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A PERIGOSA IDÉIA DE DARWIN

Daniel Dennet

CAP. 2 - NASCE UMA IDÉIA

1. O QUE HÁ DE TÃO ESPECIAL NAS ESPÉCIES?

Charles Darwin não pretendia preparar um antídoto para a paralisia conceitual de John Locke, ou explicar a grande alternativa cosmológica que quase frustrou Hume. Uma vez tendo lhe ocorrido a grande idéia, Darwin precebeu que sem dúvida ela teria essas conseqüências real­mente revolucionárias, mas no início ele não estava tentando explicar o significado da vida, ou mesmo sua origem. Seu objetivo era um pouco mais modesto: ele queria explicar a origem das espécies.

Na época de Darwin, os naturalistas haviam acumulado montanhas de fatos promissores sobre coisas vivas e conseguido sistematizá-los em várias dimensões. Duas grandes fontes de espanto surgiram desse trabalho (Mayr 1982). Primeiro, havia todas as descobertas sobre as adaptações dos organismos que tinham fascinado o Cleantes de Hume: "Todos esses vários mecanismos, e até suas peças mínimas, ajustam-se uns aos outros com uma exatidão que deixa extasiados todos os homens que já os contemplaram"(Pt. Il). Segundo, havia a diversidade prolífica das coisas vivas - literalmente milhões de tipos diferentes de plantas e animais. Por que tantos?

Essa diversidade de desenho dos organismos era tão surpreenden­te, em certos aspectos, quanto a sua excelência, e ainda mais espantosos eram os padrões discerníveis nessa diversidade. Podiam ser observados milhares de gradações e variações entre os organismos, mas havia também enormes lacunas entre eles. Havia pássaros e mamíferos que nada­vam como peixes, mas nenhum tinha guelras; havia cães de muitos tamanhos e formas, mas nenhum gatocachorro ou vacacachorro, ou cães emplumados. Os padrões pediam uma classificação, e na época de Darwin o trabalho dos grandes taxonomistas (que começaram adotando e corrigindo as antigas classificações de Aristóteles) havia criado uma hierarquia detalhada de dois reinos (plantas e animais), divididos em filos, que se dividiam em classes, que se dividiam em ordens, que se dividiam em farmílias, que se dividiam em gêneros que se dividiam em espécies. As espécies também podiam se subdividir, é claro, em subespécies ou variedades - os cocker spaniel e os bassês são variedades diferentes de uma única espécie: cães, ou Canis familiaris.

Quantos tipos diferentes de organismos havia? Como dois organismos não são exatamente iguais - nem mesmo os gêmeos idênticos - havia tantos tipos diferentes de organismos quanto o número de organismos existentes, mas parecia óbvio que as diferenças podiam ser graduais, classificadas em menores e maiores, ou acidentais e essenciais. Assim Aristóteles havia ensinado, e esta foi uma pequena partícula de filosofia que permeou o pensamento de quase todo mundo, de cardeais e químicos a verdureiros ambulantes. Todas as coisas - não só as coisas vivas - possuíam dois tipos de propriedade: propriedades essenciais, sem as quais não seriam o tipo especial de coisa que eram, e as propriedades acidentais, que estavam livres para variar dentro do tipo. Uma pepita de ouro podia mudar de forma ad lib e continuar sendo ouro; o que a fazia ser ouro eram suas propriedades essenciais, não as acidentais. A cada tipo combinava-se uma essência. Essências eram definitivas, e portanto eternas, imutáveis e ou-tudo-ou-nada. Uma coisa não podia ser mais ou menos prata, quase ouro ou semimamífero.

Aristóteles desenvolvera sua teoria das essências como uma forma de melhorar a teoria das Idéias de Platão, segundo a qual todas as coisas terrenas são uma espécie de cópia ou reflexo imperfeito de um exemplo ideal ou Forma que existia eternamente no reino platônico das Idéias, governado por Deus. Esse céu platônico de abstrações não era visível, é claro, mas estava acessível à Mente por meio do pensamento dedutivo. Os geômetras, por exemplo, estudavam (e provaram com teoremas) as Formas do círculo e do triângulo. Como havia igualmente Formas para a águia e o elefante, também valia a pena tentar fazer uma ciência dedutiva da natureza. Mas assim como nenhum círculo terreno, por mais cuidado que se tivesse ao traçá-lo com um compasso, ou colocando-o no torno de um oleiro, podia ser realmente um dos círculos perfeitos da geometria euclidiana, tampouco nenhuma águia de verdade podia manifestar com perfeição a essência da qualidade águia, embora todas as águias se esforçassem para tal. Tudo que existia possuía uma especificação divina, que captava sua essência. A taxonomia das coisas vivas que Darwin herdou era portanto uma descendente direta, via Aristóteles, do essencialismo de Platão. De fato, a palavra "espécie" foi em certo momento a tradução padrão do termo grego usado por Platão para Forma ou Idéia, eidos.

Nós, da era pós-Darwin, estamos tão acostumados a pensar em termos históricos sobre o desenvolvimento das formas de vida que é preciso um esforço especial para nos lembrarmos de que, na época de Darwin, as espécies de organismos eram consideradas tão eternas quanto os triângulos e círculos perfeitos da geometria de Euclides. Seus membros individuais iam e vinham, mas as espécies permaneciam inalteradas e inalteráveis. Isso fazia parte de uma herança filosófica, mas não era um dogma infundado ou mal-intencionado. Os triunfos da ciência moderna, desde Copérnico e Kepler, Descartes e Newton, tinham todos envolvido a aplicação da matemática exata ao mundo material, e isso aparentemente exige desviar a atenção da impureza das propriedades acidentais das coisas para se chegar às suas essências matemáticas secretas. A cor ou a forma de uma coisa não fazem diferença quando se trata de obedecer à lei do inverso dos quadrados da atração gravitacional de Newton. Tudo que importa é a sua massa. Similarmente, a alquimia foi sucedida pela química quando os químicos concordaram quanto ao seu credo fundamental: havia um número finito de elementos básicos, imutáveis, tais como carbono, oxigênio, hidrogênio e ferro. Estes podiam ser misturados e unidos em infindáveis combinações ao longo do tempo, mas os blocos de construção fundamentais eram identificáveis por suas propriedades essenciais imutáveis.

A doutrina das essências parecia ser um poderoso organizador dos fenômenos do mundo em muitas áreas, mas era válida para todos os esquemas imagináveis de classificação? Havia diferenças essenciais entre morros e montanhas, neve e gelo, mansões e palácios, violinos e violas? John Locke e outros haviam desenvolvido doutrinas elaboradas que distinguiam as essências reais das meramente nominais; estas últimas eram simplesmente parasitas dos nomes ou palavras que escolhêssemos usar. Era possível estabelecer qualquer esquema de classificação que se desejasse; por exemplo, um Kennel Club poderia colocar em cotação uma lista que definisse as condições necessárias para que um cachorro fosse um Spaniel Nossotipo legítimo, mas isso seria uma mera essência nominal, não uma essência real. Essências reais podem ser descobertas pela investigação científica na natureza interna das coisas, onde essência e acidente podem ser distinguidos de acordo com princípios. Era difícil dizer exatamente quais eram os princípios em princípio, mas com a química e a física se integrando tão elegantemente, parecia lógico que teria de haver marcas definindo as verdadeiras essências das coisas vivas também.

Segundo a perspectiva dessa visão deliciosamente clara e sistemática da hierarquia das coisas vivas, havia uma quantidade considerável de fatos estranhos e intrigantes. Essas aparentes exceções eram quase tão perturbadoras para os naturalistas quanto teria sido, para um geômetra, a descoberta de um triângulo cujos ângulos não somassem 180 graus. Embora muitos limites taxonômicos fossem nítidos e aparentemente não admitissem exceções, havia toda sorte de criaturas intermediárias de classificação difícil, que pareciam ter porções de mais de uma essência. Havia também os curiosos padrões de características compartilhadas e não compartilhadas de ordem superior: por que pássaros e peixes tinham em comum espinhas dorsais e não penas, e por que criaturas com olhos ou carnívoras não poderiam ser elementos classificadores tão importantes quanto criatura de sangue quente? Embora os amplos contornos e a maioria das regras específicas da taxonomia fossem incontestáveis (e permanecem assim até hoje, é claro), os casos problemáticos despertavam acaloradas controvérsias. Eram todos estes lagartos membros da mesma espécie, ou de várias espécies diferentes? Que princípio de classificação deveria "valer"? Na famosa imagem de Platão, que sistema "esculpiu a natureza em suas articulações"?

Antes de Darwin, essas controvérsias eram bastante mal formuladas, e não podiam produzir uma resposta estável e bem-intencionada porque não havia uma teoria subjacente que dissesse por que um esquema de classificação poderia colocar no lugar as articulações - do jeito como as coisas realmente eram. Hoje em dia, as livrarias enfrentam o mesmo tipo de problema mal formulado. De que forma as categorias a seguir deveriam ser reciprocamente organizadas: best-sellers, ficção científica, terror, jardinagem, biografias, romances, coleções, esportes e livros ilustrados? Se terror é um gênero de ficção, então histórias reais de terror representam um problema. Todos os romances são ficção? Neste caso o livreiro não pode honrar a própria descrição de Truman Capote, que diz que A sangue-frio (1965) é um romance de não-ficção, mas o livro não fica confortável entre as biografias nem entre os livros de história. Em que seção da livraria deveria ficar o livro que você está lendo? Obviamente, não existe uma Maneira Certa de separar os livros em categorias - nessa área só vamos encontrar essências nominais. Muitos naturalistas, entretanto, estavam convencidos, com base em princípios gerais, de que era possível encontrar essências reais entre as categorias do seu Sistema Natural de coisas vivas. Como disse Darwin, "Eles acreditam que isso revela o projeto do Criador; mas a não ser que se especifique ordem no tempo ou no espaço, ou o que mais se entenda por projeto do Criador, parece-me que nada é acrescentado ao nosso conhecimento" (Origem, p. 413).

Às vezes os problemas da ciência são facilitados acrescentando-se complicações. O desenvolvimento da geologia e a descoberta de fósseis de espécies reconhecidamente extintas deram aos taxonomistas mais curiosidades com que se confundir, mas essas curiosidades foram também as próprias peças que permitiram a Darwin, trabalhando junto com centenas de outros cientistas, descobrir a chave para a solução do quebra-cabeça: as espécies não eram eternas e imutáveis; elas evoluíram ao longo dos tempos. Ao contrário dos átomos de carbono, que, pelo que se sabia, estavam ali desde sempre, exatamente da mesma forma que exibiam então, as espécies nasciam, podiam mudar com o tempo e sucessivamente gerar novas espécies. Essa idéia não era nova; muitas versões haviam sido seriamente discutidas, desde a Grécia antiga. Mas havia um poderoso preconceito platônico a esse respeito; essências eram imutáveis, uma coisa não podia mudar sua essência, e novas essências não podiam nascer - exceto, é claro, por ordem de Deus em episódios de Criação Especial. Répteis não podiam se transformar em pássaros, assim como o cobre não podia se transformar em ouro. Não é fácil simpatizar com essa convicção hoje, mas pode-se fazer um esforço com a ajuda da imaginação: pense em qual seria sua atitude em relação a uma teoria que pretendesse mostrar que o número 7 um dia já foi um número par, há muito, muito tempo, que aos poucos adquirira sua qualidade de número ímpar por um arranjo em que tivessem sido trocadas algumas propriedades com os ancestrais do número 10 (que um dia fora um número primo). Totalmente absurda, é claro. Inconcebível. Darwin sabia que havia uma atitude paralela profundamente arraigada em seus contemporâneos, e que ele teria de se esforçar muito para vencê-la. Na verdade, ele de certa forma reconhecia que as autoridades mais velhas de sua época tenderiam a ser imutáveis como as espécies em que acreditavam. Assim, na conclusão de seu livro, ele chegou a suplicar o apoio dos seus leitores mais jovens: "Quem for levado a acreditar que as espécies são mutáveis faria bem expressando conscientemente sua convicção, pois só assim a carga de preconceitos que pesa sobre este assunto poderá ser removida" (Origem, p. 482).

Ainda hoje a derrota do essencialismo provocada por Darwin não está de todo assimilada. Por exemplo, discute-se muito entre os filósofos a respeito de "tipos naturais", um termo antigo que o filósofo W.V.O. Quine (1969) ressuscitou com bastante cautela para uso limitado ao distinguir entre as boas e as más categorias científicas. Mas nas obras de outros filósofos, "tipo natural" é com freqüência a pele de cordeiro para o lobo da essência real. O impulso essencialista ainda existe entre nós, e nem sempre por más razões. A ciência aspira a desarticular a natureza, e freqüentemente parece que precisamos de essências, ou algo como essências, para fazer esse trabalho. Neste ponto os dois grandes reinos do pensamento filosófico, o platônico e o aristotélico, estão de acordo. Mas a mutação darwiniana, que de início parecia ser apenas uma nova maneira de pensar sobre espécies em biologia, pode se estender a outros fenômenos e disciplinas, como veremos. Na biologia existem problemas persistentes, tanto internos quanto externos, que prontamente se desfazem assim que adotamos a perspectiva de Darwin sobre o que faz uma coisa ser o tipo de coisa que é, mas a resistência tradicional à idéia permanece.