notas
NOTAS
1. Parece claro que na origem deste interesse está, entre outras coisas, a direção tomada
pela própria filosofia contemporânea no que diz respeito à desmistificação da linguagem
e ao approche monista da questão mente-corpo.
2. Bergson. Henri - L'Intuition Philosophique, in La Pensée et le Mouvant, Paris, PUF,
1950.
3. Trata-se da compreensão berkeleiana da teoria da abstração de Locke. É sempre a ela
que nos remeteremos, sem maiores discussões a respeito da justeza desta interpretação.
4. Com isso, temas correlatos e interdependentes muitas vezes aparecem distantes um do
outro. Talvez a maior importância dos Notebooks de Berkeley consista em revelar
certas conexões pouco evidentes desta rede em suas obras publicadas: elementos que
estão distantes na ordem cronológica das publicações aparecem ali lado a lado,
conceitos que são normalmente tratados isoladamente são ali explicitamente
relacionados.
5. Pp, 20. Utilizaremos as seguintes abreviações para a referência às obras de Berkeley, no
corpo do texto e nas notas, respectivamente:
1)"An Essay Towards A New Theory of Vision": Nova Teoria da Visão, Ntv;
2)"A Treatise concerning the Principles of Human Knowledge": Principles, Pp;
3)"First Draft of The Introduction to the Principles" ou "Manuscript Introduction":
Introdução Manuscrita, Im;
4)"Published Introduction": Introdução Publicada, Ip;
5)"Three Dialogues between Hylas and Philonous": Três Diálogos, Dhf;
6)"The Theory of Vision Vindicated and Explained": Teoria da Visão Vindicada, Tvve;
7)"Alciphron": Alciphron, Aph.
6. Como veremos, esta crítica já é segunda em relação àquela levada à cabo na Ntv. Ali,
em especial em sua segunda parte, Berkeley identificará a origem das condições pré-
categoriais que estão na origem do discurso materialista e das teorias referencialistas da
linguagem.
7. Mill, John Stuart - A Review of "Berkeley's Theory of Vision, designed to show the
Unsoundness of that Celebrated Speculation", by Samuel Bailey, Ridgway, 1842.
8. Ainda que sua clássica distinção entre sensação e percepção, que muitos afirmam ter
sido antecipada por Berkeley, não lhe faça absolutamente justiça, pois nada tem a ver
com sua distinção entre idéias imediatas e idéias que nascem do entrecruzamento entre
linguagem, idéias imediatas e idéias da imaginação por elas sugeridas. Para Helmholtz a
percepção seria uma forma de organização racional dos dados sensíveis segundo um
esquema "proposicional" do tipo: toda vez que tais idéias foram percebidas se
sucedendo, tais outras se seguiram; agora vejo tais idéias em conjunção; logo, tais
outras vão ser percebidas. Isto que Helmholtz chama de "inferência inconsciente" seria
veemente contestado por Berkeley: primeiro porque não há inferência e sim apenas
conjunção acidental entre as idéias e segundo porque Berkeley rejeitaria tudo que fosse
"inconsciente", assim como o fez com relação à "geometria natural" de Descartes. Cf.
Helmholtz, H. - Treatise on Physiological Optics, ed. James Southall, Dover, New
York, 1950.
9. Para Gibson a percepção do espaço não depende de um segundo momento de
organização racional dos dados sensíveis - a percepção de Helmholtz - pois está já
estruturada na própria sensação. Cf. Gibson, J. J. - The Perception of the Visible World,
Boston, Mass, 1950; The Senses Considered as Perceptual Sistems, Houghton Mifflin,
Boston, 1950.
10. Podemos, por exemplo, indicar inúmeros ecos do pensamento de Berkeley em Bergson
e Merleau-Ponty, ou então citar o nome de Nelson Goodman como alguém que levou às
últimas consequências a idéia - fundamental em Berkeley - de que a as categorias nas
quais distribuimos as coisas não refletem uma ordem natural e necessária e sim uma
forma contingente de organizar a realidade segundo nossas necessidades e expectativas.
Poderíamos citar igualmente o recente interesse da filosofia e da semiótica pela questão
da relação entre os modos de significação dos ícones e das palavras como exemplo do
quanto o tema de Berkeley é atual. Cf. ECO, Humberto - La production des Signes,
Paris, Biblio Essais, 1992; BOUVERESSE, Jacques - Langage, Perception et Realite,
Tome I: La Perception et le Jugement, Ed. Jacqueline Chambon, Nîmes, 1995;
GROUPE m - Traité du Signe Visuel - Pour une Rhétorique de l'Image, Paris, Ed.
Seuil, La Coleur des idées, 1992. (Cf. na Bibliografia outras produções filosóficas e
científicas recentes sobre o assunto)
11. Descartes, R. - Dioptrica, in: Oeuvres Philosophiques, E. Garnier Frères, Textes
établis, présentés et annotés par Ferdinand Alquié, Paris, 1973, pg. 681-682.
12. Ibid.; pg. 682.
13. Ibid.; pg. 683.
14. Ibid.; pg. 699.
15. Ibid.; pg. 700.
16. Ibid.; pg. 705.
17. Ibid.; pg. 707.
18. Leonardo da Vinci assim a define: "La perspective n'est rien d'autre que voir un lieu à
travers un verre plat et bien transparent sur la surface duquel sont reportées toutes les
choses qui se trouvent derrière ce verre; ces choses peuvent être conduites jusqu'au
point de l'oeil par des pyramides, et ces pyramides sont en coupe sur le verre". (Citado
em Hamou, Philippe - La Vision Perspective, Paris, Payot, 1995). Berkeley utilizará a
imagem deste "plano diáfano" na Tvve, 55 para mostrar que a percepção da distância e
do tamanho não dependem apenas da visão.
19. Dióptrica, Discours VI. Como as leis lógicas e matemáticas são inatas, esta geometria
natural seria igualmente independente da experiência.
20. Sobre os desdobramentos posteriores desta questão, cf.: Goodman, N. - Languages of
Art, Ed. Jacqueline Chambon, Nîmes, 1992, Trad. de Jacques Morizot, em especial I,3,
sobre perspectiva e semelhança; Hamou, P. - La Vision Perspective (1435-1740), Paris,
Payot et Rivages, 1995, em especial a Introdução, sobre a polêmica entre Panofsky e
Gombrich quanto ao realismo da representação perspectiva. Veja ainda Poyncaré, H.. -
La Science et l'Hypothèse, Flammarion, Paris, 1968, em especial caps. III-V, sobre a
incomensurabilidade entre espaço perceptivo e espaço geométrico.
21. Tvve, 42. Retornaremos a esta questão.
22. Pp, 01.
23. Sem pretender que a psicologia e neurologia modernas sejam uma comprovação das
teses de Berkeley, não podemos deixar de citar esta sugestiva passagem de Eccles:
"Gerschwind prétend que les aires du cerveau ont acquis leurs fonctions spécifiques au
cours de l'évolution par suite d'une convergence d'informations en provenance de
plusieurs modalités sensorielles. Ainsi, lorsque des informations visuelles et tactiles
convergent sur les mêmes neurones, comme c'est le cas dans l'aire 39, ces neurones
seraient en mesure de transmettre que l'objet vu et l'objet touché sont identiques. Il
s'ensuivrait alors la représentation de l'objet, puis sa dénomination. Chez les primates,
il existe une aire associative dans le sillon temporal supérieur. Selon Gerschwind, au
cours de l'évolution, cette aire s'est spécialisée dans les fonctions de la denomination,
puis du langage." (Eccles, J. C. - Évolution du Cerveau et Création de la Conscience,
Paris, Flammarion, 1989, Trad. Jean Mathieu Luccioni, pg.117.)
24. Tanto é que muitos comentadores se limitam a expor a parte relativa à distância,
acreditando que ali já se encontram os argumentos utilizados no tratamento dos dois
outros problemas.
25. Berkeley utiliza os mesmos termos do vocabulário dualista da óptica geométrica. Só
mais tarde ficará claro que o que Berkeley entende por "distância" não é a mesma
distância dos geométricos...
26. Esta é a percepção da distância por interposição. Ocorre mais comumente quando um
corpo recobre parcialmente um outro, revelando assim estarem eles a diferentes
distâncias.
27. O fenômeno da menor distinção da imagem de um objeto mais distante acontece, por
exemplo, quando a imagem de uma montanha ao longe, próxima do horizonte, nos
parece menos clara (parece estar sempre envolta em uma névoa) do que a imagem de
uma montanha mais próxima.
28. Tanto no primeiro caso (dois olhos) como no segundo (um só olho), a partir de uma
determinada distância os raios tendem ao paralelismo e a avaliação da distância passa
então a exigir o recurso à experiência, como foi mostrado acima.
29. Isto é, "fora de foco". Cf. Ntv, 35: "Confused vision is when the rays proceeding from
each distinct point of the object are not accurately recollected in one corresponding
point on the retina, but take up some space thereon, so that rays from different points
become mixed and confused together. This is opposed to a distinct vision, and attends
near objects. Faint vision is when by reason of the distance of the objec or grossness
of the interjacent medium few rays arrive from the object to the eye. This is opposed to
vigorous or clear vision, and attends remote objects." (Adotaremos a seguinte tradução
para os termos relativos à imagem visual:
a)com relação ao "foco":
confused: "confusa" ou "indistinta";
distinct: "distinta";
b)com relação à "clareza":
faint: "fraca" ou "obscura";
vigorous : "forte" ou "clara".)
30. Berkeley está aqui falando de "tamanho" como "determinada quantidade de mínimas
perceptíveis" (Ntv, 80-82). Voltaremos a tratar deste conceito na sequência do texto.
31. Como vimos, uma das idéias imediatas que sugerem distância é a imagem visual de
objetos que se situam entre o observador e o objeto visado.
32. Se dois objetos estão a diferentes distâncias e se apresentam com o mesmo tamanho
aparente, um deles deve ser, na realidade, maior do que o outro. Esta sugestão de maior
tamanho produzida pela crença na maior distância estaria na origem da ilusão de um
maior tamanho aparente.
33. Ntv, 45-51.
34. Sobre o sentido de "tamanho tátil da lua", ver Tvve, 51.
35. A questão do tamanho aparente da lua no horizonte nunca deixou de intrigar os ópticos.
As explicações hoje mais aceitas recorrem tanto aos argumentos de Berkeley quanto aos
da óptica geométrica: a interposição, a interferência de material volátil na atmosfera, a
posição horizontal do olhar e, além disso, o julgamento da distância a partir da ilusão
óptica de um céu em forma de abóbada, cujos limites parecem estar mais distantes nas
bordas do que em seu cume. Este último modelo é defendido por Robert Smith
(sec.XVIII), Voltaire e Helmholtz. (Veja Voltaire, Éléments de la Philosophie de
Newton, Livro III, Capítulo VIII e Scientific American, 207, 1962.)
36. Assim também como as variações de distinção ou de força da imagem visual podem
sugerir tanto a variação de distância quanto a variação de tamanho.
37. Berkeley utiliza ainda, (Tvve, 55-57) a imagem do "plano diáfano" utilizado pelos
pintores para reproduzir a perspectiva de cenas de seus quadros. O intuito é mostrar que
apesar de haver uma correspondência entre o tamanho visual e o tamanho tátil, esta
relação não é completamente unívoca. Trata-se de um dispositivo amplamente utilizado
e ilustrado por Dürer, entre outros, que consiste na construção de um plano transparente
quadriculado que é interposto entre o pintor e a cena. Este plano representa um corte no
"cone" que tem sua extremidade no olho do observador e que portanto deve, pelas leis
da perspectiva, representar exatamente a projeção dos raios naquele plano assim
delimitado. Ora, diz Berkeley, os objetos que se situam na parte superior do plano são
julgados maiores do que aqueles situados na parte inferior, ainda que ocupem um
mesmo número de quadros, o que mostra que a mesma imagem sugere maior ou menor
objeto tátil, segundo sua posição no quadro.
38. Tanto que Berkeley sugere que se faça uma inversão semântica do par pictura (picture)
/ imago (image), que desde Kepler referiam-se respectivamente à assim dita imagem
material desenhada na retina e à imagem "espiritual", projetada na realidade. Berkeley
prefere chamar de "picture" a imagem puramente visual e de "image" a imagem de
caráter tátil que é formada na retina. A imagem é ou tátil ou visual e a "imagem
mental" é abandonada. (Tvve, 51).
39. Tanto que um cego de nascimento pode "imaginá-a, entende-la compreende-la", pois
"figuras e movimentos que não podem ser realmente percebidas mas apenas
imaginadas, podem no entanto ser consideradas idéias tangíveis, desde que sejam da
mesma espécie dos objetos do tato e que a imaginação a engendre a partir daquele
sentido" (Tvve, 51. Veja também Tvve, 49).
40. Os comentadores costumam evitar estas difíceis passagens da Nova Teoria da Visão,
mas Berkeley é claro e incisivo: "The solution of this knot about inverted images seems
the principal point in the whole optic theory, the most difficult perhaps to comprehend,
but the most deserving our attention, and, when rightly understood, the surest way to
lead the mind into a thorough knowledge of the true nature of vision." (Tvve, 52.)
41. Além, é claro, das próprias características táteis deste objeto. A distância sendo medida,
originalmente pelo menos, em passos, será uma distância igualmente "tátil" (que hoje
chamaríamos de "kinestésica").
42. Berkeley, Ntv, 121: "...whether there be any one and the same sort or species of ideas
equally perceivable to both senses; or, in other words, whether extension, figure, and
motion perceived by sight are not specifically distinct from extension, figure, and
motion perceived by touch". Para os modernos, as qualidades primeiras (extensão,
figura, movimento) são características inerentes às próprias coisas, enquanto as
qualidades segundas (cores, sons, etc) são representações subjetivas destes objetos.
Descartes, Segunda Meditação : a cera pode perder sua solidez, sua cor, seu odor, mas
não deixará de ter uma extensão. Para Locke as qualidades segundas são resultado da
ação de corpúsculos que se originam nos objetos e atingem os orgãos sensíveis,
corpúsculos estes que são por sua vez constituídos por diversas formas, ou seja,
qualidades primeiras.
43. A tese de que as idéias de diferentes sentidos são absolutamente distintas possui uma
importância indiscutível na economia geral do sistema de Berkeley. Porém é fácil
perceber que esta não é uma tese que possa ser usada como axioma primeiro de uma
dedução. A afirmação de que as qualidades primeiras são comuns a vários sentidos
também é um elemento importante e coerente no interior dos sistemas dualistas, mas
tampouco ali ele é um ponto de partida. Esta tese pode ser sustentada com bons
argumentos tanto por um defensor quanto por um crítico do realismo dualista, pois
ambos poderão facilmente mostrar que esta peça se encaixa bem em um determinado
espaço vazio de seu puzzle. Como trata-se de um confronto de tipo dialético, cada um
vai lançar mão do conjunto de seus pressupostos e teremos sempre a incômoda
sensação de petição de princípio. O que decide a questão, para Berkeley, é o recurso ao
princípio de economia e eficiência: a tese dualista cria problemas desnecessários e
portanto deve ser preterida em favor de uma tese mais simples e que melhor explica os
problemas colocados pela filosofia e pela ciência.
44. Ntv, 131.
45. O argumento que recorre à experiência de pensamento de um cego de nascimento que
adquire a visão é recorrente no texto da Nova Teoria da Visão. Ele é exemplarmente
formulado no clássico problema de Molyneux: se a um cego de nascimento que voltasse
a ver fosse mostrado um cubo e uma esfera, reconheceria ele apenas com a visão qual
objeto corresponde ao cubo tátil e qual corresponde à esfera tátil que ele já conhecia?
Leibniz dizia que sim, Locke e Berkeley diziam - por diferentes razões - que não.
Acreditava-se que tal experiência empírica, se um dia realizável, decidiria de forma
inquestionável o problema da existência ou não de idéias inatas e portanto daria um
veredito final às questões que opunham empiristas e racionalistas. Como vimos,
Berkeley não vê razão para que o cego operado confunda idéias visuais e idéias táteis,
pois sua coexistência na experiência não implica uma relação necessária. Os
instrumentos ópticos, em particular o microscópio, mostram que as relações habituais
entre as idéias da visão e do tato são não-necessárias. O microscópio desfaz a conexão
que a experiência regular nos acostumou a fazer entre estas duas espécies de idéias
(Ntv, 83-86, 128 e 132).
46. Tvve, 46.
47. A pergunta que se pode fazer aqui é: o mesmo vale para os conjuntos de palavras
(proposições) que pretendem representar um certo estado de coisas (fatos)? Na Nova
Teoria da Visão, 121 Berkeley afirma que entre as séries sensíveis há dois tipos de
heterogeneidade: a numérica (entre duas idéias tomadas individualmente) e a específica
(entre as classes "idéias da visão" e "idéias tato", por exemplo). No entanto, há entre
estas duas séries uma relação constante e regular sem a qual a natureza careceria de
lógica e coerência, seria semelhante a um alfabeto sem nenhuma convenção quanto às
combinações dos signos que o compõem e a vida seria impossível. Sabemos o quanto é
importante esta analogia da natureza com a linguagem em Berkeley: mais do que
sugerir uma metáfora, dizer "a natureza é uma linguagem" é definir a natureza. As
idéias de diferentes modalidades sensíveis relacionam-se sugerindo uma às outras assim
como as palavras sugerem seus significados. Na teoria da significação de Locke esta
relação significante entre palavras e idéias é estrita e necessária, mas para Berkeley ela
é tão maleável quanto a própria relação entre idéias que varia, por exemplo, de acordo
com o contexto no qual está inserido. Entre estes dois gêneros de signos - idéias e
palavras - existe portanto uma espécie de relação isomórfica, ainda que não estrita,
quanto ao seu aspecto semântico. A questão que se coloca é se este isomorfismo
poderia ser levado adiante e aplicado ao aspecto lógico da linguagem. Em outras
palavras, se seria possível generalizar e ampliar esta relação dizendo que, assim como a
significação das palavras, assim também as proposições obedeceriam ao modelo de
significação das idéias. É claro que Berkeley não se preocupa com esta questão nos
termos em que a estamos colocando. As questões lógicas de seu tempo estão por
demais viciadas pelos pressupostos da tradição: os gêneros e espécies aristotélicas
passaram a significar categorias naturais das coisas, independentemente da linguagem.
Sua tarefa em relação à lógica é sobretudo desconstrutiva. Porém Berkeley fala,
esporadicamente, da proposição. O que apreendemos destas passagens é que a relação
sujeito-predicado da proposição não é apenas a expressão de uma relação substância-
acidente presente na realidade. Como para Berkeley a realidade externa e material é
substituída por um sistema de signos com relações continges entre eles, a relação entre
sujeito e predicado passa a ser visto como uma relação entre o que chamaríamos, em
uma terminologia moderna, um definiendum e um definiens. No entanto, a pergunta
poderia persistir: se o mundo é uma linguagem, no sentido de "sistema de signos",
então deve haver uma relação estrutural entre o conjunto de palavras que compõem a
proposição e o conjunto de idéias que elas significam. Mas um conjunto de idéias pode
se relacionar "em bloco" com outro conjunto de idéias? O que Berkeley diz é que a
relação entre idéias não se limita a duas idéias particulares: dizer que o significado sofre
interferência do contexto é de alguma maneira dizer que idéias diferentes daquelas
diretamente envolvidas na relação significante também podem entrar em jogo. Na
passagem onde Berkeley aceita que o cubo visual é mais adequado do que a esfera
visual para significar o cubo tátil ele parece afirmar que a correspondências entre dois
conjuntos de idéias pode ser mais ou menos adequada (mesmo que negue que isto
implique necessariamente uma relação de necessidade: a semelhança está não entre as
idéias que formam o cubo visual e as idéias que formam o cubo tátil e sim entre a
forma como elas estão relacionadas, que, entre outras coisas, revela um mesmo
número de lados). Parece haver, portanto, uma espécie de correspondência estrutural
entre os dois conjuntos de signos. Mas Berkeley pára neste nível semântico e diz:
"Figuras visíveis representam figuras táteis da mesma maneira pela qual palavras
escritas representam sons". É arbitrário que uma letra signifique um som, mas após ser
admitida esta convenção, para que a linguagem funcione é necessário que a um
determinado número de sons que compõem uma palavra corresponda um mesmo
número de letras para significá-lo. Para tentar dar conta da significação da proposição
com esta mesma analogia precisaríamos dizer: "Conjuntos de palavras (proposições)
representam conjuntos de idéias relacionadas (fatos) da mesma maneira pela qual
figuras visíveis (conjunto de idéias visuais) representam figuras táteis (conjunto de
idéias táteis). Vemos que as coisas se complicam porque dizer "conjuntos de idéias
relacionadas" é ultrapassar em muito o simples "conjunto de idéias de um mesmo
sentido". A proposição fala de objetos que estão em relação (fatos) e estes objetos são já
unidades formados por diversos conjuntos de idéias de sentidos diferentes unificados
em um nome único. Os nomes que compõem a proposição são nomes de objetos tais
como se apresentam ao nosso vivido percepto-linguístico. Perguntar pela forma de
correspondência entre esta unidade "linguística (conjunto de palavras) e a unidade de
idéias (objetos) é perguntar como a lógica trabalha com os objetos do senso comum. A
lógica, assim como a matemática, possui um valor instrumental mas nada diz sobre a
natureza das coisas, sobre a estrutura significante que está na origem da imagem
comum de mundo como sendo constituído das unidades "objeto" e "nome de objeto".
48. Ntv, 144-145.
49. "In the contrivance of vision, as in that of other things, the wisdon of Providence
seemeth to have consulted the operation rather than the theory of man; to the former
things are admirably fitted, but, by that very means, the latter is ofter perplexed. For,
as useful as these immediate suggestions and constant connexions are to direct our
actions; so is our distinguishing between things confounded, and our separating things
connected, and as it were blended together, no less necessary to the speculation and
knowledge of truth" (Tvve, 36).
50. É preciso lembrar que Berkeley toma como seus interlocutores na Nova Teoria da
Visão os cartesianos e não o próprio Descartes. Este, como sabemos, relativiza o
dualismo mente-corpo na Sexta Meditação e afirma na Dióptrica que a representação
não é necessáriamente uma cópia fiel de seu original e sim um signo. Porém Descartes
admite que pode haver ali alguma semelhança e portanto este conceito de representação
como signo não é o mesmo de Berkeley, para quem não é possível qualquer
comparação e portanto qualquer relação de semelhança a não ser entre idéias.
51. Apesar de ser, assim como esta, fundada numa convenção e não numa relação
necessária entre os significantes e os significados.
52. É esta propriedade que garante a possibilidade das idéias gerais e portanto da
demonstração, como veremos ao comentarmos o Ip.
53. Ntv, 147.
54. Para Turbayne, mais do que um exemplo, o modo de significação das palavras funciona
como um modelo, no sentido da ciência, que explica o funcionamento da visão. Ou
seja, a Ntv é vista como uma resposta ao problema óptico com um modelo de ordem
linguístico. (Turbayne, C. M. - The Mith of Metaphor, University of South Carolina
Press, Columbia, 1970.
55. Tvve, 40; Aph IV, 12.
56. "A great number of arbitrary signs, various and apposite, do constitute a language. If
such arbitrary connexion be instituted by men, it is an artificial language; if by the
Author of the nature, it is a natural language. (...) And yet this doth (sic) not hinder
but the one may be as arbitrary as the other. And, in fact, there is no more likeness to
exhibit, or necessity to infer, things tangible from the modification of light, than there
is in language to colect the meaning from the sound. But, such as the connexion is of
the various tones and articulations of voice with ther several meanings, the same is it
between the various modes of light and their respective correlates; or, in other words,
between the ideas of sight and touch". (Tvve, 40).
57. "There is indeed this difference between the signification of tangible figures by tangible
figures, and of ideas by words: That whereas the latter is variable and uncertain,
depending altogether on the arbitrary appointment of men, the former is fixed and
immutably the same in all times and places." (Ntv, 152.)
58. "Gênero" e "espécie" entendidos aqui apenas como classes que contêm umas às outras,
sem as implicações metafísicas da doutrina clássica da substância e da lógica
aristotélicas.
59. Pelo fato de ter sido projetado como introdução a uma obra mais extensa da qual
somente a primeira parte foi publicada, por ter um objetivo específico (crítica das
teorias da linguagem que recorrem às idéias abstratas) e pela a importância que adquiriu
recentemente nos estudos de Berkeley, trataremos a Introdução ao Principles como um
texto autônomo em relação ao que chamaremos de "corpo" do Principles.
60. Para um resumo das principais posições dos comentadores a este respeito, veja Geroult,
M. - Berkeley, quatre études sur la perception et sur Dieu, Paris, Aubier, 1956.
61. "Compared with the printed Introduction, the draft neither adds nor omits anything of
substance" (Pg. 117 Works, ed. Luce Jessop.)
62. Tamanha é a confiança nesta tese que na publicação das obras completas de Berkeley
em francês, cuja tradução dirigiu, Brikman ordena os textos na seguinte ordem,
supostamente cronológica: 1)Phc, 2)Im, 3)Ntv, 4)Ip, 5)Pp.
63. As expressões "idéia geral" e "idéia abstrata" sendo utilizadas, neste momento, como
sinônimas.
64. Cf. Belfrage, B., George Berkeley's Manuscript Introduction, pg. 43.
65. Na Introdução a generalidade é possivel sem as idéias abstratas exatamente como na
Nova Teoria da Visão uma optica é possível sem recurso à geometria.
66. Phc, 553: "I must not say the words thing, substance, etc, have been the cause of
mistakes. But the not reflecting on their meanings. I ill be still for retaining the the
words."
67. É talvez esta a grande importância da Introdução Manuscrita: assim como o
Philosophical Commentaries, é um texto mais próximo das intuições primeiras de seu
autor. Se, como diz Berkeley, as palavras recobrem as idéias como um véu, é
compreensível que quanto mais o texto é retrabalhado mais difícil se torna para o leitor
reconhecer ali o espírito que o motivou originalmente.
68. Citado por Belfrage, em George Berkeley's Manuscript Introduction, pg. 28.
69. Talvez seja esta a razão porque Martial Geroult prefira fazer ensaios sobre a filosofia de
Berkeley e não análises estruturais de seus textos.
70. Pp, 10.
71. Todo e qualquer discurso, mesmo o crítico, está sujeito à máxima segundo a qual o
significado é mais importante do que o significante. Esta é a verdadeira razão porque as
idéias devem ser priorizadas em relação às palavras, ao contrário do que afirmam os
críticos do "introspeccionismo ingênuo" de Berkeley.
72. Ip, 06.
73. Condillac, E. - Traité des Systèmes, in Oeuvre Philosophiques de Condillac, Paris,
PUF, 1947.
74. Ip, 18.
75. Ou seja: rigorosamente, este "princípio" é indizível porque anterior à predicação. Com
Berkeley a filosofia se arrisca, talvez pela primeira vez, por este território inóspito, que
será posteriormente frequentado também por Bergson, Merleau-Ponty e Wittgenstein,
entre outros. As filosofias orientais preferem o silêncio: "The Ch'an Master Wen-yi
(died 958) was once asked: 'What is the First Principle?' To which he answered: 'If I
were to tell you, it would become the second principle.'" (Hui-neng - Sayings of the
Ch'an Master Wen-yi, citado em Fung Yu-lan - A Short History of Chinese Philosophy:
a Systematic Account of Chinese Thought From Its Origins to the Present Day, New
York, The Free Press, 1976.)
76. Existe esta mesma ambiguidade aparente na forma como Berkeley se refere à relação
entre idéias de diferentes modalidades sensíveis. Esta relação é, como vimos, de
"sugestão", "antecipação", "significação", pois as relações entre idéias é da ordem da
conjunção contigente (experiência) e não da necessidade. Porém Berkeley costuma
dizer também que das idéias da visão inferimos ou julgamos, por exemplo, a distância.
(Por exemplo em, Ntv, 03, 73; Pp, 18; Tvve, 60, 64.) Ora, Berkeley afirma na Teoria
da Visão Vindicada e Explicada que "inferência" e "julgamento" se aplicam não às
relações contingentes e sim às relações necessárias (Tvve, 11-13, 42). Como explicar
então o uso destes vocábulos em se tratando de relações entre idéias, que são
contingentes? Os três tipos de inferências indicados por Berkeley na Teoria da Visão
Vindicada e Explicada (do efeito para a causa, da causa para o efeito, do semelhante
para o semelhante) dizem respeito apenas a relações necessárias. Assim, trata-se aqui
de "causa" no sentido de causa produtora e não, por exemplo, da inferência da idéia de
luz para a idéia de sol, que se situa no âmbito da natureza, cujas leis são nada mais do
que padrões de relações entre idéias. A inferência aqui é, por exemplo, desta
regularidade da natureza para uma causa superior que a produz e mantém. Trata-se,
portanto, de dois usos distintos da palavra inferência. O primeiro refere-se à sugestão
ou antecipação de uma idéia pela outra e possui um sentido mais fraco do que o outro,
já que estas relações não são necessárias. O segundo uso refere-se à causa no sentido
mais forte de origem que mencionamos acima. Isto deixa de ser surpreendente se
lembrarmos que Berkeley muitas vezes se utiliza de uma mesma palavra atribuindo-lhe
sentidos diferentes de acordo com o contexto em que ela se encontra e que que o
sentido de certas palavras é deliberadamente alterados no desenrolar da obra. Assim, no
Philosophical Commentaries, 517 Berkeley afirma que continuará utilizando a palavra
"substância", mas com um novo sentido; na Introdução Publicada Berkeley substitui a
expressão "idéia geral" pela expressão "idéia abstrata", etc. Em outros momentos
Berkeley lembra que, para sermos rigorosos deveríamos dar nomes diferentes para as
coisas segundo elas digam respeito à visão ou ao tato, pois utilizamos sempre as
mesmas palavras para designar, por exemplo, o tamanho visual e o tamanho tátil. Isto é
mais simples e econômico para a linguagem comum, porém pode trazer problemas para
a filosofia e por isso as vezes Berkeley faz questão de desdobrar o sentido de certas
palavras em dois, como é o caso da palavra "picture", que Berkeley reserva para
designar a imagem visual, adotando a palavra "image" para designar a imagem tátil que
em geral está nela já subentendida.
77. Como vimos anteriormente, é preciso fazer a distinção entre os modos de significação
dos termos gerais e das palavras que significam o espaço: os primeiros significam à
maneira das figuras geométricas, que se prestam a demonstrações que valem para todos
os particulares subsumidos por uma classe, ainda que não sejam todos idênticos entre
si. Já a palavra "distância", por exemplo, depende de uma conjunção entre idéias
imediatas e idéias sugeridas, de uma colaboração entre percepção direta e imaginação.
78. Trata-se do assim chamado "significado emocional", que recebe maior importância na
Introdução Manuscrita mas que continua desempenhando papel importante na
Introdução Publicada.
79. Não seria correto dizer que estas palavras "nomeiam noções" pois, como veremos, a
noção não é um objeto de conhecimento como a idéia e sim uma diferente forma de
conhecimento.
80. A linguagem é condição de possibilidade para a generalidade. Ao contrário do que
pensava Condillac, para Berkeley sem linguagem não pode haver idéias gerais. Os
próprios defensores das idéias abstratas afirmam que estas são necessárias para que os
termos gerais signifiquem, o que mostra que se não ouvesse linguagem não haveria
necessidade de generalidade. Berkeley ilustra esta idéia, com a fábula do Solitary Man,
um homem que, não tendo nunca se comunicado, não tem necessidade de generalizar.
(Cf. Condillac, E. - Traité des Sensations, in Oeuvres Philosophiques de Condillac,
Paris, PUF, 1947, cap.VI e Berkeley, G. - Introdução Manuscrita, seção 48.)
81. Isto mostra o quanto é equivocada ainterprepretação de idéias do tato, como o
equivalente de "objeto material". No esquema dualista não é admitida a inversão da
"direção" da relação de representação. É absurdo dizer que "o objeto representa a
representação" mas é perfeitamente aceitável a afirmação de que uma idéia do tato pode
antecipar uma idéia da visão. Este sentido da relação é simplesmente menos costumeira
mas nem por isso menos possível, já que regida pela experiência e portanto contingente.
Não há um privilégio do tato, como se ele fosse sinônimo de "real" ou "externo". Ele é
mais estável, a relação significante em geral vai da visão ao tato pois isto é o que
melhor resolve os problemas práticos que se apresentam à percepção.
82. A interpretação da relação significante em termos de relações causais leva à falsa
dicotomia idealismo/realismo. Não se pode afirmar ao mesmo tempo que as coisas
causam as idéias e que as idéias causam as coisas, mas pode-se afirmar que a visão ou a
audição podem antecipar o tato tanto quanto o tato pode antecipar a visão ou a audição.
83. Para Bertil Belfrage Berkeley apresenta teorias da generalização diferentes na
Introdução Manuscrita e na Introdução Publicada. Na primeira, Berkeley estaria ainda
muito próximo de Locke quanto à crença na necessidade de uma relação de nomeação
entre o termo geral e uma idéia determinada em pelo menos algum momento da
constituição de seu significado. O termo particular "Pedro", por exemplo, significa um
conjunto de idéias completamente determinado, uma imagem: sua definição deve
fornecer uma descrição completa desta idéia assim como o faz a definição ostensiva
"este homem". Porém a linguagem não é possível apenas com nomes próprios. Como,
então, o termo geral pode ser significante? Como o termo "triângulo" pode fazer
referência a todos os triângulos, se eles possuem diferentes ângulos, diferentes
tamanhos, diferentes cores? Nem o termo geral "triângulo" (ao contrário do nome
próprio, que neste caso seria equivalente a "este triângulo que estou vendo neste
momento") e nem sua definição são descrições exaustivas de seu significado.
"Triângulo" é definido como "uma superfície plana compreendida por três linhas retas".
Pelo fato mesmo de ser incompleta, de não se referir a nenhuma qualidade particular,
vários triângulos diferentes podem ser adequados a esta definição. A palavra "triângulo"
usada na definição é significante porque nomeia um triângulo particular. Poderia
nomear qualquer outro, mas apenas um de cada vez. É no caráter necessariamente
incompleto de sua definição, que não menciona características particulares dos
indivíduos, que consistiria a força do termo geral, pois com isso ele pode ser adequado
a diferentes idéias. Cf. Belfrage, Bertil - George Berkeley's Manuscript Introduction,
Doxa (Oxford), 1987, pg. 40.)
84. Berkeley chama a primeira de "linguagem artificial" ou "instituída pelos homens" e a
segunda de "linguagem natural". No Alciphron Berkeley chega a dizer que "as leis da
natureza constituem a gramática da linguagem da natureza."
85. Berkeley fala, na Nova Teoria da Visão, de certas unidades perceptivas às quais dá o
nome de mínimas. Estas seriam uma espécie de limite entre a percepção e a não-
percepção de uma idéia. Uma visão microscópica, assim como uma visão telescópica,
possuem o mesmo número de mínimas. Porém esta unidade mínima parece obedecer a
um critério mais lógico do que perceptivo. Senão, como saber, por exemplo, quantas
mínimas possui um dado campo visual ou tátil? Ou como decidir o momento a partir do
qual deixamos de ver um ponto luminoso que some na distância? O fato é que Berkeley
precisa desta unidade sensível para a contrapôr à unidade do ponto matemático, que
pode ser infinitamente dividido. A mínima sensível é por definição a unidade sensível
não divisível em outras menores. Sobre a matemática como linguagem e a crítica da
idéia abstrata de número, veja Principles, 121ss.
86. Cf. M. W. Beal, Berkeley's Linguistic Criterion, in George Berkeley: Critical
Assessements, ed. Walter E. Cray, Routledge, 1991, pg. 376.
87. Brickman (Berkeley et le Voile des Mots, Paris, J.Vrin, 1993), Belfrage (George
Berkeley's Manuscript Introduction, Doxa/Oxford, 1987) e Dégremont (Berkeley, l'Idée
de Nature, Paris, PUF,1995) aceitam o ponto de vista segundo o qual a linha que
delimita atividade e passividade passa no seio do espírito. Bento Prado chamou a
atenção para as dificuldades que esta questão levanta e que seriam retomadas e
resolvidas, à sua maneira, por Bergson (Cf. Prado Jr, Bento - Presença e Campo
Transcendental, São Paulo, Edusp, 1989, Cap. III, § 4).
88. Pp, 27.
89. Beal, M. W. - Berkeley's Linguistic Criterion, in George Berkeley: Critical
Assessements, ed. Walter E. Cray, Routledge, 1991.
90. Three Dialogues, pg. 232, 30 (Works II).
91. O que temos hoje como corpo dos Principles é na verdade uma primeira parte de uma
obra maior que deveria ser composta de pelo menos mais três. Pelo Philosophical
Commentaries sabemos que Berkeley tinha em mente um sistema que deveria conter,
além da primeira parte (Metafísica), uma parte sobre Filosofia Moral, outra sobre
Matemática e outra ainda de Filosofia Natural. Berkeley acaba escrevendo textos mais
curtos sobre a matemática (The Analist) e sobre a ciência (De Moto). O Alciprhon, por
sua vez, pode ser considerado como o substituto do que seria a Filosofia Moral
planejada. O fato de o Principles publicado constituir apenas uma primeira parte de
uma obra mais vasta contribuiu para a interpretação do imaterialismo como sendo toda
a filosofia de Berkeley.
92. Todas as vantagens da teoria elaborada até este ponto fundam-se no caráter contingente
das relações significantes. Berkeley precisa reintroduzir algum tipo de necessidade e
este objetivo será alcançado no corpo dos Principles com a substância espiritual. A
ontologia do Principles decorre naturalmente, portanto, dos escritos anteriores.
Berkeley não pode negar a substância enquanto tal. Fazer isto seria negar toda
necessidade, seria entregar o grande sistema de signos da natureza ao acaso, seria
admitir a não-necessidade da existência de Deus.
93. É aqui que Berkeley desenvolve sua argumentação anti-materialista. Como afirmamos
no início, a leitura isolada deste texto foi a maior causa das interpretações equivocadas
de que Berkeley foi vítima. O imaterialismo foi lido como uma negação do senso
comum, quando na verdade seu objetivo era defendê-lo das consequências indesejáveis
da especulação filosófica.
94. Veja "Nota do Editor" em "Obras" ("Luce et Jessop"), pg.41 e em "Berkeley
Philosophical Works including the works on vision", pg. 89.
95. O termo "noção" foi introduzido nas seções 27, 89, 140 e 142 da segunda edição do
Principles.
96. Pp, 02: "But besides all that endless variety os ideas or objects of knowledge, there is
likewise something which knows or perceives them and exercises divers operations, as
willing, imagining, remembering, about them. This perceiving, active being is what I
call mind, soul or myself. By which words I do not denote any one of my ideas, but a
thing entirely distinct from them, wherein they exist, or which is the same thing,
whereby they are perceived; for the existence of an idea consists in being perceived."
Cf. no Philosophical Commentaries, 429 a primeira formulação do "novo princípio" por
Berkeley:
"Existere is percipi or percipere (or velle, i. e., agere).
The horse is in the stable, the Books are in the study as before."
97. Philosophical Commentaries, Notebook A, 657-667.
98. O sentido que Berkeley dá aqui ao termo "substância" parece ser o grande desafio à
interpretação deste aspecto de sua obra. Trata-se da séria questão já formulada pelo
próprio Berkeley através do personagem Hylas: por que a crítica à substância material
não pode ser igualmente aplicada à substância espiritual, ou seja, à substância tout
court? O que está em questão é, portanto, se a clef de voûte do edifício teórico não é
necessariamente dogmático, em detrimento das exigências críticas em nome das quais
ele foi construído. Tem sido igualmente objeto de disputas a questão da relação do
Principles com a Nova Teoria da Visão. No Principles Berkeley não apenas dá uma
nova interpretação da substância clássica mas dá-lhe um novo sentido. Com efeito,
Berkeley não afirma jamais que as idéias sejam acidentes da substância espiritual, ainda
que afirme que exista entre ambos uma relação de dependência. A relação atividade /
passividade parece vir antes do par substância / acidente: o ser da idéia consiste em ser
percebida (passividade) e portanto é necessário que haja algo que a perceba (atividade).
Mas nenhuma indicação desta ontologia é encontrada na Nova Teoria da Visão. Ali
trata-se de analisar as aparências, ou seja, como no mundo as coisas se dão para que ele
nos apareça desta determinada forma e não de dizer o porque de as coisas assim
ocorrem. Em outras palavras, a Nova Teoria da Visão faz uma espécie de descrição do
mundo e dos mecanismos que o fazem assim se dar à percepção, enquanto que o
Principles procura mostrar qual é o arcabouço ontológico que está por trás destes
mecanismos e destas aparências. A Teoria da Visão Vindicada e Explicada, publicada
apenas em 1733, tem a vantagem de sintetizar estas duas facetas da empreitada de
Berkeley e mostrar o quanto são elas interdependentes. (Cf. Philosophical
Commentaries, 517: "I take not away substances. I ought not to be accus'd of
discarding Substance out of the reasonable World. I onely reject the Philosophical
sense (wich in effect is no sense) of the word substance".)
99. Tvve, 10.
100. Entre outras coisas, a Teoria da Visão Vindicada e Explicada mostra o quanto é falsa a
interpretação de Berkeley como um "sensualista", isto é, como alguém nega a
importância da razão e acredita que a percepção é pura recepção passiva de idéias. As
idéias são passivas, mas a alma sem a qual elas não podem existir é caracterizada pela
atividade. A sensibilidade é "organizada" em função da previsão de uma ação. Ora, esta
é a concretização de uma vontade que é a instância por excelência da atividade. No
interior do paradigma materialista, apenas duas alternativas se apresentam para a
explicação da "organização dos dados sensíveis": ou a intervenção de uma instância
superior, racional, inata; ou então a "associação". Esta última via, a empirista, resultou
mais tarde na distinção entre sensação e percepção. Em Berkeley as sensações próprias
de cada sentido se organizam em sua relação com as idéias de outros sentidos e com a
linguagem.
101. É grande a tentação de considerarmos esta representação evocada na memória como a
representação em sentido dualista, já que é uma espécie de cópia da idéia original.
Porém lembremos que para Berkeley duas idéias podem ser semelhantes mas não
podem ser causa uma da outra, enquanto que e a representação em sentido clássico
exige a concorrencia destas duas condições.
102. Ainda que Berkeley utilize às vezes palavras que parecem apontar nesta direção. (Cf.
Tvve, 60, 64; Ntv, 03.) O objetivo maior da Nova Teoria da Visão consiste em mostrar
como se dá esta relação, ao mesmo tempo constante e não-necessária.
103. Tvve, 11-12.
104. Costuma-se dizer que Berkeley entendeu mal Locke, que a idéia abstrata de que fala
Locke é mais um conceito do que uma idéia. Parece que o real problema é a dificuldade
de se distinguir entre conceitualismo e realismo nas doutrinas dos universais. Berkeley
interpreta indevidamente o conceitualismo de Locke como realismo? Talvez seja mais
exato dizer que para Berkeley realismo e conceitualismo se equivalem: enquanto
conceito, a idéia abstrata (o universal) é contraditória (substância sem atributo, sujeito
sem predicados) e enquanto realidade (coisa) é inconcebível porque impossível.
105. "He who is not a perfect stranger to the writings and disputes of philosophers, must
need acknoledge that no small part of them are spent about abstract ideas. These are
in a more especial manner, thought to be the object of those sciences which go by the
name of Logic and Metaphysics, and of all that which passes under the notion of the
most abstracted and sublime learning, in all which one shall scarce find any question
handled in such a manner, as does not suppose their existence in the mind, and that it
is well acquainted with them." (Ip, 06). Veja ainda Im seção 07: "By abstract ideas,
genera, species, universal notions all which amount to the same thing, as I find those
terms explain'd by the best and clearest writers, we are to understand ideas wich
equally represent the particulars or any sort..."; e seção 28: "It were an endless as well
as an useless thing, to trace the Schoolmen, those great masters of abstraction, and all
others wheather ancient or modern logicians and metaphysicians, thro' those numerous
inextrincable labyrinths of errour and dispute...". A referência a Aristóteles é explícita
na seção 22: "...Aristotle (who was certainly a great admirer and promoter of the
doctrine of astraction), have these words...".
106. Trata-se, do que temos chamado de pressuposto dualista que, naturalmente útil na
esfera da ação e da linguagem comum, é transposta para a esfera do conhecimento
como problema, o que leva à crença na necessidade de entidades intermediárias entre as
idéias e as coisas.
107. Aristóteles, Categorias, 6,10-15: "On définit, en effet, le haut comme le contraire du
bas, appelant bas la région centrale parce que la distance maxima est celle du centre
aux extrémités de l'Univers. Il semble même que c'est de ces contraires qu'on tire la
définition de tous les autres contraires, puisque les termes qui, dans le même genre,
sont éloignés l'un de l'autre par la plus grande distance, sont définis comme des
contraires." Wunnemburger, J-J: La Raison Contradictoire, pg.54: "L'architecture
duelle des concepts est semblable a celle des corps vivants, et la dichotomie est à
l'esprit dialecticien ce que la bilatéralité est au corps. Losque, dans le Phèdre, Platon
subdivise les espèces de dèlire selon la gauche et la droite, la méthode se fonde
explicitement sur l'organizacion anatomique, puisque "comme dans un seul corps, il y
a des couples de membres qui ont le même nom, ceux de gauche et ceux de droites". Ce
parallélisme structurel montre bien que la prócedure dichotomique n'est pas seulement
fonctionnele. Les dualités sont à la fois un levier et un mirroir des classifications
naturelles, épousant une constitution binaire latente du monde."
108. Heidegger, Qu'est-ce qu'une chose?, pg. 37.
109. Smith, A. D. - Berkeley's Central Argument, in Essays on Berkeley, Clarendon Press,
Oxford, 1985. Smith vê a a teoria da percepção berkeleiana como tentativa de resolução
de um problema deixado em suspenso pela teoria da percepção de Descartes, que por
sua vez teria tentado sem sucesso resolver um problema já aristotélico. Na teoria do
conhecimento escolástico, conhecer é se apropriar da forma do objeto. Os objetos
físicos são compostos de matéria e forma, mas a matéria, em si mesma, é ininteligível:
objetos só são conhecido enquanto possuidores de uma forma. Porém, se perceber um
objeto é possuir a sua forma, da mesma maneira que ele a possui, como é possível ao
sujeito permanecer distinto do objeto? Para que haja conhecimento é preciso que se dê,
portanto, uma apreensão imaterial da forma. Esta deve acontecer mesmo quando o
conhecimento é sensível, um conhecimento que ocorre em total dependência de
faculdades órgãos corpóreos. Este conhecimento sensível é limitado aos particulares: só
temos um genuíno conhecimento do objeto como pertencendo a determinada espécie
quando o intelecto ativo abstrai de suas condições materiais particulares a pura forma.
Neste sentido, o modelo cartesiano de conhecimento teria muito em comum com a
tradição aristotélica: ambos tentariam justificar a idéia de que o conhecimento depende,
em última instância, de um direcionamento intencional da mente para o objeto, daí
resultando uma recepção, pelo sujeito, de algum aspecto de seu ser. Para ambos esta
recepção é necessariamente imaterial. Aí residiria o problema maior de Descartes no
que diz respeito à percepção: como é possível que tal recepção imaterial da forma se dê
através de um órgão corpóreo, material?
110. Ou seja, o dualismo moderno pode ser visto como um resultado natural do abandono da
ontologia e da epistemologia aristotélicas em favor do mecanicismo da ciência nascente.
A matematização e geometrização objetivante do espaço exige que o conceito clássico
de idéia como ousia, essência, dê lugar ao conceito moderno de idéia como figura. A
consequência é um grande aumento da distância que separa a alma das coisas, distância
esta que em Aristóteles era de alguma forma minimizada pelo conceito de logos. (Para
Aristóteles, o logos é definido tanto como relação de conveniência entre a sensação e o
órgão sensível, quanto como condição e expressão da essência; é ao mesmo tempo
condição da percepção das coisas e do discurso sobre elas.) Veja a este respeito
Marion, J-L, L'ontologie Gris de Descartes, Paris, PUF, 1987, Cap. III.
111. Aristoteles, De Interpretatione, I, 16a, 1-5.
112. Aubenque, P., Le Probléme de L'Être chez Aristote, Cap. II,§1.
113. Cassin, B., Aristote et le Logos, Cap V.
114. O associacionismo de Locke, assim como o de Hume, opera uma espécie de introjeção
daquele espaço que os geômetras e os ópticos geométricos havia projetado no mundo: a
mente passa a ser vista como uma espécie de espaço interno e as idéias como unidades
mais ou menos discretas que vão associar-se segundo leis inspiradas pela gravitação
universal de Newton. Sob este aspecto, Berkeley difere radicalmente de seus colegas
empiristas, pois a forma de relação entre as idéias-signos é não a associação e sim a
significação e ela é tão dinâmica quanto aquela que rege as relações significantes que
caracterizam a linguagem das palavras. Neste sentido, Berkeley está imune às críticas
de Kant que afirma que o conceito de espaço do empirismo é ingênuo porque o espaço
é condição de possibilidade da percepção e não objeto da percepção. Berkeley não
afirma jamais que percebemos o espaço através das idéias imediatas da visão e sim que
o espaço aparente (não há outro) nasce da confluência significante entre idéias de
diversos sentidos que antecipam-se umas às outras.
115. Marion, J.-L. - L'Ontologie Gris de Descartes, Paris, PUF, 1987, cap. III; Cassin, B.,
Aristote et le Logos, Cap V.
116. Tvve, 36.
117. Bachelard, G., La Dialetique de la Durée, Paris, Quadrige/PUF, 1989, início do avant-
propos.
118. Diz o entry 556 do Philosophical Commentaries: "Men have been very industrious in
travelling forward they have gone a great way. But few or none have gone backward
beyond the Principles. On that side there lys much terra incognita to be travel'd over &
discover'd by me. A vast field for invention:" (sic). Vimos como o ponto de partida de
Berkeley em sua jornada por esta terra incógnita é a crítica à teoria lockeana da
significação das palavras, por ele julgada como sendo estritamente referencialista: a
nomeação é a função primordial das palavras, estas so significam nomeando idéias e
cada uma delas uma idéia. Berkeley parece se colocar a seguinte questão: Será que
estes dois tipos de relação (entre coisas e idéias e entre idéias e palavras) são realmente
tão distintos quanto parece? Não será o caráter absoluto da necessidade da primeira e da
contingência da segunda já motivo de suspeita? Será que a crença nesta relação unívoca
entre uma palavra e uma idéia não é a reprodução (ou pelo menos o produto de uma
"contaminação") daquela concepção da relação entre idéia e realidade, entre cópia e
original, que caracteriza o conceito de representação? Com efeito, as noções de
semelhança e de causalidade parecem estar muito diretamente ligadas à experiência
comum, a primeira como resultado do ato de comparação entre objetos coexistentes no
espaço e a segunda como resultado da observação da regularidade entre os fatos que se
sucedem no tempo. Assim como, por razões práticas o significado ganha prioridade em
relação ao significante, assim também o necessário (ou aparentemente necessário)
recebe mais atenção e importância do que o contingente (ou aparentemente
contingente): é o conhecimento da regularidade que permite a previsão, que é o que
mais importa quando se trata de preparar uma ação. O inesperado parece assim surgir
como excessão à regularidade da natureza e o contingente como uma "falha" do
necessário. Aceitando que a idéia de necessidade é mais "natural" e aparentemente mais
evidente do que a idéia de contingência, pode-se suspeitar que esta só se constitui sobre
o funda daquela, o que justificaria a confusão entre as duas quando expressas pela
linguagem.