teseberkeley2.1-distancia

II.1 - Distância

Ao tratar do problema da percepção da distância Berkeley começa admitindo como justas

duas teses correntes da óptica geométrica. A primeira delas afirma que a distância

propriamente dita não é percebida pela visão. No modelo geométrico, a cada ponto da retina

corresponde um raio de luz que é representado por uma linha reta ligando este ponto ao

corpo do qual ele se originou ou foi refletido. Pelo fato mesmo de esta linha ser reta, uma

avaliação da distância a que se encontra sua origem não pode ser feita a partir de dados

simplesmente visuais. (25) A segunda tese geométrica que Berkeley aceita é aquela que

afirma que a estimativa da distância dos objetos mais distantes depende não só da visão

imediata mas também da comparação dos tamanhos aparentes em diversos momentos.

Assim, se um objeto está situado atrás de outros objetos que sei por experiência estarem à

certa distância, ele será por mim julgado como estando a uma distância ainda maior. Se vejo,

por exemplo, uma casa do outro lado de um campo de futebol, sei que a distância entre ela e

meu corpo é maior do que aquela existente entre meu corpo e a extremidade daquele campo

cuja extensão eu conheço por experiência (sei quantos passos devo dar para percorrer sua

extensão). (26) Depois, posso ainda comparar os tamanhos relativos e a distinção da imagem

percebida em diversos momentos para avaliar a distância do objeto que a origina: se um

objeto que quando próximo aparece com determinado tamanho e distinção, em outro

momento é visto com um tamanho menor e menos distintamente, concluo que agora ele está

mais distante. Por exemplo: vi de perto uma casa, sei que ela possui determinado tamanho (a

toquei, caminhei ao seu redor). Em seu jardim há um aviso: "Cuidado, cão bravo!". Se esta

mesma casa me aparece com a metade do tamanho visual que tinha quando eu a vi de perto

ou se não consigo mais ler as palavras do aviso, concluo que ela está mais distante. (27)

No entanto, Berkeley não aceita as soluções da óptica geométrica quando se trata da

estimativa da distância dos objetos situados a uma pequena distância. A primeira destas

soluções leva em conta o uso dos dois olhos: quando um objeto está situado à uma distância

relativamente pequena, é possível estabelecer entre seu tamanho e o espaço que separa os

dois olhos uma determinada relação proporcional. Por exemplo, se uma caneta está um

metro à minha frente, a convergência entre meus dois olhos será diferente daquela que será

requerida para bem perceber uma caneta situada a três metros. Diz a óptica geométrica que o

tamanho do ângulo formado pelas linhas que ligam cada um dos olhos ao objeto é

proporcional à distância em que se encontra este objeto: se o ângulo é maior, o objeto está

mais próximo; se o ângulo é menor, o objeto está mais distante. A segunda solução

geométrica recusada afirma que podemos estimar a distância dos objetos próximos

considerando o tamanho do ângulo formado pelos raios de luz que partem de um ponto e

incidem sobre toda a extensão da pupila de cada um dos olhos. Diz a óptica geométrica que a

mesma relação proporcional indicada acima pode ser aqui aplicada: do maior ou menor ângulo

formado por estas linhas tiramos conclusões ("geometria natural") sobre a maior ou

menor proximidade do objeto em questão. (28)

A diferença essencial entre a explicação geométrica da percepção da distância dos objetos

próximos e da percepção da distância dos objetos distantes é que no primeiro caso entra em

jogo apenas uma relação entre experiências, por definição contingentes, enquanto que a

variação do tamanho de ângulos é considerada uma relação necessária. Berkeley recusa esta

última explicação. É inegável que as idéias da visão possuem um papel importante como

meios para a percepção da distância, porém elas não são suficientes. As linhas e ângulos

utilizadas pela geometria podem ter uma função prática importante para a ciência porém não

se pode inferir da eficácia instrumental deste modelo a necessidade do espaço externo e

independente que esta teoria pressupõe. O desafio de Berkeley é explicar tudo que a óptica

geométrica explicava (e até resolver os problemas que esta não resolvia) sem lançar mão

destes recursos.

O que nos é dado na percepção são apenas idéias. Porém o mundo não nos aparece como um

mosaico. As idéias estão sempre em relação. A partir da experiência repetida que temos desta

relações fazemos inferências das idéias significantes para aquelas que a elas normalmente se

seguem, das idéias que sugerem para as idéias sugeridas. Por exemplo, da cor vermelha que

percebemos na face de alguém em situação desconfortável inferimos a idéia de "vergonha".

A partir da idéia visual imediata "vermelho" em um certo contexto (uma face, em uma dada

situação) inferimos uma idéia que não é dada na percepção direta. Da mesma forma a

distância, não sendo uma idéia imediatamente percebida, é uma idéia mediata que a

experiência nos ensinou ser regularmente sugerida por determinadas idéias imediatas. Assim

Berkeley pode explicar a percepção do espaço considerando apenas idéias e relações

contingentes entre idéias, economizando o uso das linhas e ângulos da geometria que os

geômetras não só utilizam como instrumentos de conhecimento mas que também projetam

como elementos constituintes da própria realidade.

Para se explicar a percepção dos objetos mais próximos é preciso, portanto, que sejam

identificadas idéias imediatas que sirvam de intermediárias à percepção da idéia mediata

"pequena distância". Berkeley indica três espécies de tais idéias. Em primeiro lugar, ao

aproximar ou afastar um objeto próximo modificamos as posições de ambos os olhos para

que as pupilas convirjam em sua direção. Temos uma sensação imediata ("tátil") deste

movimento convergente ou divergente dos globos oculares e a experiência passada nos

permite avaliar a variação da distância a partir das variações percebidas nestas idéias. Em

segundo lugar, considerando agora apenas um olho, percebemos que um objeto perde

progressivamente sua nitidez ao ser aproximado aquém de um certo limite. Sendo esta

relação constante, a idéia direta de maior ou menor nitidez é outro meio pelo qual temos

acesso à idéia mediata de distância. Em terceiro lugar, ao aproximarmos muito um objeto de

um olho precisamos fazer um certo esforço para manter o seu foco, contraindo o globo

ocular. À esta sensação crescente de esforço relacionamos regularmente uma maior ou menor

distância do objeto. Com isso, as explicações geométricas que recorriam a cálculos sobre

linhas e ângulos podem dar lugar a um modelo explicativo que se limita à consideração de

relações constante entre idéias de diferentes sentidos, sendo as primeiras imediatas e as

últimas mediatas ou indiretas porque dependentes da ocorrência prévia daquelas. Berkeley

qualifica esta relação como sendo da ordem da "sugestão", da "antecipação", ou, ainda, da

"significação".

Berkeley resolverá com seu novo modelo teórico um quebra-cabeças até então sem solução

pelos procedimentos geométricos tradicionais, o assim chamado "problema de Barrow".

Pelas leis da óptica geométrica, o tamanho dos ângulos formados pelos raios que emanam de

um objeto e incidem sobre a pupila é proporcional à distância daquele ponto: quanto maior é

a divergência entre estes raios, menor é a distância do ponto em relação ao olho e vice-versa.

Ao olharmos um objeto através de uma lente biconvexa (uma lente de aumento), a direção

dos raios se invertem: deixam de ser divergentes e passam a ser convergentes. Para o óptico

geométrico isto significa que o objeto deve aparecer a uma distância ainda maior do que a

indicada pela menor divergência possível, quando os raios são quase paralelos. Mas na

prática não é isto o que acontece: o objeto não aparece nunca mais distante e sim mais

próximo, numa relação proporcional contrária à esperada: quanto maior é a convergência,

mais o objeto parece próximo. Isto é, se o olho está muito próximo da lente biconvexa, o

objeto aparece mais ou menos em sua distância normal; ao afastarmos progressivamente o

olho da lente, aumentando assim a convergência dos raios, o objeto parece se aproximar. De

um determinado ponto em diante a imagem torna-se completamente indiscernível. O que

ocorre, diz Berkeley, é que ao afastarmos o olho da lente a imagem torna-se cada vez mais

confusa. (29) Já vimos que uma das idéias imediatas por meio das quais percebemos as

distâncias mais próximas é o grau de confusão da imagem de um objeto muito próximo. Isto

ocorre porque a partir de certa distância o olho não consegue mais fazer convergir

adequadamente os raios, e quanto mais aproximamos o objeto, mais para trás da retina os

raios se encontram. Ao vermos um objeto através da lente, estabelecemos esta mesma relação

proporcional, que a experiência nos ensinou ser constante, entre o crescente grau de confusão

da imagem e uma distância cada vez menor. Ao nos afastarmos da lente a imagem se torna

cada vez mais confusa e com isso sua distância aparente diminui. Isto ocorre porque quando

o objeto é visto através de uma lente os raios se encontram antes e não depois da retina. A

crescente confusão da imagem continua sendo percebida como uma idéia imediata e

desempenhando seu papel de mediação para a percepção da distância. Apesar de agora a

relação estar invertida (aumento da convergência e não da divergência) continuamos a ter a

mesma idéia imediata de aumento da confusão e continuamos a ver este aumento de confusão

como índice de uma diminuição da distância, pois foi isto que a experiência sempre nos

ensinou. Ocorre aqui algo semelhante, diz Berkeley voltando à analogia idéias/palavras, ao

que ocorreria se alguém nos falasse utilizando palavras familiares mas com sentidos

invertidos: seu discurso nos pareceria coerente, mas não compreenderíamos o que ele

pretendia nos dizer. Por exemplo, se alguém quisesse nos falar do "amanhecer" usando as

palavras "claro" para significar o escuro e "escuro" para significar o claro, receberíamos de

forma equivocada sua mensagem: a passagem do "mais escuro" para o "menos escuro" seria

compreendida como o amanhecer, quando o que ele pretendia significar era na verdade o anoitecer.

O fato de a mesma variação de foco na imagem imediata significar coisas opostas segundo

olhemos diretamente ou através de uma lente revela as limitações do método geométrico. As

teorias geométricas da visão fundam sua análises em uma causalidade necessária e

unidirecional que vai da causa ao efeito. Esta rigidez as torna incapazes de dar conta

satisfatoriamente do Problema de Barrow, onde estas relações se invertem. A convergência é

interpretada como uma continuidade da divergência e com isso as previsões feitas pela teoria

não são jamais confirmadas. O approche "significante" de Berkeley elimina todo recurso a

relações causais necessárias. Com isso a teoria ganha em maleabilidade e flexibilidade, pois

a relação de significação entre vários signos pode se dar em uma variedade de combinações

anoitecer.

O fato de a mesma variação de foco na imagem imediata significar coisas opostas segundo

olhemos diretamente ou através de uma lente revela as limitações do método geométrico. As

teorias geométricas da visão fundam sua análises em uma causalidade necessária e

unidirecional que vai da causa ao efeito. Esta rigidez as torna incapazes de dar conta

satisfatoriamente do Problema de Barrow, onde estas relações se invertem. A convergência é

interpretada como uma continuidade da divergência e com isso as previsões feitas pela teoria

não são jamais confirmadas. O approche "significante" de Berkeley elimina todo recurso a

relações causais necessárias. Com isso a teoria ganha em maleabilidade e flexibilidade, pois

a relação de significação entre vários signos pode se dar em uma variedade de combinações

muito mais rica do que a relação dual estrita causa - efeito. No paradigma dualista, ainda que

a um efeito possam concorrer múltiplas causas e uma única causa possa produzir diferentes

efeitos, esta relação não pode ser invertida: o efeito não pode ser causa daquilo que o

causou. Já as idéias enquanto signos podem ser tanto significantes quanto significados: se

com os olhos fechados sinto o fogo me queimar sei que abrindo os olhos verei o fogo; se

vejo o fogo, sei que se dele me aproximar seu calor me ferirá.

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