação de uma idéia do tato que poderá ser experimentada se forem realizados

certos movimentos corporais. As palavras são, assim como as idéias da visão, signos: são

significantes que apontam para além de si próprias.

A conclusão geral da Nova Teoria da Visão era: "os objetos próprios da visão constituem

uma linguagem universal (do Autor) da natureza. (53) Berkeley não diz "a visão é como uma

linguagem" e sim "a visão é uma linguagem". Berkeley não está simplesmente fazendo uma

analogia, expressando-se metaforicamente, e sim utilizando o termo "linguagem" em seu

sentido literal. (54) Com efeito, Berkeley diz que o que constitui a linguagem é "um grande

número de signos arbitrários, variados e adequados". (55) As relações significantes entre

idéias de diferentes modalidades sensíveis é inegavelmente um destes casos, assim como

também as relações significantes entre palavras e idéias. (56) À primeira vista estas seriam

as duas espécies mais gerais de signos, porém há um elemento complicador: as palavras, seja

escritas ou faladas, (ou mesmo tocadas) são, enquanto sinais significantes, idéias. No

entanto, estas significam de forma um pouco diferente daquela própria às idéias dos sentidos.

(57) Elas significam tanto idéias particulares imediatas quanto idéias mediatas que dependem

de relações significantes entre idéias que lhe é anterior. As palavras constituiriam assim algo

como uma espécie dentro do gênero "idéias". (58) Sua maneira própria de significar e sua

relação com o sistema maior que a subsume constituem os temas privilegiados da Introdução

aos Principles. (59)

Uma polêmica acirrada aconteceu recentemente a propósito da relação entre as duas

Introduções. A primeira, (Introdução Manuscrita), foi abandonada por Berkeley em favor da

segunda (Introdução Publicada). Esta é a Introdução que conhecemos como fazendo parte da

primeira parte do Principles. Para melhor entender a discussão, é preciso situá-la no interior

do problema mais amplo - e não menos polêmico - da evolução da obra de Berkeley como

um todo. Acreditamos que a forma como as duas introduções se relacionam pode servir de

amostra representativa da dinâmica que rege esta evolução mais geral.

Encontramos as mais variadas teses a este respeito, já que se trata de um dos temas clássicos

e que mais geraram discordâncias entre os comentadores da obra de Berkeley. (60)

Poderíamos reunir as várias posições em dois grandes grupos. No primeiro estão os que

acreditam que há uma continuidade em toda a obra, que Berkeley nunca retificou nenhuma

de suas teses fundamentais. No segundo, os que defendem a tese segundo a qual Berkeley

introduziu, ao longo de sua vida, mudanças importantes em sua filosofia. E aqui encontramos

uma grande variedade de opiniões. Inicialmente o debate girava em torno do estatuto de

Siris: como situar esta última obra em relação às anteriores? Ruptura total com os trabalhos

de juventude e adoção de um neo-platonismo original? Aproximação progressiva de

Malebranche? Filosofia da natureza segundo os mesmos princípios das obras de juventude?

Depois, levantou-se a questão da introdução do termo "noção" na segunda edição do

Principles e de outras alterações que Berkeley introduz nas reedições das primeiras obras:

Berkeley estaria reconhecendo a existência de uma lacuna a ser preenchida nas primeiras

obras? Mais recentemente, questões ligadas à Introdução Manuscrita ganharam crescente

importância. Os editores da última edição das obras completas de Berkeley em língua inglesa

(T. E. Jessop e A. A. Luce) são favoráveis à tese de que as mudanças que Berkeley introduz

na obra não são de doutrina mas apenas de linguagem. (61) Belfrage, por sua vez, dedica-se

ao estudo da Introdução Manuscrita e argumenta que este texto, mais do que um simples

rascunho, é a formulação de uma teoria da significação com características próprias e

diferentes (opostas até, em alguns aspectos) da teoria da significação exposta na Introdução

Publicada. Geneviève Brikmann leva esta tese tão a sério que dela faz a peça chave de sua

interpretação da filosofia de Berkeley. Brickman concorda com as teses de Belfrage e vê no

abandono da primeira versão da Introdução a substituição de uma tese mais radical (na qual a

função emocional possui um lugar prepoderante) por uma tese mais adequada aos seus

objetivos apologéticos de Berkeley (onde uma função cognitiva ganha maior importância).

Mais ainda, acredita ela que as alterações introduzidas por Berkeley nas reedições de suas

obras, notadamente a introdução do termo "noção", representa uma tentativa de retorno

àquela doutrina inicial para fazer face às críticas das quais o imaterialismo foi alvo. (62)

Sintetizaremos a seguir a tese de Bertil Belfrage apresentada em sua "Edição Diplomática" da

Introdução Manuscrita de 1987. Para Belfrage a Introdução Manuscrita, é uma primeira

versão da Introdução e cronologicamente anterior à Nova Teoria da Visão. As correções que

nela encontramos teriam por objetivo uma melhor adequação às teses desta última. As

passagens mais extensas que estão presentes na Introdução Publicada e ausentes da

Introdução Manuscrita, em especial as que tratam da demonstração, destinar-se-iam

igualmente a estabelecer um elo entre a Nova Teoria da Visão e os Principles. Mas a teoria

da significação da Introdução Manuscrita ainda não seria, segundo Belfrage, a primeira

teoria da significação de Berkeley. Ela corresponderia a uma fase inicial mas já intermediária

à qual pertenceria igualmente o texto Of Infinites e a parte dos Philosophical Commentaires

(ou Notebooks) compreendida pelas notas 696 à 750. Em suma, Belfrage vê três fases

sucessivas no desenvolvimento da teoria da significação de Berkeley:

a)Na primeira, que encontraríamos em Philosophical Commentaries de 01 à 693 e no texto

Of Infinites, teríamos uma teoria da significação caracterizada ainda pela tese lockeana

segundo a qual cada palavra significativa deve estar unida a uma idéia. Ou seja, neste

momento a condição absolutamente necessária à significação das palavra seria que elas

nomeassem, cada uma delas, uma idéia.

b) Na segunda, representada pelo First Sermon, Philosophical Commentaries 696-750 e

Introdução Manuscrita, teríamos uma concepção da significação que enfatiza uma distinção

entre as formas de significação das idéias e das palavras: estas poderiam desempenhar a

função de termo geral e assim significar mais de uma idéia pelo fato de significarem

convencionalmente. Quanto às idéias, estas não poderiam ser gerais pelo fato de manterem

uma relação de semelhança com as coisas das quais são imagens. Uma palavra só poderia

significar uma idéia particular a cada vez e as outras apenas por meio desta. Berkeley

admitiria, portanto, os termos gerais mas não a possibilidade de existência de idéias gerais.

(63) Por outro lado, diz Belfrage, Berkeley distingue uma nova forma de significação: para

significar cognitivamente, uma palavra deve pelo menos poder ser relacionada a uma idéia

determinada. Esta exigência muito forte traria como consequência uma redução muito

drástica do campo da significação, o que teria levado Berkeley a admitir que uma palavra

pode significar sem referir-se absolutamente a idéias, tese esta que estaria na origem da

teoria emocional do significado. (64)

c)Finalmente, em terceiro lugar, encontraríamos nos Philosophical Commentaries de 750 até

o fim, o esboço da teoria da significação que Berkeley apresentará para publicação, seja na

Nova Teoria da Visão, nos Principles (Introdução Publicada) ou nos Três Diálogos. A

diferença essencial é que agora Berkeley faria uma distinção entre idéias gerais e idéias

abstratas e admitiria que os termos gerais ganham sentido ao nomear idéias gerais, sem que

isto implique a necessidade de existirem idéias abstratas. (65) Como já mencionamos acima,

esta tese afirma que a idéia particular se torna geral de maneira análoga à forma pela qual a

figura particular utilizada na demonstração geométrica ganha caráter geral: o que é dela

demonstrado vale para todas as figuras daquele tipo, quaisquer que sejam suas características

particulares.

O que dizer desta engenhosa interpretação? É verdade que na Introdução Manuscrita a ênfase

dada à demonstração como explicação do funcionamento dos termos gerais é bem menor do

que a que é dada na Introdução Publicada, mas o mecanismo da demonstração é idêntico em

ambos os casos. A real questão com a qual nos deparamos aqui é a de saber se as alterações

de terminologia introduzidas na Introdução Publicada refletem uma mudança de doutrina ou

uma mera mudança de estratégia argumentativa. Parece que em cada uma das Introduções

Berkeley sustenta uma diferente opinião a respeito das palavras. Na primeira, a ênfase é em

seu papel negativo como fonte de erro: se não houvesse a linguagem das palavras não seria

preciso postular as idéias gerais/abstratas para dar conta da significação dos termos gerais.

As palavras são instrumentos para comunicar e recordar idéias. Uma vez cumprida sua

função, poderíamos descartá-las. As palavras não têm o poder de proporcionar a apreensão

de uma idéia que não possa ser apreendida sem elas. Na Introdução Publicada a

desconfiança em relação às palavras parece ser menos radical: a demonstração geométrica

com figuras e a demonstração com palavras que traduzem estas relações são de mesma

natureza. O termo geral passa a ser importante não apenas pela sua função de comunicação

mas também pela função de ampliação do conhecimento. Na Introdução Manuscrita o fato

de existirem termos gerais não implica a existência de idéias gerais. Porém, como já vimos,

"idéias gerais" são, neste momento, sinônimos de "idéias abstratas". Na Introdução Publicada

Berkeley admite que idéias gerais são uma coisa e idéias abstratas outra: as idéias

agora ditas "gerais" são na verdade as mesmas que Berkeley admitia na Introdução

Manuscrita como sendo necessárias para a demonstração, ou seja, como aquelas que

cumprem uma função de generalidade significando ao mesmo tempo várias outras. Com esta

distinção entre função de generalização e função de abstração Berkeley pode admitir a

viabilidade do uso da expressão "termo geral" e assim tirar proveito de todas as vantagens

que a utilização de uma terminologia já conhecida traz para seus objetivos. (66) Ou seja, no

momento em que os dois textos parecem se chocar mais frontalmente - Berkeley diz na

Introdução Manuscrita que não há idéias gerais e depois diz na Introdução Publicada que há

idéias gerais, ainda que estas não sejam idéias abstratas - estamos em face de uma mudança

mais de terminologia e ênfase do que de uma mudança radical de doutrina. (67)

Em cartas a Johnson e Percival, Berkeley aconselha a leitura de suas obras na ordem

cronológica em que foram publicadas e que a utilidade da Nova Teoria da Visão seria

provada pelos Principles. (68) Parece claro, portanto, que Berkeley confere uma razoável

importância à sequência cronológica e temática de seus livros. O texto de Berkeley não é

more geométrico, ele é mesmo anti-geométrico e portanto a análise da estrutura interna de

um único texto não parece ser a melhor estratégia para a compreensão de sua filosofia. (69)

Por outro lado, tentar identificar uma "sequência de teorias", cada uma delas com sua

coerência interna, ao longo de sua vida, nos parece uma tentativa de introduzir no tempo da

evolução do pensamento de Berkeley uma descontinuidade que é contrária ao próprio espírito

de sua obra. Preferimos pensar que esta se desenvolve contínua e dinamicamente mas nem

por isso menos cumulativamente. Berkeley muitas vezes revisita sua própria obra, mas com a

intenção menos de renegá-la ou retificá-la do que de alargar conceitos que, nascidos em

contexto específico e com objetivos determinados, se tornam às vezes muito estreitos em

relação a um pensamento que se enriquece e se expande constantemente em todas as

direções. Um novo conceito ou a simples modificação de ênfase de uma tese exige um

remanejamento de sentido em vários lugares, sem que isto chegue a alterar a doutrina em

seus aspectos mais gerais. Um ótimo exemplo desta dinâmica é o pequeno texto "Teoria da

Visão Vindicada e Explicada", onde as teses da Nova Teoria da Visão são revisitadas à luz

do que foi desenvolvido no Principles (com sua Introdução), ou o sétimo diálogo do

Alciphron, onde a idéia de linguagem como sistema de signos é consideravelmente

enriquecida mas nem por isso modificada em seus aspectos mais essenciais.

O que Berkeley faz, já na Nova Teoria da Visão e de forma mais explícita na Introdução ao

Principles, é a substituição do problema metafísico da relação entre sujeito ("pensamento" ou

"representação") e "mundo externo" pelo problema da relação entre dois sistemas de signos.

A explicação desta relação não se parecerá em nada com aquelas oferecidas pelas

epistemologias tradicionais, com sua divisão das coisas em classes, com a relação de

predicação reproduzindo na linguagem relações de substância e atributo presentes na

"realidade". Com efeito, os grandes problemas do dualismo são o conceito de representação

(como uma idéia pode ser cópia de uma coisa?) e o problema da correspondência entre a

linguagem e a realidade por ela significada (como palavras relacionadas em uma proposição

podem "reproduzir" as relações entre as coisas?). O que está em questão é, portanto, o

problema da relação entre esferas hipoteticamente heterogêneas nas quais a realidade foi

dividida: as coisas e as representações, as sensações e o pensamento, etc. Berkeley

desmitifica o sentido aparentemente necessário destas distinções e assim coloca a questão em

termos inteiramente novos. A análise crítica dos processos significantes revela como

paradigma da heterogeneidade aquela existente entre as diferentes espécies de idéias. Se é da

relação entre elas que resulta a imagem de um mundo único e coerente, então esta é que deve

ser a questão mais importante a merecer a atenção do filósofo. Com isso, o problema deixa

de ser colocada em termos de representação e de predicação e sim em termos de

significação e de explicação.

A Introdução aos Principles é composta de 25 seções que poderiam ser assim agrupadas: nas

seções de 01 a 05 Berkeley apresenta como objetivo geral da obra a identificação das causas

do ceticismo. Nas seções de 06 a 10 expõe o que considera ser esta causa: a crença na

necessidade das idéias abstratas. Em seguida mostra qual é o processo pelo qual elas são

formadas e afirma que a idéia abstrata é impossível porque inconcebível e inconcebível

porque impossível: ela não possui qualquer determinação e portanto é um sujeito sem

predicados, uma substância sem qualquer atributo. Nas seções de 11 a 14 Berkeley refuta as

teses que afirmam que as idéias abstratas são necessárias à comunicação, que sem elas os

termos gerais não podem ser significantes e que é o uso de termos gerais que distingue o

homem dos animais. De 15 a 16 responde à afirmação de que as idéias abstratas são

necessárias para a demonstração e portanto para a ampliação do conhecimento. Na seção 17,

Berkeley afirma que a causa do "inextrincável labirinto de erros e disputas" que reinou na

filosofia, antiga e moderna, é a crença nesta necessidade. Nas seções 18 e 20 argumenta que

a origem deste falso princípio está na crença de que cada palavra significante deve nomear

uma única e específica idéia e na crença de que o único fim da linguagem é a comunicação

de idéias, crenças estas que têm sua origem nos próprios mecanismos naturais que tornam

possível a linguagem. As duas teses que exprimem estas crenças são em seguida refutadas.

Finalmente, das seções 21 a 25 Berkeley exorta o leitor a evitar as armadilhas da linguagem

desviando a atenção das palavras e dirigindo-a para as próprias idéias que elas significam.

*

Berkeley começa a Introdução comparando o filósofo com o homem comum. A maioria das

pessoas, que vivem "governed by the dictates os nature", não duvidam da evidência dos

sentidos, não se exasperam com as questões que a filosofia levanta, não se deixam perturbar

com as dúvidas que levam ao ceticismo. O filósofo, pelo contrário, quanto mais avança no

caminho da razão, mais motivos encontra para duvidar. Ao buscar apreender a natureza

íntima das coisas, toma consciência de que os sentidos o enganam. Ao tentar corrigir estes

erros pela razão, se vê enredado em tantos paradoxos e becos sem saída que acaba sua busca

voltando ao ponto de partida. Porém, uma vez comido do fruto da árvore da ciência, a

tranquilidade original dificilmente poderá ser reencontrada. E o filósofo resigna-se ao

ceticismo: continua reconhecendo a existência dos problemas e ao mesmo tempo perde a

confiança em seus próprios esforços e meios para resolvê-los. Este pobre desesperançado

passa a crer que as coisas são por demais obscuras e que nossas faculdades não são

adequadas para compreendê-las: a mente humana é finita e os objetos do conhecimento são

em número infinito e infinitamente complexos; o finito não pode apreender o infinito.

Porém, diz Berkeley, não condiz com a bondade divina colocar no homem tamanho desejo de

conhecimento sem dotá-lo de meios adequados para alcançá-lo. Talvez o problema não esteja

na constituição natural do sujeito e nem na natureza das coisas, e sim em um mau ponto de

partida, um mau princípio, produzido por um mau uso das capacidades humanas. É preciso,

então, fazer uma investigação cuidadosa destes princípios e ver de que maneira eles

contribuem mais para a confusão do que para a clareza. Esta é uma tarefa em cuja realização

falharam grandes nomes da filosofia. Mas as visões mais amplas nem sempre são as mais

claras. Por ser obrigado a analisar as coisas mais de perto e mais atentamente, um olho

míope pode distinguir com mais acuidade o que foge a olhos perfeitos.

Na seção 06 Berkeley adianta que, com a intenção de preparar o leitor para esta investigação,

vai introduzi-lo ao problema da natureza e do abuso da linguagem. Porém, diz Berkeley, este

prolegômeno na verdade é indissociável de seu propósito principal, pois o mais importante

dos princípios desencaminhadores da filosofia é exatamente a crença na necessidade das

idéias abstratas.

O primeiro passo na produção destas idéias seria, segundo esta doutrina, a formação de idéias

abstratas das qualidades mais elementares: o defensor das idéias abstratas crê que a mente

tem o poder de considerar certas qualidades como extensão, cores ou movimentos,

separadamente umas das outras. Assim, apesar de as idéias de cor ou de movimento não

poderem jamais ser percebidas separadamente da extensão, a mente poderia considerá-las

umas isoladas das outras. Após separar assim qualidades que nas coisas são inseparáveis, a

mente passaria a comparar as várias extensões particulares, as várias cores particulares, os

vários movimentos particulares, reuniria o que estes possuem em comum e forjaria as idéias

abstratas de "cor", "movimento" ou "extensão". Para ser idéia de todas as cores, a idéia

abstrata de cor deve ser constituída pelas qualidades comuns a todas as cores e não por

qualidades de uma ou outra cor particular. O mesmo ocorre com as idéias abstratas de

movimento ou extensão.

Pelo mesmo processo seriam formadas as idéias abstratas dos particulares compostos destas

qualidades: a idéia abstrata de "homem" exige que se ignore todas as qualidades e

circunstâncias que determinam cada homem particular e que se reúna todas as características

que eles compartilham. A idéia abstrata "animal" é formada pela reunião daquelas qualidades

que os homens compartilham entre si com as qualidades que as várias aves, peixes, insetos,

etc, compartilham entre eles. A idéia abstrata "corpo" é formada pelas qualidades que todos

os animais compartilham, ignorando-se as qualidades que determinam uma ou outra espécie.

Berkeley conclui assim esta primeira parte da Introdução: "Eu consigo abstrair apenas no

sentido de separar na imaginação as diversas partes das quais as coisas são compostas mas

não consigo imaginar uma idéia sem nenhuma determinação. Posso imaginar um cavalo sem

cabeça ou com cabeça de homem, mas não consigo imaginar um homem sem qualquer

qualidade particular ou uma cor independentemente de uma extensão. Não compreendo o que

pode ser uma idéia abstrata porque não consigo identificar nenhuma delas." (70)

Em seguida Berkeley refuta a tese de Locke segundo a qual as idéias abstratas são

necessárias porque é nomeando-as que os termos gerais significam e sem termos gerais não é

possível a linguagem e nem o conhecimento. Segundo Berkeley, os termos gerais são signos

não de idéias abstratas e sim de várias idéias particulares "cada uma indiferentemente

sugerida à mente". O termo geral "movimento" na formulação da lei "a alteração do

movimento é proporcional à força impressa ao corpo" não implica que seja nomeada uma

idéia de movimento sem referência a qualquer corpo particular. Significa apenas que este

axioma é verdadeiro em relação a qualquer movimento particular que entre em consideração.

Para entender como as palavras ganham generalidade é preciso entender como as idéias

podem ser gerais: ao dividir uma linha em duas partes iguais para fazer uma demonstração, o

geômetra usa uma linha particular mas o que é demonstrado é válido para qualquer linha,

quaisquer que sejam suas qualidades particulares. A linha particular torna-se geral ao ser feita

signo de todas as linhas possíveis e a palavra "linha" pode ser dita "geral" porque nomeia

cada uma destas linhas particulares e não uma idéia indeterminada.

Berkeley passa então a criticar a tese que afirma serem as idéias abstratas necessárias para a

demonstração e portanto para a ampliação do conhecimento. É preciso fazer a distinção, entre

a universalidade ou generalidade - que são necessárias à demonstração - e a abstração. A

universalidade e a generalidade não são expressões da natureza absoluta das coisas e sim da

relação que uma idéia ou palavra mantém com um conjunto de idéias. Um triângulo

particular passa a ser um triângulo geral no momento em que é usado para se demonstrar

uma qualidade de todos os triângulos. Mas como o termo geral "triângulo" usado na

proposição que exprime a lei que foi demonstrada com a imagem do triângulo pode ser

significante sem nomear uma idéia abstrata "triângulo"? Na demonstração verbal não se faz

qualquer menção às qualidades particulares do triângulo que foi utilizado na demonstração

geométrica. Considerar uma figura apenas como "triangular" sem referir-se a outras

qualidades particulares é possível assim como é possível considerar "Pedro" como "homem"

ou como "animal" sem recorrer a idéias abstratas. O termo "triângulo" nesta demonstração é

geral, i.é., refere-se indiferentemente a todos os triângulos - assim como a figura do

triângulo é signo de todos os triângulos - e não a uma idéia abstrata.

Na seção 18 Berkeley afirma que a linguagem está na origem do falso princípio que afirma a

necessidade das idéias abstratas. Em primeiro lugar, diz, é crença corrente que cada termo

geral significa imediatamente uma única idéia abstrata. Mas, como há havia sido

demonstrado, não é necessário que haja uma única idéia para cada termo geral, pois ele

significa indiferentemente muitas idéias particulares. Em segundo lugar, é comumente aceito

que o único fim da linguagem é a comunicação. Mas muitas vezes comunicar idéias não é a

prioridade da linguagem. Muitas vezes o mais importante é produzir certos efeitos como

emocionar, provocar ou inibir uma ação, causar uma certa disposição no espírito do

interlocutor. Mesmo se inicialmente as palavras usadas para este fim significavam idéias,

com o hábito estas palavras produzem os efeitos desejados sem que prestemos atenção ao que

elas significam a cada vez que são usadas. Finalmente, há a crença de que cada nome, para

ser significante, deve nomear uma idéia. Por esta razão acredita-se que os termos gerais, que

não significam nenhuma idéia particular, devem nomear idéias abstratas. Porém, assim como

utilizamos na álgebra letras que significam números, sem precisar ter em mente os números

que elas substituem cada vez que as utilizamos, as palavras muitas vezes significam sem que

as reconheçamos como nomes de idéias cada vez que as enunciamos.

Nas seções de 21 a 24 Berkeley admoesta o leitor a despir as idéias, considerá-las

separadamente das palavras que costumeiramente as revestem: as palavras são de grande

utilidade para que os conhecimentos sejam acumulados e transmitidos, porém o seu uso

acrítico na filosofia está na origem de todas as ilusões e problemas insolúveis que a

exasperam. Berkeley conclui reafirmando os benefícios que lhe trará a atitude de prestar mais

atenção às idéias do que às palavras que as nomeiam: evitará as controvérsias puramente

verbais, estará livre da "fina e sutil rede das idéias abstratas" e assim se afastará do erro.

Reconhecendo a dificuldade de levar a termo esta tarefa, Berkeley pede ao leitor que adote a

mesma atitude em relação ao seu próprio discurso, pois suas palavras podem ser igualmente

ocasião de equívoco. (71)

Berkeley começa a Introdução dizendo que os maiores problemas enfrentados pela filosofia

nascem não de uma inaptidão natural do homem ao conhecimento filosófico e sim do fato de

a filosofia partir de falsos princípios. Em que sentido usa Berkeley a palavra "princípio"?

Encontramos em Condillac uma reflexão sobre o papel dos "princípios" nos sistemas

filosóficos modernos que faz justiça ao sentido mais corriqueiro desta palavra na tradição

moderna: o princípio é um axioma fundamental sobre o qual todo um sistema repousa, do

qual todas as proposições de um sistema devem poder ser deduzidos.

Berkeley utiliza a palavra "princípio" em vários sentidos de acordo com o seu contexto.

Alguns deles são recenseados em De Moto, 36, onde "Principle" é:

a) em seu sentido mais geral "...the true, efficient and conserving cause of all things by

supreme right" (ou seja, Deus);

b) em experimental philosophy, "...the foundations upon wich rests, or the springs from wich

flows, not the existence, but our knowledge of corporeal things: (...) the sense and

experience";

c)em mechanical philosophy, "...those primary laws of motion which have been proved by

experiments, elaborated by reason and rendered universal".

Berkeley afirma na Introdução Publicada que o falso princípio ali em foco é: "the opinion

that the mind hath the power of framing abstract ideas or notions of things." (72) Este

sentido de "princípio" não corresponde a nenhum daqueles enumerados no De Moto e nem

tampouco ao de Condillac, (73) pois esta "opinião" parece ter mais o sentido de uma

"crença" que estaria na origem do pensar filosófico tradicional do que de um axioma

claramente formulado como base de um sistema particular.

Deveríamos então tomar este "princípio-crença" de Berkeley em um sentido de

"pressuposto"? Berkeley diz que a fonte, a origem, deste falso princípio é "a linguagem" e

"nada menos do que a própria razão". (74) Os filósofos acreditam que a linguagem deve

possuir certas características para que ela possa realizar suas duas principais funções: a

comunicação e a ampliação do conhecimento (a ciência). Estas características foram

explicitadas pela teoria da significação de Locke: os termos gerais precisam nomear idéias

abstratas para serem significantes. Mas, pergunta Berkeley, o que está na origem desta crença

que torna esta exigência aparentemente tão necessária? Ela deixa de assim parecer se

examinarmos outras crenças das quais ela depende e se provarmos que elas não são

consistentes. São elas: a crença de que cada palavra deve ter uma significação única e precisa

(uma idéia), a crença de que as palavras devem, cada vez que as usamos, ter esta significação

precisa (nomear sempre uma idéia) e a crença de que a linguagem só serve para comunicar

idéias. Ou seja, a crença de que a linguagem só significa porque cada palavra nomeia uma

idéia. O problema é que estas crenças sobre o modo de funcionamento da linguagem, assim

como a própria crítica e a nova teoria da significação propostas por Berkeley, são já

formuladas sob a forma de teorias sobre a linguagem. Assim, poderíamos dizer que as

análises levadas a cabo na Nova Teoria da Visão visam um momento ainda anterior, uma

crença mais fundamental, não necessariamente expressa em palavras (teorias), que estaria na

origem da teoria da linguagem exageradamente referencialista de Locke. Trata-se sempre da

crença natural, própria do senso comum, de que as qualidades sensíveis, mesmo pertencendo

a diferentes modalidades, comungam de uma mesma natureza. (75)

Talvez isto ajude a explicar o uso aparantemente ambíguo da palavra "princípio", às vezes

como "tese", às vezes como "crença". Se Berkeley inicia a Introdução se reportando à teoria

lockeana da significação, é porque assim fazendo retoma o discurso da Nova Teoria da Visão

exatamente do ponto onde este tinha chegado: depois da análise das origens últimas das

crenças filosóficas sobre a linguagem, a crítica das teses sobre a linguagem geradas por estas

mesmas crenças. Tudo ocorre como se Berkeley fizesse uma distinção entre várias formas

possíveis de usos da linguagem:

a)um uso natural como extensão da percepção, marcado por um dualismo necessário mas não

tematizado como tal (Nova Teoria da Visão);

b)um uso com fins científicos, como extensão da linguagem comum: a generalização que

entra em jogo na demonstração é de mesma natureza daquela que entra em jogo no uso dos

termos gerais (Introdução ao Principles);

c)um uso especulativo, filosófico mas acrítico, que procura explicar o seu uso natural (teoria

da significação de Locke); e, finalmente,

d)um uso filosófico crítico, que busca identificar os elementos pré-predicativos, as crenças

naturais, que determinam o seu uso pelo senso comum e também, mais indiretamente, pela

filosofia (Nova Teoria da Visão e Principles).

O problema "como funciona a linguagem?" nasceria, portanto, da tentativa de se explicar

como (a) e (b) funcionam lançando mão de (c). Daí a doutrina das idéias abstratas. Pela Nova

Teoria da Visão sabemos que Berkeley vai mais longe (d) ao mostrar que a própria questão

sobre a linguagem que a filosofia pretende responder está já impregnada de pressupostos

dualistas que, úteis nos momentos (a) e (b), tornam-se ocasião de ilusões e obstáculos no

momento (c). Mas a Introdução não é explícita neste sentido. Por quê? Porque o Principles é

mais francamente pragmático do que a Nova Teoria da Visão: Berkeley quer combater o

ceticismo que nasce do materialismo. Para isso precisa mostrar que o conceito de matéria

depende da doutrina das idéias abstratas e que esta é contraditória. O Principles é uma obra

eminentemente polêmica enquanto a Nova Teoria da Visão é sobretudo crítica. (76)

A interpretação que Berkeley faz da teoria da linguagem de Locke pode ser assim resumida:

para Locke "significar" é sinônimo de "nomear idéias", com raríssimas exceções que não

chegam a comprometer a generalidade da regra. Esta concepção estritamente referencialista

do significado é substituida, em Berkeley, por uma teoria que diz que a nomeação é uma das

funções da linguagem, mas não a única e nem a mais importante. Assim como há vários

tipos de idéias e de relações entre elas, assim também há várias formas de significação das

palavras. Sem a pretensão de estabelecer uma tipologia exaustiva das palavras, poderíamos

inicialmente dizer que estas podem significar

I)nomeando idéias ou

II)não nomeando-as.

Mesmo que signifique nomeando, a mente não precisa se reportar às idéias a cada vez que a

palavra é usada. Basta que uma vez ela as tenha nomeado e que, se necessário, estas idéias

possam ser evocadas. Significam desta forma

a)as palavras que nomeiam idéias particulares;

b)conjuntos formados por idéias de diversos sentidos ("objetos"); e

c)os termos gerais, que significam cada uma de um conjunto de idéias particulares a partir da

nomeação de uma delas. (77)

As palavras que significam sem nomear idéias são

a)as que significam provocando determinadas reações no interlocutor (despertam alguma

emoção, influenciam a conduta, etc.); (78)

b)os termos teóricos da ciência; e ainda

c)aquelas que significam algo que não é idéia mas que nos é "diretamente acessível", como

as palavras "eu", "espírito", "memória", "vontade" etc. (79)

Finalmente, temos os pseudo-nomes, os termos que não nomeiam idéias e nem

desempenham nenhuma função importante na linguagem mas que são produtos de uma ilusão

filosófica. Estes não resistem a uma análise crítica pois se revelam contraditórios face à

máxima "ser é perceber ou ser percebido", são apenas aparentemente significantes (por

exemplo, o termo "matéria").

Ao comentar a Nova Teoria da Visão procuramos centrar esforços na elucidação da

significação dos termos que nomeiam idéias direta ou indiretamente. Vamos nos deter agora

nos mecanismos de significação dos termos gerais e de algumas das espécies de palavras que

significam sem nomear idéias.

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