Dawkins

MEMES: OS NOVOS REPLICADORES

Richard Dawkins

Até agora não falei muito a respeito do homem em especial, embora tampouco o tenha deliberadamente excluído. Parte do motivo por eu ter usado o termo "máquina de sobrevivência" é que "animal" teria excluído as plantas e, para algumas pessoas, os seres humanos. Os argumentos apresentados deveriam prima facie, aplicar-se a qualquer ser que evoluiu. Se uma espécie constituir exceção, devem haver boas razões. Há boas razões para supor que nossa própria espécie seja única? Acredito que a resposta seja afirmativa.

Quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido em uma palavra: "cultura". Não usei a palavra em um sentido esnobe, mas como os cientistas a usam. A transmissão cultural é análoga à transmissão genética no sentido de que embora seja basicamente conservadora, pode originar um tipo de evolução. Geoffrey Chaucer não poderia manter conversação com um inglês contemporâneo, embora estejam ligados entre si por uma cadeia ininterrupta de cerca de vinte gerações de ingleses, cada um dos quais podia falar com seus vizinhos imediatos na cadeia, como um filho fala com seu pai. A língua parece "evoluir" por meios não genéticos e a uma velocidade muito superior a da evolução genética. A transmissão cultural não é característica apenas do homem. O melhor exemplo que conheço entre os animais foi recentemente descrito por P. F. Jenkins no canto de uma ave ("saddleback") que vive em ilhas próximas da Nova Zelândia. Na ilha na qual ele trabalhou havia um repertório total de cerca de nove cantos diferentes. Cada macho emitia apenas um ou alguns desses cantos. Os machos podiam ser classificados em grupos dialetais. Por exemplo, um grupo de oito machos possuindo territórios adjacentes, emitiam um canto específico chamado CC. Outros grupos dialetais emitiam cantos diferentes. Algumas vezes os membros de um grupo dialetal compartilhavam mais de um canto diferente. Comparando os cantos dos pais e filhos Jenkins mostrou que os padrões de canto não eram herdados geneticamente. Cada macho jovem provavelmente adotaria por imitação os cantos de seus vizinhos de território, de modo análogo à linguagem humana. Durante a maior parte do tempo em que Jenkins esteve lá, havia um número constante de cantos na ilha, um tipo de "fundo de cantos" do qual cada macho jovem obtinha seu próprio repertório pequeno. Mas, ocasionalmente Jenkins teve o privilégio de testemunhar a "invenção" de um novo canto, a qual ocorria por um erro na imitação de um canto antigo. Ele escreve: "Mostrou-se que novas formas de canto originam-se de várias maneiras pela mudança da altura de uma nota, repetição, elisão de notas e combinação de trechos de outros cantos já existentes... O aparecimento da nova forma era um acontecimento abrupto e o resultado era bastante estável durante vários anos. Além disto, em vários casos a variante foi transmitida com precisão em sua nova forma a jovens, de modo que um grupo reconhecidamente coerente de cantores semelhantes se desenvolveu". Jenkins se refere à origem dos novos cantos como "mutações culturais".

O canto nesta ave realmente evolui por meios não genéticos. Há outros exemplos de evolução cultural nas aves e nos macacos, mas eles são apenas curiosidades interessantes. É a nossa própria espécie que realmente mostra o que a evolução cultural pode fazer. A linguagem é apenas um exemplo dentre muitos. A moda nos vestidos e na alimentação, cerimônias e costumes, arte e arquitetura, Engenharia e Tecnologia, tudo isto evolui no tempo histórico de uma maneira que parece evolução genética altamente acelerada, mas que na realidade nada tem a ver com esta última. No entanto, como na evolução genética, a mudança pode ser progressiva. Há um sentido no qual a Ciência moderna realmente é melhor do que a Ciência antiga. Nossa compreensão do Universo não apenas muda com o passar dos séculos: ela melhora. Sem dúvida, a atual explosão de aperfeiçoamento data apenas do Renascimento, o qual foi precedido por um período sombrio de estagnação no qual a cultura científica européia ficou congelada no nível atingido pelos gregos. Mas, como vimos no Capítulo 5, a evolução genética também pode ocorrer como uma série de explosões curtas entre platôs estáveis.

A analogia entre a evolução cultural e a evolução genética tem sido freqüentemente enfatizada, algumas vezes num contexto de conotações místicas desnecessárias. A analogia entre o progresso científico e a evolução genética pela seleção natural tem sido esclarecida especialmente por "Sir" Karl Popper. Quero ir ainda mais além por direções que também estão sendo exploradas, por exemplo pelo geneticista L. L. Cavalli-Sforza, o antropólogo F. T. Cloak e o etólogo J. M. Cullen.

Como um darwinista entusiasta. tenho ficado insatisfeito com as explicações do comportamento humano oferecidas por outros entusiastas semelhantes. Eles têm tentado procurar "vantagens biológicas" nos vários atributos da civilização humana. Por exemplo, a religião tribal tem sido vista como um mecanismo de solidificação da identidade do grupo, importante para uma espécie que caça em bandos cujos indivíduos dependem da cooperação para capturar presas grandes e velozes. O pressuposto evolutivo em termos do qual tais teorias são concebidas muitas vezes é implicitamente do tipo seleção de grupo, mas é possível reformular as teorias em termos de seleção gênica ortodoxa. Talvez o homem tenha passado boa parte dos últimos milhões de anos vivendo em pequenos grupos de parentesco. A seleção de parentesco e a seleção em favor do altruísmo recíproco poderão ter atuado sobre os genes humanos produzindo muitos de nossos atributos e tendências psicológicas básicas. Essas idéias são plausíveis até certo ponto, mas acho que elas nem começam a enfrentar o enorme desafio de explicar a cultura, a evolução cultural e as imensas diferenças entre as culturas humanas espalhadas pelo mundo, do egoísmo absoluto dos Ik de Uganda, descrito por Colin Turnbull, ao altruísmo suave dos Arapesh de Margaret Mead. Acho que temos que começar novamente e voltar aos primeiros princípios. O argumento que proporei, que talvez pareça surpreendente provindo do autor dos capítulos anteriores, é que para uma compreensão da evolução do homem moderno devemos começar desprezando o gene como a única base de nossas idéias a respeito de evolução. Sou um darwinista entusiasta, mas acho que o darwinismo é uma teoria grande demais para ser confinada ao contexto limitado do gene. O gene entrará em minha tese como uma analogia, nada mais.

O que, afinal de contas, é tão especial a respeito dos genes? A resposta é que eles são replicadores. As leis da Física supostamente são verdadeiras em todo o universo acessível. Há qualquer princípio da Biologia que possivelmente tenha uma validade universal semelhante? Quando os astronautas viajarem para planetas distantes e procurarem vida, eles podem esperar encontrar criaturas por demais estranhas e misteriosas para que possamos imaginar. Mas, há alguma coisa que deva sempre caracterizar a vida, onde quer que ela se encontre e qualquer que seja a base de sua química? Se existirem formas de vida cuja química é baseada em silício e não em carbono, ou em amônia e não água, se forem descobertas criaturas que morrem queimadas a -1000 C, se for encontrada uma forma de vida que não é baseada em química, mas em circuitos eletrônicos de reverberação, haverá, ainda assim, um princípio geral que se aplique à toda a vida? Evidentemente eu não sei, mas se tivesse que apostar, confiaria meu dinheiro em um princípio fundamental. Esta é a lei de que toda a vida evolui pela sobrevivência diferencial de entidades replicadoras. O gene, a molécula de DNA, por acaso é a entidade replicadora mais comum em nosso planeta. Poderá haver outras. Se houver, desde que certas outras condições sejam satisfeitas, elas quase inevitavelmente tenderão a tornarem-se a base de um processo evolutivo.

Mas temos que ir para mundos distantes a fim de encontrar outros tipos de replicadores e outros tipos resultantes de evolução? Acho que um novo tipo de replicador recentemente surgiu neste próprio planeta. Ele está nos encarando de frente. Ainda está em sua infância, vagueando desajeitadamente num caldo primordial, mas já está conseguindo uma mudança evolutiva a uma velocidade que deixa o velho gene muito atrás.

O novo caldo é o caldo da cultura humana. Precisamos de um nome para o novo replicador, um substantivo que transmita a idéia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. "Mimeme" provém de uma raiz grega adequada, mas quero um monossílabo que soe um pouco como "gene". Espero que meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada a "memória", ou à palavra francesa même.

Exemplos de memes são melodias, idéias, "slogans", modas do vestuário, maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma forma como os genes se propagam no "fundo" pulando de corpo para corpo através dos espermatozóides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se no "fundo" de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. Se um cientista ouve ou lê uma idéia boa ele a transmite a seus colegas e alunos. Ele a menciona em seus artigos e conferências. Se a idéia pegar, pode-se dizer que ela se propaga , si própria, espalhando-se de cérebro a cérebro. Como meu colega N. K. Humphrey claramente resumiu uma versão inicial deste capítulo: ". . . os memes devem ser considerados como estruturas vivas, não apenas metafórica mas tecnicamente. Quando você planta um meme fértil em minha mente, você literalmente parasita meu cérebro, transformando-o num veículo para a propagação do meme, exatamente como um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira. E isto não é apenas uma maneira de falar - o meme, por exemplo, para "crença numa vida após a morte" é, de fato, realizado fisicamente, milhões de vezes, como uma estrutura nos sistemas nervosos dos homens, individualmente, por todo o mundo".

Considere a idéia de Deus. Não sabemos como ela se originou no "fundo" de memes. Provavelmente originou-se muitas vezes por "mutação" independente. De qualquer forma, ela é realmente muito antiga. Como se replica? Pela palavra escrita e falada, auxiliada por música e arte estupendas. Por que tem um valor de sobrevivência tão alto? Lembre-se que "valor de sobrevivência" aqui não significa valor para um gene no "fundo", mas valor para um meme num "fundo" de memes. A pergunta realmente significa: o que há com a idéia de um deus que lhe dá estabilidade e penetração no ambiente cultural? O valor de sobrevivência do meme para deus no "fundo" resulta de sua grande atração psicológica. Ele fornece uma resposta superficialmente plausível para questões profundas e perturbadoras a respeito da existência. Ele sugere que as injustiças neste mundo talvez possam ser corrigidas no próximo. Os "braços eternos" oferecem uma proteção contra nossas próprias deficiências, a qual, como o placebo do médico, não é menos eficiente por ser imaginária. Essas são algumas das razões pelas quais a idéia de Deus é copiada tão facilmente por gerações sucessivas de cérebros individuais. Deus existe, mesmo se apenas sob a forma de um meme com alto valor de sobrevivência ou de poder infectante no ambiente fornecido pela cultura humana.

Alguns de meus colegas sugeriram que esta descrição do valor de sobrevivência do meme para deus não resolve o problema. Em última análise eles querem sempre retomar à "vantagem biológica". Para eles não basta dizer que a idéia de um deus possui "grande atratividade psicológica". Eles querem saber por que ela o tem. A atratividade psicológica significa atratividade aos cérebros, e estes são moldados pela seleção natural de genes nos "fundos". Eles querem descobrir uma maneira pela qual ter um cérebro destes aumenta a sobrevivência dos genes.

Tenho muita simpatia por esta atitude e não duvido que haja vantagens genéticas em termos cérebros como temos. No entanto acho que esses colegas verificarão, se olharem cuidadosamente para os princípios básicos de suas próprias pressuposições, que deixam de resolver tantos problemas quanto eu. Basicamente, a razão pela qual é uma boa política tentar explicar fenômenos biológicos em termos de vantagem aos genes é que eles são replicadores. Assim que o caldo primordial ofereceu condições nas quais as moléculas podiam fazer cópias de si mesmas, os próprios replicadores passaram a dominar. Por mais de três bilhões de anos o DNA tem sido o único replicador digno de menção no mundo. Mas ele não mantêm necessariamente esses direitos de monopólio para sempre. Sempre que surgirem condições nas quais um novo tipo de replicador possa fazer cópias de si mesmo, os novos replicadores tenderão a dominar e a iniciar um novo tipo de evolução própria. Quando essa nova evolução começar não terá, em nenhum sentido obrigatório, que se submeter à antiga. A evolução antiga de seleção de genes, produzindo cérebros, forneceu o "caldo" no qual os primeiros memes originaram-se. Quando os memes auto-copiadores surgiram, seu próprio tipo de evolução, muito mais rápido, teve início. Nós, biólogos, assimilamos a idéia de evolução genética tão profundamente que temos a tendência a esquecer que ela é apenas um dentre vários tipos possíveis de evolução.

É por imitação, em um sentido amplo, que os memes podem replicar-se. Mas, da mesma maneira como nem todos os genes que podem se replicar têm sucesso em fazê-lo, da mesma forma alguns memes são mais bem sucedidos no "fundo" do que outros. Isto é análogo à seleção natural. Mencionei exemplos específicos de qualidades que determinam um alto valor de sobrevivência entre os memes. Mas, de um modo geral, elas têm que ser as iguais àquelas discutidas para os replicadores do Capítulo 2: longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia. A longevidade de uma cópia qualquer de um meme é, talvez, relativamente pouco importante, assim como o é uma cópia qualquer de um gene. A cópia da melodia "Auld Lang Syrie" que existe em meu cérebro durará apenas até o fim de minha vida. A cópia da mesma melodia impressa em volume do Livro de Canções do Estudante Escocês provavelmente não durará muito mais que isto. Mas espero que existirão cópias da mesma melodia impressas e nos cérebros das pessoas por muitos séculos. Como no caso dos genes, a fecundidade é muito mais importante do que a longevidade de cópias específicas. Se o meme for uma idéia científica, sua difusão dependerá de quão aceitável ela é para a população de cientistas; uma primeira estimativa de seu valor de sobrevivência poderia ser obtida contando o número de vezes que ela é citada em revistas científicas em anos subseqüentes. Se for uma melodia popular, sua difusão pelo "fundo" de memes poderá ser avaliada pelo número de pessoas que a assobiam nas ruas. Se for uma moda de sapato feminino, o memeticista de população poderá usar estatísticas de vendas de lojas de sapatos. Alguns memes, como alguns genes, conseguem um sucesso brilhante a curto prazo ao espalharem-se rapidamente, mas não permanecem muito tempo no "fundo". As canções populares e os saltos finos são exemplos destes. Outros, tais como as leis religiosas judaicas, poderão continuar a se propagar durante milhares de anos, geralmente devido à grande durabilidade em potencial dos registros escritos.

Isto me leva à terceira qualidade geral dos replicadores bem sucedidos: a fidelidade de cópia. Aqui devo admitir que estou inseguro. À primeira vista parece que os memes não são, de forma alguma, replicadores de alta fidelidade. Cada vez que um cientista ouve uma idéia e transmite-a a outra pessoa ele provavelmente muda-a bastante. Não fiz segredo a respeito de minha dívida às idéias de R. L. Trivers neste livro. No entanto, não as repeti com suas próprias palavras. Reformulei-as para meus próprios propósitos, alterando a ênfase, misturando-as com minhas próprias idéias e de outras pessoas. Os memes estão sendo transmitidos a você sob forma alterada. Isto é bastante diferente da qualidade particulada, do tipo tudo-ou-nada, da transmissão dos genes. Parece que a transmissão dos memes está sujeita à mutação contínua e também à mistura.

É possível que esta aparência de não particularidade seja ilusória e que a analogia com os genes não se interrompa. Afinal de contas, se olharmos para a herança de muitas características genéticas tais como a altura ou a da pele nos seres humanos, não parecerá o resultado de genes indivisíveis e que não se misturam. Se uma pessoa negra e uma branca se casam, seus filhos não serão nem negros e nem brancos: serão intermediários. Isto não significa que os genes envolvidos não sejam partículas. Ocorre apenas que há tantos deles relacionados à cor da pele, cada um tendo um efeito tão pequeno, que parecem se misturar. Até agora falei de memes como se fosse óbvio de que um meme unitário consiste. Mas isto, é claro, está longe de ser óbvio. Eu disse que uma melodia era um meme, mas e uma sinfonia: quantos memes temos aqui? Será cada movimento um meme, cada frase ou melodia, cada compasso, cada acorde, ou o que? Apelo ao mesmo truque lingüístico usado no Capítulo 3. Neste capítulo dividi o "complexo gênico" em unidades genéticas grandes e pequenas, e unidades dentro de outras unidades. O "gene" foi definido não de maneira rígida absoluta, mas como uma unidade de conveniência, um pedaço de cromossomo com fidelidade de cópia suficiente para servir como unidade viável de seleção natural. Se uma única frase da Nona Sinfonia de Beethoven for característica e memorável o suficiente para ser abstraída do contexto de toda a sinfonia e utilizada como um prefixo enlouquece doramente intrometido de uma estação de rádio européia, então, neste sentido, ela merece ser chamada de meme. A propósito, ela diminuiu marcantemente minha capacidade de apreciar a sinfonia original.

Da mesma maneira, quando dizemos que todos os biólogos atualmente acreditam na teoria de Darwin, não queremos dizer que todo biólogo tem, gravada em seu cérebro, uma cópia idêntica das palavras exatas do próprio Charles Darwin. Cada indivíduo tem sua própria maneira de interpretar as idéias de Darwin. Ele provavelmente as aprendeu não das obras de Darwin, mas de autores mais recentes. Muito do que Darwin disse, em detalhe, está errado. Se Darwin lesse este livro, ele dificilmente reconheceria aqui sua teoria original, embora espero que ele gostasse da maneira como apresentei-a. No entanto, apesar de tudo isto, existe alguma coisa, alguma essência do Darwinismo, que está presente na mente de todo indivíduo que entende a teoria. Se assim não fosse, então quase qualquer afirmação a respeito de duas pessoas concordarem entre si não teria sentido. Um "meme de idéia" pode ser definido como uma entidade capaz de ser transmitida de um cérebro para outro. O meme da teoria de Darwin, portanto, é o fundamento essencial da idéia que é compartilhado por todos os cérebros que compreendem-na. As diferenças nas maneiras como as pessoas representam a teoria não são, por definição, parte do meme. Se a teoria de Darwin puder ser subdividida em partes componentes, de tal forma que algumas pessoas acreditam no componente A mas não no componente B, enquanto outras acreditam em B mas não em A, então A e B deveriam ser considerados memes separados. Se quase todas as pessoas que acreditam em A também acreditam em B - se os memes estiverem, usando o termo genético, fortemente "ligados" - então será conveniente juntá-los como um só meme. Prossigamos um pouco mais com a analogia entre memes e genes. Por todo este livro enfatizei que não devemos pensar nos genes como agentes conscientes intencionais. A seleção natural cega, no entanto, faz com que eles se comportem como se fossem intencionais, e tem sido conveniente, para abreviar, referirmo-nos aos genes na linguagem de propósitos. Por exemplo, quando dizemos "os genes estão tentando aumentar seu número nos "fundos" do futuro", o que realmente queremos dizer é que "os genes que se comportam de modo a aumentarem seu número nos "fundos" do futuro tendem a ser os genes cujos efeitos vemos no mundo". Assim como achamos conveniente imaginar os genes como agentes ativos, trabalhando intencionalmente para sua própria sobrevivência, talvez seja conveniente pensar da mesma maneira sobre os memes. Em nenhum dos dois casos devemos nos tornar místicos. Em ambos a idéia de propósito é apenas uma metáfora, mas já vimos que metáfora útil ela é no caso dos genes. Até mesmo usamos palavras como "egoísta" e "implacável" para os genes, tendo plena consciência de que eram apenas um modo de falar. Poderemos, com exatamente o mesmo espírito, procurar memes egoístas ou implacáveis?

Há um problema aqui com relação à natureza da competição. Onde há reprodução sexuada cada gene está competindo especificamente com seus próprios alelos - rivais quanto à mesma fenda cromossômica. Os memes parecem nada ter de equivalente a cromossomos ou a alelos. Suponho que haja um sentido banal pelo qual se pode dizer que muitas idéias têm "opostos". Mas, em geral, os memes assemelham-se às primeiras moléculas replicadoras, flutuando caoticamente livres no caldo primordial, e não aos genes modernos em seus regimentos cromossômicos regularmente pareados. Em que sentido, então, estão os memes competindo entre si? Deveríamos esperar que fossem "egoístas" ou "implacáveis" se não têm alelos? A resposta é que deveríamos, porque há um sentido no qual eles devem engajar-se em um tipo de competição entre si.

Qualquer usuário de um computador digital sabe como são preciosos o tempo e o espaço de armazenamento de memória de um computador. Em muitos centros de computação grandes eles são literalmente avaliados em dinheiro; ou cada usuário poderá receber uma ração de tempo, medida em segundos, e uma ração de espaço, medida em "palavras". Os computadores nos quais os memes vivem são os cérebros humanos. O tempo possivelmente seja um fator limitante mais importante do que espaço de armazenamento; ele é objeto de forte competição. O cérebro humano e o corpo por ele controlado não podem fazer mais do que uma ou algumas coisas de cada vez. Se um meme quiser dominar a atenção de um cérebro humano, ele deve fazê-lo às custas de memes "rivais". Outros artigos pelos quais os memes competem são tempo de rádio e televisão, espaço para anúncios, espaço de jornal e espaço de estantes de biblioteca.

No caso dos genes, vimos no Capítulo 3 que complexos co-adaptados de genes podem se originar no "fundo". Um conjunto grande de genes relacionados ao mimetismo nas borboletas tornou-se fortemente unido no mesmo cromossomo, tão fortemente que pode ser visto como um gene. No Capítulo 5 examinamos a idéia mais sofisticada do conjunto evolutivamente estável de genes. Dentes, garras, vísceras e órgãos dos sentidos mutuamente adequados evoluíram nos "fundos" gênicos dos carnívoros, enquanto que um conjunto estável diferente emergiu dos "fundos" dos herbívoros. Será que alguma coisa semelhante ocorre nos "fundos" de memes? Terá o meme para deus, por exemplo, se associado a outros memes específicos, e será que esta associação auxilia a sobrevivência de cada um dos memes componentes? Talvez pudéssemos considerar uma igreja organizada, com sua arquitetura, rituais, leis, música, arte e tradição escrita como um conjunto co-adaptado estável de memes que se auxiliam mutuamente.

Para mencionar um exemplo específico, um aspecto da doutrina que tem sido eficiente em compelir à obediência religiosa é a ameaça do fogo infernal. Muitas crianças e até mesmo alguns adultos acreditam que sofrerão tormentos horríveis após a morte se não obedecerem as regras dos sacerdotes. Esta é uma técnica particularmente sórdida de persuasão, tendo causado grande angústia psicológica por toda a Idade Média e até mesmo hoje. Mas é altamente eficiente. Quase podemos supor que foi deliberadamente planejada por um clero maquiavélico treinado em técnicas profundas de doutrinação psicológica. No entanto, duvido que os sacerdotes tenham sido tão inteligentes. Mais provavelmente memes inconscientes garantiram sua própria sobrevivência por meio das mesmas qualidades de pseudo-implacabilidade que os genes bem sucedidos exibem. A idéia de fogo infernal é, simplesmente, auto-perpetuadora devido a seu impacto psicológico profundo. Ela ligou-se ao meme para deus porque as duas idéias reforçam-se mutuamente e cada uma ajuda a sobrevivência da outra no "fundo" de memes. Outro membro do complexo religioso de memes é chamado fé; significa confiança cega, na ausência de evidência, ou mesmo diante dela. A história de São Tomé é narrada não para que o admiremos, mas para que possamos admirar, por comparação, os outros apóstolos. Tomé exigiu evidência. Nada pode ser mais letal para certos tipos de memes do que a tendência a procurar evidência. Os outros apóstolos, cuja fé era tão forte que não precisavam de evidência, nos são apresentados como dignos de serem imitados. O meme para a fé cega garante sua própria perpetuação pelo recurso inconsciente simples de desencorajar a indagação racional.

A fé cega pode justificar qualquer coisa. Se um homem acredita em um deus diferente, ou mesmo se ele utiliza um ritual diferente para adorar o mesmo deus, a fé cega pode decretar que ele deve morrer - na cruz, na fogueira, traspassado pela espada de um cruzado, por uma bala numa rua de Beirute ou numa explosão em um bar de Belfast. Os memes para a fé cega possuem seus próprios métodos implacáveis de se propagarem. Isto vale tanto para a fé religiosa cega como para a fé patriótica e política. Os memes e os genes muitas vezes podem se reforçar mutuamente, mas as vezes eles se opõem. O hábito do celibato, por exemplo, supõe-se não ser herdado geneticamente. Um gene para o celibato está fadado a falhar no "fundo", exceto sob condições muito especiais tais como encontramos nos insetos sociais. Assim mesmo, um meme para o celibato pode ser bem sucedido no "fundo" de memes. Suponha, por exemplo, que o sucesso de um meme dependa de quanto tempo as pessoas gastam transmitindo-o ativamente a outras pessoas. Todo tempo gasto em fazer qualquer outra coisa que não tentar transmitir o meme pode ser considerado tempo perdido do ponto de vista do meme. O meme para o celibato é transmitido por sacerdotes aos meninos jovens que ainda não decidiram o que querem fazer de suas vidas. O meio de transmissão é a influência humana de vários tipos, a palavra escrita e falada, o exemplo pessoal e assim por diante. Suponha, para continuar o raciocínio,que o casamento enfraquecesse o poder de um sacerdote de influenciar sua congregação, talvez porque ocupasse grande parte de seu tempo e atenção. Isto, de fato, tem sido proposto como um motivo oficial para a obrigação ao celibato entre padres. Se isto ocorresse, o resultado seria que o meme para o celibato poderia ter maior valor de sobrevivência do que o meme para o casamento. Exatamente o oposto, é claro, ocorreria com um gene para o celibato. Se o sacerdote é uma máquina de sobrevivência para os memes, o celibato será um atributo útil para ser introduzido nele. O celibato é apenas um componente secundário em um grande complexo de memes religiosos que se ajudam mutuamente.

Imagino que os complexos de memes co-adaptados evoluam da mesma maneira como os complexos de genes. A seleção favorece os memes que exploram seu ambiente cultural para vantagem própria. Este ambiente cultural consiste de outros memes que também estão sendo selecionados. O "fundo" de memes, portanto, passa a ter os atributos de um conjunto evolutivamente estável, o qual os novos memes acham difícil invadir.

Tenho sido um pouco negativo com relação aos memes, mas eles têm seu lado alegre também. Quando morremos há duas coisas que podemos deixar atrás de nós; genes e memes. Somos construídos como máquinas gênicas, criados para transmitir nossos genes. Mas este nosso aspecto será esquecido em três gerações. Seu filho, talvez até seu neto, poderão se assemelhar a você, talvez nas características faciais, no talento para a música ou na cor do cabelo. Mas, com a passagem de cada geração, a contribuição de seus genes fica dividida pela metade; não leva muito tempo para atingir proporções desprezíveis. Nossos genes poderão ser imortais, mas a coleção de genes que constitui cada um de nós certamente desintegrar-se-á. A rainha Elizabeth II é descendente direta de Guilherme o Conquistador. No entanto é bastante provável que ela não possua um único gene proveniente do velho rei. Não devemos buscar a imortalidade na reprodução.

Mas, se você contribui para a cultura mundial, se você tem uma boa idéia, compõe uma melodia, inventa uma vela de ignição ou escreve um poema, a idéia poderá sobreviver, intacta, muito tempo após seus genes terem se dissolvido no "fundo" comum. Sócrates poderá ter ou não genes vivos no mundo hoje, como G. C. Williams observou, mas quem se importa com isso? Os complexos de memes de Sócrates, Leonardo, Copérnico e Marconi ainda prosperam.

Não importa quão especulativo seja meu desenvolvimento da teoria dos memes, há um ítem sério que eu gostaria de enfatizar mais uma vez. Quando examinamos a evolução das características culturais e seu valor de sobrevivência, devemos deixar claro a sobrevivência de quem estamos falando. Os biólogos, como vimos, estão acostumados a procurar vantagens ao nível do gene (ou do indivíduo, do grupo, ou da espécie, de acordo com o gosto). O que não levamos em conta anteriormente é que uma característica cultural poderá ter evoluído da maneira como o fez simplesmente porque é vantajoso para ela própria. Não temos que procurar valores biológicos de sobrevivência convencionais de características como religião, música e danças rituais, embora eles também possam estar presentes. Assim que os genes fornecerem às suas máquinas de sobrevivência cérebros capazes de imitação rápida, os memes automaticamente assumirão a responsabilidade. Não temos nem mesmo que postular uma vantagem genética da imitação, embora isso certamente ajudasse. Basta que o cérebro seja capaz de imitação: haverá então a evolução de memes que exploram plenamente a capacidade.

Termino agora o tópico dos novos replicadores e encerro o livro com um lembrete de esperança moderada. Uma característica única do homem, a qual poderá ou não ter evoluído memicamente, é sua capacidade de previsão consciente. Os genes egoístas (e, se você permitir as especulações desse capítulo, os memes também) não têm capacidade de previsão. Eles são replicadores inconscientes e cegos. O fato deles se replicarem, juntamente com certas outras condições, significa, quer se queira quer não, que eles tenderão em direção à evolução de qualidades as quais, no sentido especial deste livro, podem ser chamados de egoístas. Não se pode esperar que um replicador simples, seja ele um gene ou um meme, abra mão de vantagens egoístas a curto prazo, mesmo que lhe fosse vantajoso, a longo prazo, fazê-lo. Vimos isto no capítulo sobre a agressão. Mesmo que a "conspiração de pombos" seja melhor para cada indivíduo isoladamente do que a estratégia evolutivamente estável, a seleção natural favorecerá a EEE. É possível que ainda outra qualidade única do homem seja a capacidade de altruísmo verdadeiro, desinteressado e genuíno. Eu espero que sim, mas não vou discutir o assunto nem especular a respeito de sua possível evolução mêmica. O que estou argumentando agora P que mesmo que olhemos para o lado escuro e assumamos que o homem é fundamentalmente egoísta, nossa capacidade consciente de previsão - nossa capacidade de simular o futuro na imaginação poderia nos salvar dos piores excessos egoístas dos replicadores cegos. Pelo menos temos o equipamento mental para promover nossos interesses egoístas a longo prazo e não simplesmente aqueles a curto prazo. Podemos ver os benefícios a longo prazo de participar de uma "conspiração de pombos" e podemos nos reunir para discutir maneiras de fazer com que a conspiração funcione. Temos o poder de desafiar os genes egoístas de nosso nascimento e, se necessário, os memes egoístas de nossa doutrinação. Podemos até discutir maneiras de cultivar e estimular o altruísmo puro e desinteressado - o que não ocorre na Natureza e que nunca existiu antes em toda história do mundo. Somos construídos como máquinas gênicas e cultivados como máquinas mêmicas, mas temos o poder de nos revoltarmos contra nossos criadores. Somente nós, na Terra, podemos nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas.