Violão Preparado
VIOLÃO PREPARADO
Everaldo Skrock
Trabalho apresentado no I Simpósio Acadêmico de Violão da Embap
de 1 a 6 de outubro de 2007
RESUMO: Os procedimentos de preparação do violão decorrem do trabalho pioneiro
de John Cage na criação do piano preparado. Uma análise da especificidade e
significação histórica de ambos previne a confusão que uma mesma denominação
pode gerar em relação aos valores estéticos próprios de cada um deles.
"Minha música favorita é aquela que ainda não ouvi."
John Cage
Em 1940 John Cage recebe de Syvilla Fort a encomenda da música para sua
peça coreográfica Bacchanale, na Cornish School, Nova Iorque. Cage vinha de uma
temporada de bem-sucedidas turnês pela costa oeste dos Estados Unidos com sua
primeira grande invenção musical: o grupo de percussão erudita. Dado o caráter
africano da peça a ser musicada, Cage naturalmente pensa em utilizar instrumentos
de percussão para o acompanhamento, porém seu grupo estava disperso, a
parafernália percussiva estava em outra cidade e, o mais grave, só se dispunha de
um pequeno espaço para a performance, estando ali disponível apenas um piano.
Cage havia lido o "New Musical Ressources", de Henry Cowell, onde este teoriza
sobre a possibilidade não só de realizar clusters e tocar as cordas do piano com as mãos
mas também sobre a técnica de se introduzir objetos e materiais entre elas visando a produção de novos sons. A música para Bacchanale se tornaria a peça inaugural de uma nova e fecunda fase de John Cage como compositor para "piano preparado", expressão que se consagraria desde então.
A "preparação" é uma das maneiras de se explorar possibilidades de produção
de sons diferentes daqueles previstos pelo uso ortodoxo de um instrumento ou mesmo
da voz. Estas técnicas ganham importância no contexto da música experimental
contemporânea. Apesar de estarem ambos subsumidos, na linguagem comum, sob o
mesmo conceito de "preparação", o violão preparado e o piano preparado respondem
a necessidades musicais distintas, têm efeitos simbólicos diferentes e portanto é
natural que lancem mão de diferentes procedimentos. Estes são fundamentalmente de
dois tipos: a busca de novos timbres e sonoridades ou a superação das limitações
impostas pelo caráter temperamento do instrumento, levando à exploração do
universo do microtonalismo.
John Cage privilegiou o primeiro deles, nada deixando ao acaso: o tipo de
material, o tamanho dos objetos utilizados (pedaços de couro, borracha, parafuso, etc)
e o local exato de sua colocação entre as cordas do piano são descritos com rigor. A
partitura - de formato tradicional - será constituída por um número limitado de notas,
na maioria das vezes mesclando as preparadas com outras não-preparadas. Harry
Partch e Terry Ryle, pioneiros do violão preparado nos Estados Unidos, e Walter
Smetak no Brasil, procuraram sobretudo modificar a própria construção original de
seus instrumentos tornando-os aptos a produzir intervalos justos segundo diversas
afinação e escalas.
Os instrumentos musicais nascem e evoluem de forma não muito diferente da
dos outros objetos da cultura material: respondem a uma necessidade - prática ou
estética - e vão sendo modificados de modo a melhor corresponder a elas. A
linguagem, em sua origem, responde também a necessidades práticas. A nomeação
adquire maior eficácia na medida em que fixa em uma única denominação um grande
número de objetos, semelhantes em alguns aspectos mas nunca idênticos. Instrumentos
musicais ligeiramente diferentes, representantes de diferentes momentos
de uma evolução contínua, recebem o mesmo nome geral, assim como a expressão
"preparação" é utilizada para se nomear procedimentos que, de acordo com os
instrumentos em questão, possuem entre si alguma semelhança de família mas que
podem ter sentidos muito distintos.
A evolução da música ocidental fez da assimilação pela orquestra um critério
para uma espécie de canonização dos instrumentos musicais: aqueles que dela não
participavam eram relegados a uma categoria inferior. Neste sentido, preparar um
piano é conferir a este instrumento conotações que contestam ou, no mínimo, ironizam
este estado de coisas. É um procedimento iconoclasta, de dessacralização e destruição
da aura daquele instrumento que a tradição ocidental refinou, temperou e elegeu como
o mais nobre entre os instrumentos "clássicos".
Não é por acaso, portanto, o fato de ter sido um piano o único instrumento
disponível para Cage na ocasião que descrevemos acima: se só se pode dispor de um
instrumento, que este seja um piano! Quando preparado, o piano permite a um só
executante produzir tanto os sons do piano clássico quanto a infinidade de timbres dos
instrumentos de percussão. Compor para piano preparado é colocar em pauta a
complexa relação entre estes diferentes mundos. Já o violão é um instrumento que,
ao contrário do piano, só foi assimilado pela orquestra muito recentemente. Sua
preparação comunica algo distinto, portanto, da preparação do piano. Uma
comparação criteriosa entre o sentido estético mais amplo dos procedimentos de
preparação do piano e do violão, assim como de outras famílias de instrumentos
musicais, é um trabalho ainda a ser realizado.
Referências Bibliográficas
CAGE, John. How the Piano Came to Be Prepared in Empty Words. 1a Ed. Middletown: Wesleyan University Press, 1978.
COWELL, Henry. New Musical Resources. 7a Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
NYMAN, Michael. Experimental Music: Cage and Beyond. 5a Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
PARTCH, Harry. Genesis of a Music: An Account of a Creative Work, Its Roots and Its
Fulfillments. 1a Ed. New York: Da Capo Press, 1974.