ENSAIO PARA UMA NOVA TEORIA DA VISÃO1
George Berkeley
Tradução: Everaldo Skrock
01. Meu objetivo é mostrar o modo como percebemos pela visão a
distância, o tamanho e posição dos objetos. E também considerar a di-
ferença existente entre as ideias da visão e do tato e se há alguma ideia
comum a estes dois sentidos.
02. E penso que seja por todos aceito que a distância, imediatamen-
te e em si mesma, não pode ser percebida. Pois sendo a distância uma
linha que vai diretamente ao fundo do olho, ela projeta apenas um ponto
no fundo do mesmo, ponto este que permanece invariavelmente o mes-
mo, sejam as distâncias mais longas ou mais curtas.
41. [...] um homem nascido cego, passando a ver, não teria ini-
cialmente ideia de distância pela visão; o sol e as estrelas, os mais remo-
tos objetos, assim como os mais próximos, a ele pareceriam estar todos
em seu olho, ou melhor dizendo, em sua mente. Os objetos introduzidos
pela visão lhe pareceriam ser (como o são na verdade) nada mais do que
um novo conjunto de pensamentos ou sensações, cada um deles sentido
como estando tão próximo quanto as percepções de dor ou prazer, ou
as paixões mais íntimas de sua alma. Pois nosso julgamento de objetos
percebidos pela visão como estando à distância, ou fora da mente, deve-
se inteiramente ao efeito da experiência, que ainda não poderia ter sido
adquirida alguém nestas circunstâncias.
42. As coisas se passariam de outra forma se, de acordo com a
suposição mais aceita, o homem julga a distância pelo ângulo dos eixos
ópticos, exatamente como alguém no escuro ou um homem cego o faria
a partir do ângulo formado por dois bastões que segurasse, um em cada
mão. Pois se isto fosse verdade, seguir-se-ia que alguém cego desde o
nascimento e que recebesse a visão não precisaria de nenhuma nova ex-
periência para perceber a distância com a vista. [...]
43. Talvez após um uma investigação rigorosa cheguemos à con-
clusão de que mesmo aqueles que, tendo desde seu nascimento crescido
no hábito contínuo de ver, estejam irremediavelmente afetados pelo pre-
juízo inverso, ou seja, pensando que o que veem está à distância deles.
Pois neste momento parece ser em geral aceito por todos aqueles que
pensaram sobre o assunto, que as cores, que são os objetos próprios e
imediatos da visão, não estão fora da mente. Mas então – dirá alguém
– pela visão temos também as ideias de extensão, figura e movimento,
podendo todas elas ser consideradas como estando fora e à alguma dis-
tância da mente, ao contrário da cor. Em resposta a isto eu apelo à expe-
riência de qualquer homem e pergunto se a extensão visível de qualquer
objeto não aparece tão próximo deles quanto a cor daquele objeto e, além
disso, se não parecem estar eles ambos no mesmo lugar. Não é a extensão
que vemos colorida? É possível para nós, ainda que em pensamento, se-
parar e abstrair a cor da extensão? Ora, onde quer que esteja a extensão,
certamente ali estará também a figura e o movimento. [...]
44. Mas para uma explicação mais completa deste ponto, e para
mostrar que os objetos imediatos da visão não são como ideias ou seme-
lhanças de coisas situadas à distância, é preciso que olhemos mais de per-
to o problema e observemos cuidadosamente o que se quer significar, no
discurso comum, quando se diz que o que se vê está à distância. Suponha,
por exemplo, que olhando para a lua eu diga que ela está distante de mim
cinquenta ou sessenta semidiâmetros da terra. Vejamos de que lua se está
falando. Ora, é claro que não pode ser da lua visível, nem de qualquer coi-
sa semelhante à lua visível ou àquilo que eu vejo, que é apenas um plano
luminoso e redondo de aproximadamente trinta pontos visíveis de diâ-
metro. Pois no caso de eu ser transportado, do lugar onde eu estou direta-
mente em direção à lua, evidentemente o objeto vai variar continuamente
enquanto ou avanço, e quando eu tiver avançado cinquenta ou sessenta
semidiâmetros da terra, de modo algum perceberei algo que se assemelhe
a uma superfície redonda, pequena e luminosa. O objeto simplesmente
terá desaparecido e se eu quisesse recobrá-lo, deveria voltar para a terra,
de onde partira. Ou ainda, suponha que eu perceba pela visão uma obs-
cura e indistinta ideia de algo que eu não tenho certeza tratar-se de um
homem, uma árvore ou uma torre, mas que julgo estar a uma distância
de aproximadamente uma milha. Evidentemente eu não posso querer di-
zer que o que vejo está distante uma milha ou que aquilo é a imagem ou
semelhança de qualquer coisa que está distante uma milha, já que a cada
passo que eu der na sua direção sua aparência se alterará e, de obscura,
pequena e fraca, tornar-se-á clara, grande e vigorosa. E quando eu chegar
ao final da milha, o que eu vi inicialmente estará totalmente perdido e
nem encontrarei qualquer coisa que a ele se assemelhe.
45. Neste e em outros caso a verdade é que, tendo por muito tem-
po experimentado certas ideias percebidas pelo tato, como distância,
figura tangível e solidez, serem conectadas com certas ideias da visão,
ao perceber estas ideias da visão eu imediatamente concluo quais são
as ideias que, pelo habitual curso ordinário da Natureza devem seguir-
se. Olhando para um objeto eu percebo uma certa figura visível e cores,
com algum grau de obscuridade e outras circunstâncias que, pelo que
eu tinha anteriormente observado, determinam-me a pensar que, se eu
avançar um certo número de passos ou milhas, serei afetado por tais e
tais ideias do tato. De forma que, na verdade e rigorosamente falando, eu
não percebo nem a distância nela mesma nem qualquer coisa que eu con-
sidere estar à distância. Ou seja, nem a distância e nem coisas situadas à
distância são, elas próprias ou suas ideias, verdadeiramente percebidas
pela visão. Disto estou convencido no que diz respeito a mim mesmo e
acredito que quem quer que observe com cuidado seus próprios pensa-
mentos e examine o que quer significar ao dizer que vê esta ou aquela
coisa à distância, concordará comigo que o que ele vê apenas sugere ao
seu entendimento que após percorrer determinada distância, a ser me-
dida pela ação de seu corpo – percebido pelo tato – irá perceber tais e
tais ideias tangíveis que têm sido regularmente conectadas com tais e
tais ideias visíveis. Mas para sermos convencidos de que podemos ser
enganados por estas sugestões dos sentidos e que não há uma conexão
necessária entre ideias visíveis e ideias táteis por elas sugeridas, basta
observarmos um espelho ou quadro. Note que, quando eu falo de ideias
tangíveis, eu uso a palavra ideia para significar, no sentido amplo em que
tem sido usado pelos modernos, qualquer objeto imediato dos sentidos
ou do entendimento.
46. Do que foi dito resulta como consequência evidente que as
ideias de espaço, exterioridade e coisas colocadas à distância não cons-
tituem, estritamente falando, o objeto da visão. Elas não são percebidas
mais pelo olho do que pelo ouvido. Sentado em meu escritório ouço um
coche rodar pela rua; olho através do janela e vejo-o; saio e nele entro.
O discurso comum poderia levar-me a pensar que eu ouvi, vi e toquei a
mesma coisa, ou seja, o coche. No entanto, é certo que as ideias recebidas
por cada sentido são largamente diferentes e distintas umas das outras.
Por serem constantemente observadas juntas, a elas nos referimos como
se fossem uma e mesma coisa. Pela variação do ruído eu percebo as dife-
rentes as distâncias em que se encontra o coche e sei, antes de olhar para
fora, que ele se aproxima. Pelos ouvidos eu percebo a distância, portanto,
exatamente da mesma forma como o faço com os olhos.
47. No entanto, eu não digo que ouço a distância da mesma ma-
neira como digo que a vejo, pois as ideias da audição não estão tão sujei-
tas a serem confundidas com as ideias do tato quanto as da visão. Pois
se uma pessoa pode facilmente ser convencido de que o objeto próprio
da audição são não os objetos e coisas externas e sim os sons, mediante
os quais a ideia deste ou daquele corpo, ou de distância, são sugeridas
aos seus pensamentos, dificuldade maior encontramos, para discernir a
diferença existente entre ideias da visão e ideias do tato, ainda que seja
evidente que um homem não vê e sente a mesma coisa tanto quanto não
a ouve e sente.
48. Uma das razões disso me parece ser o seguinte: acredita-se que
é um grande absurdo imaginar que uma e mesma coisa possa ter mais do
que uma extensão ou uma figura. Mas a extensão e a figura de um corpo,
sendo introduzidos na mente de duas maneiras e indiferentemente, pela
visão ou pelo tato, parece seguir-se que vemos a mesma extensão e a
mesma figura que tocamos.
49. Mas se considerarmos as coisas cuidadosamente e mais de per-
to e, seremos obrigados a reconhecer que nunca vemos e tocamos um
único e mesmo objeto. O que é visto é uma coisa e o que é tocado é outra.
Se a figura e a extensão visíveis não são o mesmo que as extensões e figu-
ras tangíveis, então não precisamos inferir que uma e mesma coisa tem
diversas extensões. A verdadeira consequência é que o objeto da visão e
o objeto do tato são duas coisas distintas. Talvez seja necessária alguma
reflexão para se conceber corretamente esta distinção. E a dificuldade
parece ter aumentado consideravelmente, pois a combinação de ideias
visíveis recebe constantemente o mesmo nome da combinação de ideias
táteis com as quais ela está conectada, o que resulta necessariamente do
uso e fim da linguagem.
50. Para tratar da visão clara e minuciosamente precisamos, por-
tanto, ter em mente que há dois tipos de objetos apreendidos pelo olho:
um que é apreendido primária e imediatamente e outro que o é secunda-
riamente e através da intervenção do primeiro. Aqueles do primeiro tipo
não são nem parecem estar fora da mente, ou à qualquer distância. Eles
podem certamente ficar maiores ou menores, mais confusos, mais claros
ou mais obscuros, mas eles não podem se aproximar nem se distanciar
de nós. Sempre que dizemos que um objeto está distante, sempre que
dizemos que ele se aproxima ou se afasta, devemos sempre significar
um objeto do primeiro tipo, que pertence propriamente ao tato e que não
é propriamente percebido e sim sugerido pelo olho, da mesma forma
como os pensamentos são sugeridos pelo ouvido.
51. Tão logo ouvimos as palavras de uma linguagem familiar ser
pronunciada em nossos ouvidos e as ideias a elas correspondentes se
apresentam em nossas mentes. O som e o significado penetram no en-
tendimento exatamente no mesmo instante, pois estão tão estreitamente
unidos que está além do nosso poder manter afastado um sem a concomitante
exclusão do outro. Na verdade agimos, em todas as situações, como se
ouvíssemos os próprios pensamentos. Da mesma forma os objetos secundários,
ou seja, aqueles que são apenas sugeridos pela visão, normalmente afetam-nos
mais fortemente e são mais considerados do que os objetos próprios
daquele sentido, pois entram juntos na mente e mantêm
entre si uma conexão muito mais estrita do que aquela entre as ideias e
as palavras. É por isso que julgamos ser tão difícil discernir entre os ob-
jetos mediatos e os objetos imediatos da visão e é por isso que somos tão
inclinados a atribuir ao primeiro o que pertence apenas ao segundo. Eles
estão, por assim dizer, intimamente entrelaçados, misturados e fundidos
entre si. E o preconceito é reforçado e fixado em nossos pensamentos por
uma longa duração, pelo uso da linguagem e pela falta de reflexão. Acre-
dito, no entanto, que qualquer um que considere atentivamente o que já
dissemos e o que ainda diremos antes de terminar (especialmente se o
acompanhar com seu próprio pensamento) será capaz de livrar-se deste
preconceito. Estou certo de que isto merece alguma atenção de todos que
queiram compreender a verdadeira natureza da visão.
132. Uma confirmação adicional da nossa tese pode ser obtida da
solução do problema do Sr. Molyneux, publicado pelo Sr. Locke em seu
Ensaio e que eu quero apresentar aqui tal como ele aparece naquela obra,
juntamente com a opinião do Sr. Locke sobre ele: “Imagine um homem
nascido cego e que, agora adulto, aprendeu a distinguir pelo tato entre um cubo e
uma esfera feitas do mesmo material e aproximadamente do mesmo tamanho, de
modo a poder dizer, ao tocar um e outro, qual é o cubo e qual é a esfera. Suponha
então que o cubo e a esfera sejam colocados sobre uma mesa, e que o homem cego
passe a ver. Pergunta-se: poderia ele distinguir e dizer, fazendo uso da visão,
antes de tê-los tocado, qual é a esfera e qual é o cubo?” Ao que o arguto e judi-
cioso proponente responde: “Não. Pois ainda que ele tenha obtido a experiên-
cia de como uma esfera e de como um cubo afetam o tato, ele não obteve ainda a
experiência de que o que afeta seu tato de tal ou tal maneira deve afetar sua visão
de tal ou tal maneira; ou que um ângulo protuberante que pressionou sua mão
no cubo de modo desigual deve aparecer aos seus olhos tal como no cubo.” Eu
concordo com a resposta dada a este problema por este sagaz cavalheiro,
que tenho o orgulho de chamar de meu amigo, e sou da opinião de que o
homem cego não seria capaz, à primeira vista, de dizer qual seria a esfera
e qual seria o cubo, enquanto apenas os estivesse vendo.” (Ensaio sobre o
Entendimento Humano, Bii.C.9.S.8.).
135. Ficou devidamente evidenciado que um homem cego desde
o seu nascimento não denominaria nenhuma coisa que visse pela pri-
meira vez com os nomes que estava acostumado a relacionar às ideias do
tato. Ele saberia que “cubo”, “esfera”, “mesa”, eram palavras atribuídas
a coisas percebidas pelo tato, mas não a coisas perfeitamente intangíveis
às quais ele nunca viu serem aplicadas. Em seu uso costumeiro, aquelas
palavras sempre representaram, para sua mente, corpos ou coisas sóli-
das que eram percebidas pela resistência que ofereciam. Mas não há so-
lidez, nem resistência ou protuberância percebidos pela vista. Em suma,
as ideias da visão são percepções inteiramente novas às quais não há
nenhum nome associado em sua mente. Ele não pode, portanto, entender
o que lhe é dito a seu respeito e a pergunta sobre qual é o cubo e qual é
a esfera, a respeito dos dois corpos ele viu colocado sobre a mesa, seria
para ele uma questão absolutamente cômica e ininteligível, pois nada do
que ele vê poderia sugerir aos seus pensamentos a ideia de corpo, distân-
cia, ou, em geral, qualquer coisa que ele tenha já conhecido.
139. [...] como as extensões visíveis e as figuras vieram a ser cha-
madas pelo mesmo nome das extensões e figuras táteis, se não pertencem
à mesma espécie destas? Deve ser algo mais do que um estado de ânimo
ou um acidente o que gerou um costume tão constante e universal como
este, que prevaleceu em todos os tempos e nações do mundo e entre todo
tipo de homens, tanto eruditos quanto iletrados.
140. Ao que eu respondo: não podemos argumentar que um qua-
drado tangível e um quadrado visível sejam da mesma espécie porque
são chamados pelo mesmo nome tanto quanto não podemos argumen-
tar que o trissílabo formado por oito letras através do qual é marcado
seja da mesma espécie que ele pelo fato de serem ambos chamados pelo
mesmo nome. É comum chamar as palavras escritas e as coisas que elas
significam pelo mesmo nome, pois não sendo as palavras vistas em sua
própria natureza e em nenhum outro aspecto senão como marcas das
coisas, seria supérfluo e fora dos propósitos da linguagem dar a elas ou-
tros nomes distintos daqueles das coisas que são por elas marcadas. A
mesma razão é, também aqui, válida. As figuras visíveis são marcas das
figuras tangíveis e é evidente [...] que elas recebem pouca atenção por
elas mesmas ou à qualquer outro título que não sua conexão com figuras
tangíveis que, por natureza, estão destinadas a significar. E é porque esta
linguagem da natureza não deve variar em diferentes épocas ou nações,
que em todo tempo e lugar as figuras visíveis são chamadas pelo mesmo
nome das respectivas figuras tangíveis por elas sugeridas e não porque
sejam semelhante ou porque pertençam a uma mesma espécie.
144. Precisamos admitir que não estamos tão sujeitos a confundir
outros signos com as coisas por eles significadas ou a pensar que sejam
da mesma espécie, como o estamos em relação às ideias táteis e as ideias
visuais. Uma breve consideração nos mostrará, porém, como isto é pos-
sível, sem que tenhamos que supor serem elas de uma mesma natureza.
Estes signos são constantes e universais, sua conexão com ideias tangí-
veis foram aprendidas desde nossa chegada ao mundo e, desde então,
em quase todos os momentos de nossas vidas ele ocorre em nossos pen-
samentos, fixa-se e penetra cada vez mais profundamente nossa mente.
Quando observamos que os signos são variáveis e produto de institui-
ção humana; quando lembramos que houve um tempo em que eles não
estavam conectadas, em nossas mentes, com aquelas coisas que agora
tão prontamente sugerem mas que, pelo contrário, sua significação foi
aprendida durante os lentos passos da experiência, tudo isso nos previne
de confundi-las. Mas quando encontramos os mesmos signos sugerindo
as mesmas coisas no mundo inteiro e pensamos que eles não são produto
de uma convenção humana; quando não conseguimos lembrar que um
dia aprendemos sua significação e acreditamos que, pelo contrário, à pri-
meira vista eles nos teriam sugerido as mesmas coisas que nos sugerem
agora; tudo isto nos persuade que eles são da mesma espécie das coisas
que cada um representa e que é por semelhança natural que eles as suge-
rem às nossas mentes.
145. Acrescente-se a isto o fato de que sempre que consideramos
detidamente um objeto, dirigindo sucessivamente o eixo óptico para
cada um de seus pontos, há certas linhas e figuras descritas pelo movi-
mento da cabeça ou do olho que, sendo na verdade percebidos pelo tato,
misturam-se tão completamente com as ideias da visão que dificilmen-
te conseguimos pensar que não pertencem a este sentido. Além disso,
as ideias da visão adentram a mente várias ao mesmo tempo, de forma
mais distinta e menos separada do que ocorre normalmente nos outros
sentidos, com exceção do tato. Sons, por exemplo, percebidos no mesmo
instante, tendem a fundir-se, por assim dizer, em um único som. Porém
podemos perceber ao mesmo tempo uma grande variedade de objetos
visíveis, muito separada e distintamente uns dos outros. Já os objetos tá-
teis são constituídos de várias e distintas partes coexistentes, o que pode
nos fornecer mais uma razão para nossa tendência a imaginar uma seme-
lhança ou uma analogia entre eles e os objetos imediatos da visão. Mas
nada, certamente, contribui mais para misturá-los e confundi-los numa
coisa só do que a conexão íntima e estrita que elas mantém entre si. Não
conseguimos abrir nossos olhos sem que as ideias de distância, corpos e
figuras tangíveis sejam por eles sugeridos. Tão rápida, repentina e des-
percebida é a passagem das ideias visíveis para as ideias tangíveis, que
dificilmente podemos deixar de considera-las como sendo igualmente o
objeto imediato da visão.
147. Em suma, penso ser justo concluirmos que os objetos próprios
da visão constituem uma linguagem universal do Autor2 da Natureza,
através da qual somos instruídos sobre como regular nossas ações de
modo a alcançar aquelas coisas que são necessárias para a preservação
e bem estar de nossos corpos, como também para evitar tudo que possa
ser a ele prejudicial e destrutivo. É principalmente através da informação
que eles nos fornecem que somos guiados em todos os assuntos e cuida-
dos da vida. E o modo pelo qual eles significam e nos indicam os objetos
que estão à distância é igual ao da linguagem e dos signos nascidos de
convenção humana, que não sugerem as coisas significadas por qualquer
semelhança ou identidade de natureza e sim apenas pela habitual cone-
xão que a experiência nos ensinou a observar entre eles.
1BERKELEY, G. Essay Towards a New Theory of Vision. In: BERKELEY, G. The Works of Ge-
orge Berkeley. Edited by A. A. Luce and T. E. Jessop. Edinburgo: Thomas Nelson and
Sons,1948. v.1.
2Na primeira e segunda edições: “ma linguagem universal da Natureza”.
TEORIA DA VISÃO DEFENDIDA E EXPLICADA1
George Berkeley
Tradução: Everaldo Skrock
35. [...] Houve uma longa e íntima associação em nossas mentes en-
tre as ideias da visão e do tato. É por isso que elas são consideradas como
uma única coisa. Tal preconceito foi muito adequado aos propósitos da
vida e a linguagem adequou-se a ele. A obra da ciência e da especulação
é desfazer nossos preconceitos e enganos, deslindando as conexões mais
intrincadas, distinguindo as coisas que são diferentes e fazendo com que
deixem de ser confusas e obscuras, proporcionando-nos visões distintas,
corrigindo gradualmente nosso julgamento e conduzindo-o a uma exati-
dão filosófica. [...]
36. No dispositivo da visão, assim como em outros casos, a pro-
vidência divina parece ter consultado antes a operação do que a teoria
dos homens. As coisas são admiravelmente adaptadas à primeira mas é
exatamente por esta razão que a segunda frequentemente torna-se con-
fusa. Pois tanto quanto estas sugestões imediatas e conexões constantes
são úteis para o direcionamento de nossas ações, igualmente necessário
para a especulação e para o conhecimento da verdade é nosso distinguir
entre coisas confundidas e separar coisas misturadas e como que fundi-
das umas nas outras.
43. Explicar como a mente ou a alma do homem simplesmente vê
é uma coisa, e pertence à filosofia. Considerar partículas enquanto mo-
vendo-se em certas linhas, raios de luz enquanto refratados ou refletidos,
ou cruzando-se, ou incluindo ângulos, é coisa bem distinta e pertence à
geometria. Explicar o sentido da visão pelo mecanismo do olho é uma ter-
ceira coisa, que pertence à anatomia e aos experimentos. As duas últimas
especulações são úteis na prática para corrigir os defeitos e remediar as
desordens da visão, em concordância com as leis naturais vigentes neste
sistema mundano. Mas a primeira teoria é que nos faz entender a verda-
deira natureza da visão, considerada como uma faculdade da alma. Tal
teoria, como já afirmei, pode ser reduzida a esta simples questão: “como
é que um conjunto de ideias totalmente diferentes de ideias tangíveis
pode, apesar disso, no-las sugerir, não havendo conexão necessária en-
tre elas?”. Ao que a resposta adequada é: “Isto se dá em virtude de uma
conexão arbitrária, instituída pelo Autor da natureza”.
44. O objeto próprio e imediato da visão é a luz, em todos seus
modos e variações, cores que variam em espécie, em grau, em quantida-
de; algumas vivas, outras mais obscuras; mais de algumas e menos de
outras; diversas em seus contornos ou limites; variadas em sua ordem e
disposição. Um homem cego, ao ver pela primeira vez, poderia perceber
estes objetos, nos quais há infinita variedade; porém ele não poderia nem
perceber nem imaginar qualquer semelhança ou conexão entre estes ob-
jetos visíveis e aqueles percebidos pelo tato. Luz e sombra, juntamente
com as cores, nada lhe sugeririam sobre os corpos, se macios ou sólidos,
lisos ou ásperos. Nem poderiam suas quantidades, limites ou ordem lhe
sugerir figuras geométricas, extensão ou situação, o que pelas suposições
recebidas da tradição, isto é, de que estes objetos são comuns à visão e ao
tato, deveriam fazê-lo.
45. Todos os vários tipos, combinações, quantidades, graus e dis-
posições da luz e das cores seriam considerados, em sua primeira per-
cepção, como sendo apenas um novo conjunto de sensações ou ideias.
Como seriam inteiramente novas e desconhecidas, um homem nascido
cego não daria a elas, ao vê-las pela primeira vez, os nomes das coisas
anteriormente conhecidas e percebidas pelo seu tato. Mas, após alguma
experiência, ele perceberia suas conexões com as coisas tangíveis e as
consideraria então como signos, e a elas daria (como ocorre em outros
casos) o mesmo nome das coisas significadas.
46. Mais e menos, maior e menor, dimensão, proporção, intervalo,
são encontradas no tempo e no espaço mas daí não segue-se, necessaria-
mente, que estas quantidades sejam homogêneas. Tampouco seguir-se-á,
da atribuição de nomes comuns, que ideias visíveis sejam homogêneas
àquelas do tato. É verdade que os termos utilizados para denotar exten-
são, figura, localização e movimento táteis, entre outros, são também em-
pregados para denotar quantidade, relação e ordem dos objetos ou ideias
propriamente visíveis da visão. Mas isto procede apenas da experiência e
de analogia. Há um mais alto e um mais baixo nas notas musicais. Fala-se
de tons mais altos e mais baixos. E isto, obviamente, nada mais é do que
metáfora ou analogia. Assim também, para expressar a ordem das ideias
visíveis, faz-se uso das palavras posição, alto e baixo, acima e abaixo, e seu
sentido, quando assim utilizadas, é analógico.
47. Mas, no caso da visão, vamos além de uma suposta analogia en-
tre naturezas diferentes e heterogêneas. Supomos haver uma identidade
de natureza ou um e mesmo objeto comum a ambos os sentidos. E a este
erro fomos induzidos: assim como os vários movimentos da cabeça, para
cima e para baixo, para a direita e para a esquerda, são acompanhados de
uma variação nas ideias visuais, igualmente passamos a considerar que
aqueles movimentos e posições da cabeça, que na verdade são tangíveis,
transferem seus atributos e denominações às ideias visíveis com as quais
estão conectadas e que, deste modo, passam a ser chamadas de “alto” e
“baixo” ou “direita” e “esquerda”, e a serem marcadas por outros nomes
indicando modos da posição que, antes de tal experiência, não teriam
sido a ele atribuídos ou pelo menos não em sentido primário e literal.
71. Antes de concluir, não seria inútil acrescentar o seguinte ex-
trato do Philosophical Transactions, sobre uma pessoa cega desde seus in-
fância que recobrou a visão muito mais tarde: “Quando viu pela primeira
vez, era-lhe tão difícil fazer qualquer julgamento sobre distâncias que pensou
que todos e quaisquer objetos que tocavam seus olhos (segundo suas palavras)
o faziam tal como os objetos tocavam sua pele. E pensava que nenhum objeto
era tão agradável quanto aqueles que eram lisos e regulares, ainda que não conseguisse
formar nenhum julgamento de sua forma nem identificar o que é que, em cada objeto,
o agradava. Ele não conhecia a forma de nada e nem sabia distinguir nenhuma coisa de outra,
por mais diferente que fossem em forma e tamanho. Porém depois que lhe era dito que
coisas correspondiam àquelas cujas formas ele já conhecia através do tato,
ele dizia que poderia conhecê-las novamente. Mas se tivesse muitos objetos
para aprender ao mesmo tempo, ele esquecia muitos deles. E (dizia ele),
inicialmente aprendia e esquecia novamente milhares de coisas num único dia.
Várias semanas depois de ter sido operado, ao ser iludido por imagens, ele
perguntou qual era o sentido mentiroso: o tato ou a visão? Ele nunca foi capaz
de imaginar qualquer linha além dos limites do que via. Ele sabia, disse ele,
que o quarto em que estava não era senão uma parte da casa mas não
conseguia conceber o fato de que a casa inteira pudesse parecer maior.
Ele disse que cada novo objeto era uma novo deleite e que o prazer era
tão grande que lhe faltavam palavras para expressá-lo”. Portanto, aqueles
pontos da teoria que pareciam os mais distantes da apreensão comum foram
notavelmente confirmados por fato e experimento, anos depois de eu ter sido l
evado à sua descoberta pelo uso da razão.
1 BERKELEY, G. Theory of Vision Vindicated and Explained. In: BERKELEY, G. The Works
of George Berkeley. I. Edited by A.A. Luce e T.E Jessop. Edinburgo: Thomas Nelson and Sons,1948.v. 1.
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