frazer

O ESCOPO DA ANTROPOLOGIA SOCIAL - James George Frazer

[...]

Se estou certo em minha definição da Antropologia Social, seu terreno pode ser grosseiramente dividido em dois departamentos, um dos quais abrange os costumes e crenças dos selvagens, enquanto o outro inclui aquelas relíquias desses costumes e crenças tal como sobreviveram no pensamento e nas instituições de povos mais cultos. O primeiro departamento pode ser chamado o estudo da selvageria, e, o outro, o estudo do folclore. Já disse algo sobre a selvageria. Passo agora para o folclore, isto é, para as sobrevivências de idéias e práticas mais primitivas entre povos que, em outros aspectos, ascenderam a planos mais elevados de cultura. Que tais sobrevivências possam ser descobertas em todas as nações civilizadas é algo que dificilmente será contestado por qualquer um agora. Quando lemos, por exemplo, o caso de uma mulher irlandesa assada até a morte por seu marido, pela suspeita de que uma fada má havia roubado a verdadeira esposa e deixado em seu lugar uma criatura malévola,4 ou então o caso de uma mulher inglesa que morreu de tétano porque passou o remédio no prego que a havia ferido, em vez de na própria ferida,s podemos estar certos de que as crenças que vitimaram essas pobres criaturas não foram aprendidas por elas na escola ou na igreja, mas tinham sido transmitidas por ancestrais verdadeiramente selvagens através de muitas gerações de descendentes - civilizados na aparência, embora não na realidade. Crenças e práticas desse tipo são, portanto, corretamente chamadas de superstições, o que significa, literalmente, sobrevivências. É de superstições, no estrito senso da palavra, que trata o segundo departamento da Antropologia Social.

Se perguntarmos como acontece de as superstições continuarem a existir entre um povo que, em geral, alcançou um nível mais elevado de cultura, a resposta deve ser encontrada na natural, universal e inerradicável desigualdade dos homens. Não apenas diferentes raças são diferentemente dotadas no que diz respeito a inteligência, coragem, habilidades e assim por diante, mas, dentro da mesma nação, homens de uma mesma geração diferem enormemente quanto à capacidade e ao valor inatos. Nenhuma doutrina abstrata é mais falsa e pérfida que a da igualdade natural dos homens. É verdade que o legislador tem que tratar os homens como se fossem iguais porque as leis são necessariamente gerais e não podem ser feitas para se ajustar à infinita variedade de casos individuais. Mas não devemos imaginar que, porque são iguais perante a lei, os homens são, portanto, intrinsecamente iguais uns aos outros. A experiência da vida ordinária contradiz suficientemente tão vã imaginação. Na escola e nas universidades, no trabalho e na diversão, na paz e na guerra, as desigualdades mentais e morais dos seres humanos destacam-se por demais conspicuamente para serem ignoradas ou questionadas. Como regra, os homens de mais aguda inteligência e com mais fortes caracteres lideram o resto e dão feitio às formas nas quais, pelo menos na aparência, a sociedade é moldada. Como esses homens são necessariamente poucos em comparação com a multidão que lideram, segue-se que a comunidade é realmente dominada pela vontade de uma minoria esclarecida,6 mesmo em países onde o poder governante está nominalmente investido na maioria numérica. Na realidade, disfarcemo-lo como quisermos, o governo da humanidade é sempre, e em todo lugar, essencialmente .aristocrático. Por mais malabarismos que se faça com a máquina política, é impossível fugir dessa lei da natureza. Como quer que pareça ser liderada, a maioria estúpida, no fim, segue a minoria mais sagaz. Essa é a salvação e o segredo do progresso. A mais elevada inteligência humana controla a mais baixa, assim como a inteligência do homem dá a ele o domínio sobre os animais. Não quero dizer com isso que a direção última da sociedade caiba a seus governantes nominais, seus reis, estadistas, legisladores. Os verdadeiros governantes do homem são os pensadores que fazem avançar o conhecimento; pois, assim como é através de seu conhecimento superior, e não através de maior força, que o homem exerce domínio sobre o resto da criação animal, também entre os próprios homens é o conhecimento que, no longo prazo, dirige e controla as forças da sociedade. Assim, os descobridores de novas verdades são os verdadeiros reis da humanidade, embora sem coroas nem cetros; os monarcas, estadistas e legisladores são apenas ministros que, mais cedo ou mais tarde, se submetem, levando adiante as idéias dessas grandes mentes. Quanto mais estudarmos os mecanismos internos da sociedade e o progresso da civilização, mais claramente perceberemos como ambos são governados pela influência de pensamentos que, surgindo, de início, em umas poucas mentes superiores - não sabemos como ou quando -, gradualmente se espalham até que tenham fermentado toda a massa inerte de uma comunidade ou da humanidade. A origem de tais variações mentais, com toda sua cadeia de conseqüências sociais de longo alcance, é simplesmente tão obscura quanto a origem daquelas variações físicas das quais, se estão certos os biólogos, depende a evolução da espécie e, com ela, a possibilidade de progresso. Talvez a mesma causa desconhecida que determina o primeiro conjunto de variações dê origem também ao outro. Não podemos saber. Tudo que podemos dizer é que, no todo, no conflito de forças em competição, sejam físicas ou mentais, o mais forte finalmente prevalece, o mais apto sobrevive. Na esfera mental, a luta pela existência não é menos feroz e mutuamente destrutiva do que na física, mas, no final, as melhores idéias, que chamamos a verdade, acabam vencendo. A clamorosa oposição com a qual, em sua primeira aparição, elas são usualmente saudadas quando quer que conflitem com velhos preconceitos pode retardar sua vitória final, mas não impedi-la. O costume da multidão é, primeiro,apedrejar, e depois erigir inúteis memoriais a seus maiores benfeitores. Todos os que se propõem a substituir antigos erros e superstições pela verdade e pela razão têm que contar com pedradas em vida e com um monumento de mármore depois da morte.

Fui levado a fazer essas observações pelo desejo de explicar por que superstições de todos os tipos - políticas, morais e religiosas - sobrevivem entre povos que já têm maior capacidade de discernimento. A razão é que as melhores idéias, que estão continuamente se formando nos estratos mais elevados, ainda não penetraram as camadas desde as mais .altas mentes até as mais.baixas. Em geral, essa filtragem é lenta, e, até que as novas noções cheguem ao fundo, se é que um dia chegam, já estão, em geral, obsoletas e superadas por outras que surgiram no topo. Assim é que, se pudéssemos abrir as cabeças e ler os pensamentos de dois homens da mesma geração e do mesmo país, mas nos extremos opostos da escala intelectual, provavelmente encontraríamos suas mentes tão diferentes uma da outra como se pertencessem a duas espécies distintas. A humanidade, como bem se tem dito, avança em escalões, isto é, as colunas marcham não uma ao lado da outra, mas em linhas dispersas, cada uma num grau diferente de atraso com relação ao líder. A imagem descreve bem a diferença não apenas entre povos, mas entre indivíduos do mesmo povo e da mesma geração. Assim como uma nação está continuamente deixando para trás alguns de seus contemporâneos, assim também, dentro da mesma nação, alguns homens estão constantemente ultrapassando seus companheiros, e os que vão à frente na corrida são aqueles que se desfizeram do fardo das superstições que ainda pesam nas costas dos retardatários e constrangem seus passos. Deixando metáforas de lado, as superstições sobrevivem porque, embora choquem os membros mais esclarecidos da comunidade, ainda estão em harmonia com os pensamentos e sentimentos de outros que, apesar de treinados pelos melhores entre eles para ter uma aparência de civilização, permanecem bárbaros ou selvagens em seus corações. É por isso que, por exemplo, as bárbaras punições por alta traição ou bruxaria e as monstruosidades da escravidão foram toleradas e defendidas neste país até os tempos modernos. Tais sobrevivências podem ser divididas em dois tipos, dependendo de serem públicas ou privadas; em outras palavras, dependendo de estarem incorporadas à lei da terra ou de serem praticadas pelos becos·,e cantos, com ou sem a conivência da lei. Os exemplos que acabei de citar pertencem à primeira dessas duas classes. Feiticeiras ainda foram queimadas publicamente e traidores publicamente estripados na Inglaterra não faz muito tempo, e a escravidão sobreviveu como uma instituição legal até mais tarde ainda. A verdadeira natureza de tais superstições públicas tem a tendência de, através de sua própria publicidade, passar sem ser notada, pois, até que sejam finalmente varridas pela onda crescente do progresso, há sempre um número mais que suficiente de pessoas para defendê-las como instituições essenciais ao bem-estar público e sancionadas pelas leis de Deus e do homem.

Ocorre o contrário com aquelas superstições privadas às quais o nome folclore está usualmente limitado. Na sociedade civilizada, as pessoas mais educadas não têm nem mesmo consciência da extensão em que sobrevivem essas relíquias da ignorância selvagem, bem às suas portas. Na verdade, a descoberta de sua ampla prevalência só foi feita no século passado, principalmente através das pesquisas dos irmãos Grimm na Alemanha. Desde então, pesquisas sistemáticas realizadas entre as classes menos educadas da Europa, e especialmente entre os camponeses, revelaram a espantosa, mais que isso, a alarmante verdade de que, em todos os países civilizados, uma grande massa do povo, se não a maioria, ainda está vivendo num estado de selvageria intelectual; que, de fato, a superfície tranqüila da sociedade culta está minada pela superstição. Apenas aqueles cujos estudos os levaram a investigar o tema estão conscientes da profundidade em que o solo sob nossos pés está como que perfurado e corroído por forças invisíveis. Parece que estamos sobre um vulcão que, a qualquer momento, pode se abrir em fumaça e fogo para espalhar ruína e devastação entre os jardins e palácios de antiga cultura, construídos com tanto esforço pelas mãos de muitas gerações. Após olhar para os restos dos templos gregos em Paestum [no sul da Itália] e contrastá-los com a imundície e selvageria do campesinato italiano, Renan disse: "Tremo pela civilização, vendo-a tão limitada, construída sobre bases tão frágeis, apoiando-se sobre tão poucos indivíduos mesmo no país onde é dominante.

Se examinarmos as crenças supersticiosas que são tácita mas firmemente mantidas por muitos de nossos compatriotas, descobriremos, talvez com surpresa, que são precisamente as superstições mais antigas e cruas as que mais tenazmente se agarram à vida, enquanto idéias mais modernas e refinadas, embora também errôneas, logo desaparecem da memória popular. Por exemplo, os altos deuses do Egito e da Babilônia, da Grécia e de Roma estão, há muitas eras, totalmente esquecidos pelo povo, e sobrevivem apenas nos livros dos mais cultos; no entanto, os camponeses, que nunca ouviram falar de Isis e Osíris, de Apolo e Ártemis, de Júpiter e Juno, mantêm, até hoje, uma firme crença em feiticeiras e fadas, em fantasmas e duendes, essas criaturas menores da fantasia mítica nas quais seus pais acreditavam desde muito antes de as grandes deidades do mundo antigo terem sido sequer concebidas e nas quais, pelo que tudo indica, seus descendentes continuarão a acreditar até muito depois de as grandes deidades da atualidade terem seguido o caminho de todas as suas predecessoras. A razão de as formas mais elevadas de superstição ou religião (pois a religião de uma geração tende a tornar-se a superstição da próxima) serem menos permanentes que as mais baixas é simplesmente que as crenças mais elevadas, sendo uma criação de inteligência superior, não encontram onde se fixar nas mentes do vulgo, que nominalmente as professa por algum tempo em conformidade Com a vontade de seus superiores, mas prontamente as repele e esquece tão logo saiam de moda entre as classes educadas. Mas, enquanto rejeita, sem vacilar ou sem fazer esforço, artigos de fé que estavam apenas superficialmente impressos em Suas mentes pelo peso da opinião culta, a multidão ignorante e insensata agarra-se, com sombria determinação, a crenças muito mais toscas que realmente respondem à textura mais grosseira de seus intelectos subdesenvolvidos. Assim, enquanto o credo professado pela minoria esclarecida está constantemente mudando sob a influência da reflexão e da investigação, o credo real, embora não declarado, da massa da humanidade parece ser quase estacionário, e a razão por que se altera tão pouco é que, na maioria dos homens, sejam eles selvagens ou seres aparentemente civilizados, o progresso intelectual, de tão lento, é quase imperceptível. A superfície da sociedade, como a do mar, está em perpétuo movimento; suas profundezas, como as do oceano, permanecem quase imóveis.

[...]

Fonte:

CELSO CASTRO (Org.) Evolucionismo Cultural-Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. Pgs. 112-119.