Animismo

III - ANIMISMO, MAGIA E A ONIPOTÊNCIA DE PENSAMENTOS

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Os trabalhos que procuram aplicar as descobertas da psicanálise a temas do campo das ciências mentais ressentem-se do inevitável defeito de oferecer muito pouco aos leitores de ambas as classes. Esses trabalhos só podem ter a natureza de uma instigação: colocam perante o especialista certas sugestões, para que as leve em consideração em seu próprio trabalho. Esse defeito está fadado a ser extremamente evidente num ensino que tentará tratar do imenso domínio daquilo que é conhecido como ‘animismo‘.

O animismo, em seu sentido mais estrito, é a doutrina de almas e, no mais amplo, a doutrina de seres espirituais em real. O termo ‘animatismo’ também foi usado para indicar a teoria do caráter vivo daquelas coisas que nos parecem ser objetos inanimados [ver adiante em [1]] e as expressões ‘animalismo’ e ‘hominismo’ também são empregadas em relação a isto. A palavra ‘animismo’, originalmente utilizada para descrever um sistema filosófico específico, parece ter recebido de Tylor o seu atual significado.

O que conduziu à introdução desses termos foi uma compreensão da visão da natureza e do universo altamente notável adotada pelos povos primitivos de que temos conhecimento, seja na história passada, seja na época atual. Eles povoam o mundo com inumeráveis seres espirituais, benevolentes e malignos; e consideram esses espíritos e demônios como as causas dos fenômenos naturais acreditando que não apenas os animais e os vegetais, mas todos os objetos inanimados do mundo são animados por eles. Um terceiro, talvez o mais importante, item desta primitiva ‘filosofia da natureza’ causa-nos uma impressão menos estranha, uma vez que, embora tenhamos mantido apenas uma crença muito limitada na existência de espíritos e expliquemos os fenômenos naturais pela influência de forças físicas impessoais, nós próprios não estamos muito longe dessa terceira crença, pois os povos primitivos acreditam que os seres humanos são habitados por espíritos semelhantes. Essas almas que vivem nos homens podem deixar suas habitações e emigrar para outros seres humanos; são o veículo das atividades mentais e são até certo ponto independentes de seus corpos. Originalmente, as almas eram representadas como muito semelhantes às pessoas e foi somente no decorrer de um longo desenvolvimento que elas perderam suas características materiais e se tornaram ‘espiritualizadas’ em alto grau.

A maioria das autoridades inclina-se a pensar que estas idéias de alma constituem o núcleo original do sistema animista, que os espíritos são apenas almas que se tornaram independentes e que as almas de animais, vegetais e objetos foram construídas por analogia com almas humanas.

Como os homens primitivos chegaram às específicas visões dualistas sobre as quais o sistema animista se baseia? Supõe-se que assim o fizeram observando os fenômenos do sono (inclusive os sonhos) e da morte, que tanto se lhe assemelha, e tentando explicar esses estados, que têm interesse tão próximo para todo mundo. O principal ponto de partida desta teorização deve ter sido o problema da morte. O que o homem primitivo encarava como coisa natural era o prolongamento indefinido da vida — a imortalidade. Somente depois a idéia da morte foi aceita, e com hesitação. Mesmo para nós, ela é falha de conteúdo e não tem uma conotação clara. Têm havido discussões muito vivas mas inconclusivas sobre o papel que pode ter sido desempenhado na formação das doutrinas básicas do animismo por outros fatos observados ou experimentados, tais como as representações oníricas, as sombras, as imagens no espelho etc.

Foi encarado como perfeitamente natural e de modo algum estranho que o homem primitivo tivesse reagido aos fenômenos que despertavam suas especulações através da formação da idéia da alma, e depois, de sua extensão aos objetos do mundo exterior. Ao examinar o fato de as mesmas idéias animistas haverem surgido entre os povos mais variados e em todos os períodos, Wundt (1906, 154) declara que ‘elas constituem o produto psicológico necessário de uma consciência mitocriadora (…) e assim, neste sentido, o animismo primitivo deve ser encarado como a expressão espiritual do estado natural do homem, até onde é acessível à nossa observação’. A justificativa para a atribuição de vida aos objetos inanimados já fora enunciada por Hume em sua Natural History of Religion [Seção III]: ‘Existe uma tendência universal entre humanos para conceber todos os seres à sua semelhança e transferir a todos os objetos as qualidades que lhes são familiares e das quais se achem intimamente conscientes.

O animismo é um sistema de pensamento. Ele não fornece simplesmente uma explicação de um fenômeno específico, mas permite-me apreender todo o universo como uma unidade isolada de um ponto de vista único. A raça humana, se seguirmos as autoridades no assunto, desenvolveu, no decurso das eras, três desses sistemas de pensamento — três grandes representações do universo: animista (ou mitológica), religiosa e científica. Destas, o animismo, o primeiro a ser criado, é talvez o mais coerente e completo e o que dá uma explicação verdadeiramente total da natureza do universo. A primeira Weltanschauung humana é uma teoria psicológica. Iria mais além de nossos atuais objetivos demonstrar como grande parte dela persiste na vida moderna, seja sob a forma degradada da superstição, seja como a base viva de nossa fala, nossas crenças e nossas filosofias.

Com esses três estágios em mente, pode-se dizer que o animismo em si mesmo não é ainda uma religião, mas contém os fundamentos sobre os quais as religiões posteriormente foram criadas. É evidente também que os mitos se baseiam em premissas animistas, embora os pormenores da relação entre os mitos e o animismo pareçam estar inexplicados em alguns aspectos essenciais.

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Nossa abordagem psicanalítica do tema, entretanto, é feita de outro ângulo. Não é de se supor que os homens foram inspirados a criar seu primeiro sistema do universo por pura curiosidade especulativa. A necessidade prática de controlar o mundo que os rodeava deve ter desempenhado seu papel. Assim, não ficamos surpresos em descobrir que, de mãos dadas com o sistema animista, existia um conjunto de instruções a respeito de como obter domínio sobre os homens, os animais e as coisas — ou melhor, sobre os seus espíritos. Estas instruções são conhecidas com o nome de ‘feitiçaria’ e ‘magia’. Reinach (1905-12, 2, XV) descreve-as como sendo a ‘estratégia do animismo’; eu prefiro, seguindo Hubert e Mauss (1904 [142 e segs.]), considerá-las a sua técnica.

Pode-se fazer distinção entre os conceitos de feitiçaria e magia? Talvez — se estivermos dispostos a mostrar um desprezo um tanto arbitrário pelas flutuações do uso lingüístico. A feitiçaria seria, então, a arte de influenciar espíritos tratando-os da mesma maneira como se tratariam seres humanos em circunstâncias semelhantes: apaziguando-os, corrigindo-os, tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes o poder, submetendo-os à nossa vontade — através dos mesmos métodos que se têm mostrado eficazes com homens vivos. A magia, por outro lado, é algo diferente: fundamentalmente, ela despreza os espíritos e faz uso de procedimentos especiais e não dos métodos psicológicos do dia-a-dia. É fácil imaginar que a magia é o ramo mais primitivo e mais importante da técnica animista, porque, entre outros, os métodos mágicos podem ser utilizados para tratar com os espíritos e a magia pode ser aplicada também a casos onde, segundo nos parece, o processo de espiritualização da natureza ainda não foi realizado.

A magia tem de servir aos mais variados propósitos — ela deve submeter os fenômenos naturais à vontade do homem, proteger o indivíduo de seus inimigos e de perigo, bem como conceder-lhe poderes para prejudicar os primeiros. Mas o princípio em cuja pressuposição a ação mágica se baseia — ou, mais propriamente, o princípio da magia — é tão notável que nenhuma das autoridades deixou de identificá-lo. Tylor [1891, 1, 116], se deixarmos de lado o juízo moral acessório, afirma que, em sua forma mais sucinta, esse princípio consiste em tomar equivocadamente uma conexão ideal por uma real. Ilustrarei esta característica com dois grupos de atos mágicos.

Um dos procedimentos mágicos mais difundidos para prejudicar um inimigo é fazer uma efígie dele com qualquer material adequado. Que a efígie se lhe assemelhe tem pouca importância: qualquer objeto pode ‘ser transformado’ numa efígie sua. O que se fizer então à efígie acontecerá também ao original detestado; se alguma parte do corpo da primeira for danificada, a mesma parte do corpo do último ficará enferma. A mesma técnica mágica pode ser utilizada, não apenas com intuitos de inimizade pessoal, mas também com fins piedosos e para auxiliar os deuses contra os demônios malignos. Citarei Frazer (1911a, 1, 67). ‘Todas as noites, quando o deus-sol Ra mergulhava para sua casa no oeste fulgente, era atacado por hostes de demônios dirigidos por seu arquinimigo Apepi. Durante toda a noite ele os combatia e às vezes também de dia os poderes das trevas enviavam nuvens mesmo para o céu azul do Egito, a fim de obscurecer sua luz e enfraquecer-lhe o poder. Para ajudar o deus-sol nesta luta cotidiana, uma cerimônia era diariamente realizada em seu templo de Tebas. Uma figura de seu inimigo Apepi, representado como um crocodilo com uma face odienta ou uma serpente de muitas espirais, era feita de cera e sobre ela se escrevia o nome do demônio com tinta verde. Enrolada num envoltório de papiro, sobre o qual outra imagem de Apepi fora desenhada em tinta verde, a figura era então amarrada com fios negros de cabelos, cuspia-se-lhe em cima, era retalhada com uma faca de pedra e arremessada ao chão. Aí o sacerdote pisava-lhe em cima com o pé esquerdo repetidas vezes e depois queimava-a numa fogueira feita com uma certa planta ou erva. Quando o próprio Apepi tinha sido então efetivamente eliminado, efígies de cera de cada um de seus principais demônios e de seus pais, mães e filhos, eram feitas e queimadas da mesma maneira. O serviço, acompanhado da recitação de certos encantamentos prescritos, era repetido não apenas pela manhã, ao meio-dia e à noite, mas sempre que uma tempestade estrondeava, chuva forte caía ou nuvens negras se deslocavam furtivamente pelo céu, a fim de ocultar o disco brilhante do sol. Os demônios da trevas, das nuvens e das chuvas, sentiam os danos infligidos a suas imagens como se tivessem sido causados a eles próprios; sumiam, pelo menos durante algum tempo, e o benéfico deus-sol mais uma vez brilhava triunfante.

Do grande número de atos mágicos que possuem uma base semelhante, chamarei a atenção para mais dois, que desempenharam um grande papel entre os povos primitivos de todas a épocas e que persistem, em certo grau, nos mitos e cultos de fases mais elevadas de civilização — os rituais para produção de chuva e fertilidade. A chuva é magicamente produzida pela imitação dela ou das nuvens e tempestades que lhe dão origem, através de uma ‘brincadeira de chuva’, como quase se poderia dizer. No Japão, por exemplo, ‘uma turma de ainos espalha chuva por meio de peneiras, enquanto outros tomam uma tigela, enfeitam-na com velas e remos, como se fosse um barco, e depois a empurram ou puxam pela aldeia afora pelos jardins’. Da mesma maneira, a fertilidade da terra é magicamente promovida através de uma representação dramática da relação sexual humana. Assim, para tomar apenas um só de um número incontável de exemplos, ‘em algumas partes de Java, na estação em que o arroz logo começará a florescer, o lavrador e sua esposa visitarão seus campos à noite e lá efetuarão a relação sexual’, a fim de incentivar a fertilidade do arroz com o seu exemplo. Existe o temor, contudo, de que relações sexuais proibidas e incestuosas possam provocar o fracasso das colheitas e tornar a terra estéril.

Certas observâncias negativas, isto é, precauções mágicas, devem ser incluídas neste primeiro grupo. ‘Quando uma aldeia diak sai para caçar porcos selvagens na selva, as pessoas que ficam em casa não podem tocar em óleo nem em água com as mãos durante a ausência de seus amigos, porque, se os fizerem, os caçadores ficarão todos “com os dedos escorregadios” e a presa se lhes escapará das mãos.’ Ou ainda, ‘enquanto um caçador gilyak está perseguindo a caça na floresta, seus filhos que ficaram em casa são proibidos de fazer desenhos sobre madeira ou areia, porque temem que se os filhos assim procederem, os caminhos da floresta ficarão tão confusos quanto as linhas dos desenhos e assim o caçador poderia perder-se e nunca retornar’.

Nestes últimos exemplos, como em tantos outros do funcionamento da magia, o elemento da distância é desprezado; em outras palavras, a telepatia é admitida como certa. Não teremos dificuldade, por conseguinte, em compreender esta característica da magia.

Não pode haver dúvida quanto ao que deve ser encarado como fator operativo em todos esses exemplos. Trata-se da semelhança entre o ato executado e o resultado esperado. Por esta razão, Frazer descreve esse tipo de magia como ‘imitativo’ ou ‘homeopático’. Se desejo que chova, tenho apenas de efetuar algo que se assemelhe à chuva ou faça lembrá-la. Numa fase posterior da civilização, em vez dessa chuva mágica, serão feitas procissões até um templo e preces pedindo chuva serão dirigidas à divindade que nele habita. Finalmente, esta técnica religiosa será por sua vez abandonada e serão feitas tentativas de produzir na atmosfera efeitos que conduzam à chuva.

Num segundo grupo de atos mágicos, o princípio da semelhança não desempenha qualquer papel e seu lugar é assumido por outro princípio, cuja natureza imediatamente se tornará clara pelos exemplos seguintes.

Existe um outro processo pelo qual um inimigo pode ser prejudicado. Entra-se de posse de um pouco de seus cabelos ou unhas ou outros produtos de excreção ou mesmo de um pedaço de suas roupas, e se os trata de maneira hostil. Então, é exatamente como se se tivesse apossado do próprio homem; e este experimenta o que quer que tenha sido feito aos objetos que dele se originaram. Segundo a visão do homem primitivo, uma das partes mais importantes de uma pessoa é o seu nome. Assim; se se souber o nome de um homem ou de um espírito, obtém-se uma certa quantidade de poder sobre o seu possuidor. Está é a origem das extraordinárias precauções e restrições sobre o uso de nomes, às quais já nos referimos no ensaio sobre o tabu. (Ver em [1] e segs.) Nesses exemplos, o lugar da semelhança é evidentemente tomado pela afinidade.

Os motivos mais elevados para o canibalismo entre os povos primitivos têm uma origem semelhante. Incorporando partes do corpo de uma pessoa pelo ato de comer, adquire-se ao mesmo tempo as qualidades por ela possuídas. Isto, em certas circunstâncias, conduz a precauções e restrições relacionadas com a dieta. Uma mulher com filho pequeno evitará comer a carne de certos animais, por temor de que algumas qualidades indesejáveis que possam ter (a covardia, por exemplo) sejam transmitidas ao filho que está sendo nutrido por ela. O poder mágico não é afetado mesmo que a conexão entre os dois objetos já tenha sido rompida ou mesmo que o contato tenha ocorrido apenas numa única ocasião de importância. Por exemplo, a crença de que existe uma ligação mágica entre um ferimento e a arma que a causou pode ser percebida, inalterada, através de milhares de anos. Se um melanésio puder entrar de posse do arco que provocou seu ferimento, guarda-lo-á cuidadosamente num lugar frio, a fim de diminuir a inflamação da ferida. Mas se o arco for deixado na posse do inimigo, ele será sem dúvida dependurado perto do fogo, de maneira a que a ferida se torne febril e inflamada. Plínio (em sua História Natural, Livro XXVIII [Capítulo 7]) conta-nos que ‘se ferirmos um homem e ficarmos sentidos por isso, teremos apenas de cuspir na mão que causou o ferimento e a dor do sofredor será instantaneamente mitigada’. [Frazer, 1911a, 1, 201.] Francis Bacon (em seu Sylva Silvarum [X, § 998]) menciona que ‘é constantemente ouvido e afirmado que o untamento da arma que causou o ferimento curará a própria ferida’. Diz-se que a gente inglesa do campo ainda hoje segue esta prescrição e se se cortam com uma foice mantêm o instrumento cuidadosamente limpo, a fim de impedir que a ferida inflame. ‘Em Norwich, em junho de 1902, uma mulher chamada Matilda Henry cravou acidentalmente um prego no pé. Sem examinar a ferida ou mesmo retirar a meia, fez com que sua filha untasse o prego, dizendo que se isso fosse feito, nenhum dano sobreviria da machucadura. Poucos dias após, morria de trismo’ — (uma forma de tétano, N. do T. Bras.) — em conseqüência dessa antissepsia deslocada. (Frazer, ibid., 203).

O último grupo de casos exemplifica o que Frazer distingue na magia ‘imitativa’ com o nome de magia ‘contagiosa’. O que se acredita ser o princípio eficaz não é mais a semelhança, mas a conexão espacial, a contigüidade ou, pelo menos, a contigüidade imaginada — a lembrança dela. Desde que, contudo, a semelhança e a contigüidade são os dois princípios essenciais dos processos de associação, parece que a verdadeira explicação de toda a insensatez dessas observâncias mágicas é a dominância da associação de idéias. A propriedade da descrição de magia feita por Tylor, a qual já citei (ver em [1]), torna-se agora evidente: tomar equivocadamente uma conexão ideal por uma real. Frazer (1911a, 1, 420) expressou-se quase com as mesmas palavras: ‘Os homens tomaram equivocadamente a ordem de suas idéias pela ordem da natureza e daí imaginaram que o controle que têm ou parecem ter sobre seus pensamentos permite-lhes exercer um controle correspondente sobre as coisas.’

A princípio ficaremos surpresos em descobrir que esta esclarecedora explicação da magia foi rejeitada por alguns escritores como insatisfatória (p. ex., Thomas, 1910-11a). Pensando bem, contudo, ver-se-á que a crítica é justificada. A teoria associativa da magia explica simplesmente os caminhos pelos quais a magia avança; não explica sua verdadeira essência, a saber, o equívoco que a leva a substituir as leis da natureza por leis psicológicas. Algum fator dinâmico está faltando, evidentemente. Mas, considerando que os críticos da teoria de Frazer se desviaram na procura desse fator, será fácil chegar a uma explicação satisfatória da magia simplesmente aprofundando e levando mais adiante a teoria associativa.

Consideremos primeiramente o caso mais simples e mais importante da magia imitativa. De acordo com Frazer (1911a, 1, 54), ela pode ser praticada por si própria, enquanto que a magia contagiosa via de regra pressupõe outrem. É fácil perceber os motivos que conduziram os homens a praticar a magia: são os desejos humanos. Tudo o que precisamos admitir é que o homem primitivo tinha uma crença imensa no poder de seus desejos. A razão básica por que o que ele começa a fazer por meios mágicos vem a acontecer é, em última análise, simplesmente que o deseja. De início, portanto, a ênfase é colocada apenas no seu desejo.

As crianças se encontram numa situação psíquica análoga, embora sua eficiência motora não esteja ainda desenvolvida. Já expus em outra oportunidade (1911b) a hipótese de que, primeiramente, elas satisfazem seus desejos de uma maneira alucinatória, isto é, criam uma situação satisfatória por meio de excitações centrífugas dos órgãos sensoriais. Um homem adulto primitivo tem à sua disposição um método alternativo. Seus desejos são acompanhados de um impulso motor, a vontade, que está destinado, mais tarde, a alterar toda a face da terra para satisfazer seus desejos. Esse impulso motor é a princípio empregado para dar uma representação da situação satisfatória, de maneira tal que se torna possível experimentar a satisfação por meio do que poderia ser descrito como alucinações motoras. Esse tipo de representação de um desejo satisfeito é bastante comparável à brincadeira das crianças, que dá prosseguimento à técnica primitiva e puramente sensorial de satisfação. Se as crianças e os homens primitivos acham o brinquedo e a representação imitativa suficiente para eles, isto não constitui um sinal de que sejam despretensiosos, em nosso sentido, ou de que aceitem resignadamente sua impotência real. É o resultado, facilmente compreensível, da virtude suprema que atribuem aos seus desejos, da vontade que está associada a esses desejos e dos métodos pelos quais os desejos operam. À medida que o tempo passa, o acento psicológico se desloca dos motivos do ato mágico para as medidas através das quais ele é executado — isto é, para o próprio ato. (Seria talvez mais correto dizer que são apenas estas medidas que revelam ao sujeito a valorização excessiva que ele atribui aos seus atos físicos.) Chega a parecer, assim, como se fosse o próprio ato mágico sozinho que, devido à sua semelhança com o resultado desejado, determina a ocorrência desse resultado. Não há oportunidade, na fase do pensamento animista, de apresentar qualquer prova objetiva do verdadeiro estado de coisas. Mas uma possibilidade de fazer isso aparece realmente numa época posterior, quando, apesar de todos esses procedimentos ainda estarem sendo realizados, o fenômeno psíquico da dúvida começou a surgir, como expressão de uma tendência à repressão. Nesse ponto, os homens estarão prontos para admitir que conjurar espíritos não dá resultado, a menos que a conjuração seja acompanhada de fé, e que o poder mágico da prece falha se não houver, por trás dele, piedade em ação.

O fato de ter sido possível construir um sistema de magia contagiosa sobre associações de contigüidade mostra que a importância atribuída aos desejos e à vontade foi estendida desses dois fatores a todos os atos psíquicos que estão sujeitos à vontade. Uma supervalorização geral ocorreu assim com todos os processos mentais — isto é, uma atitude para com o mundo que, em vista de nosso conhecimento da relação entre a realidade e o pensamento, não pode deixar de impressionar-nos como uma supervalorização do pensamento. As coisas se tornam menos importantes do que as idéias das coisas: tudo o que for feito às idéias das coisas inevitavelmente acontecerá também com as coisas. As relações mantidas entre as idéias de coisas manter-se-ão também igualmente entre as próprias coisas. Desde que a distância näo tem importância para o pensamento — desde que o que fica mais afastado tanto no tempo quanto no espaço pode sem dificuldade ser abrangido num único ato de consciência — assim também o mundo da magia tem um desprezo telepático pela distância espacial e trata as situações passadas como se fossem atuais. Na época animista, o reflexo do mundo interno está fadado a obscurecer a outra representação do mundo, aquela que nós parecemos perceber.

É de se notar ainda que os dois princípios de associação — semelhança e contigüidade — estão incluídos no conceito mais amplo de ‘contato’. A associação por contigüidade é contato no sentido literal; a associação por semelhança o é no sentido metafórico. O emprego da mesma palavra para os dois tipos de relação é, sem dúvida, explicado por alguma identidade nos processos psíquicos em causa, identidade que ainda não foi por nós apreendida. Temos aqui o mesmo alcance de significado da idéia de ‘contato’ que encontramos em nossa análise do tabu. (Cf. ver em [1])

Para resumir, pode-se dizer, então, que o princípio que dirige a magia, a técnica da modalidade animista de pensamento, é o princípio da ‘onipotência de pensamentos’.

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Extraído de "Totem e Tabu" de Sigmund Freud,