Santos é famosa por muitas razões. Tem praias que viram cartão-postal, um time que revelou Pelé, o maior porto da América Latina e… prédios tortos. Sim, tortos. Não é miragem de verão, nem ressaca da noite anterior. Quem caminha pela orla com olhos atentos logo percebe que alguns edifícios parecem ter dançado um samba fora do compasso. Uma leve inclinação aqui, outra ali. Quase como se tivessem tomado uma caipirinha a mais — e decidido não voltar ao prumo.
Talvez nenhum cartão-postal traduza melhor essa cidade do que os prédios que desafiam o prumo. Eles já viraram atração turística, motivo de piada carinhosa entre os moradores e até souvenir de loja de lembranças: miniaturas de concreto torto que cabem na palma da mão. Turistas tiram fotos, moradores se acostumam, e a inclinação, que começou como problema estrutural, hoje também carrega um certo charme. Como se os prédios de Santos tivessem aprendido a dançar com o solo — lentamente, milimetricamente, mas sem cair.
Quem quer ver essa coreografia de perto pode trocar o calçadão pelo mar. Passeios de canoa, caiaque ou barco cortam a orla e oferecem o melhor camarote: do nível da água, as fachadas inclinadas parecem escorar o céu, enquanto o vaivém das ondas embala uma visão quase surreal. É a cidade vista por outro ângulo — literalmente.
Fabiana Martins, 50 anos, vive há mais de duas décadas em um desses edifícios inclinados. E, como tudo na vida, com o tempo, acostuma-se. “O prédio já tinha essa inclinação, não era algo alarmante, mas dava para perceber se olhasse com atenção”, lembra ela, sobre os primeiros dias no apartamento com vista para o mar, no bairro do Boqueirão.
Aos poucos, o que era exceção vira rotina. Um centímetro por ano, dizem os laudos da Prefeitura. Pouco perceptível ao olho nu, mas visível na comparação entre o ontem e o hoje. Em fotos antigas, ou em relação aos novos vizinhos de concreto, os prédios veteranos entregam sua dança lenta e silenciosa.
Enquanto isso, dentro dos lares, a vida se adapta. Uma porta que arranha o chão, uma estante com calço, um nível de bolha que já se aposentou. “A administração do prédio está sempre de olho. Falamos disso em todas as reuniões. Tem engenheiro acompanhando, reforço na estrutura…”, garante Fabiana, sem sinal de aflição. A confiança é construída, como os prédios — com base sólida e vigilância constante.
O solo de Santos tem seus segredos. E não são segredos leves. Uma mistura traiçoeira de areia e argila mole, como um tapete úmido onde alguém resolveu construir castelos de concreto. Rodolfo Bonafim, geólogo e climatologista, conhece bem a receita desse solo instável. “A sustentação é limitada, especialmente nos prédios antigos, com fundações rasas”, explica.
Como se não bastasse a base frágil, as mudanças climáticas vêm para complicar. A elevação do nível do mar, chuvas mais intensas, erosão costeira… tudo isso satura ainda mais o solo. “É como se o chão ficasse encharcado, perde firmeza. ”, completa o especialista.
A metáfora da liquefação não é exagero. Em casos extremos, o solo pode perder tanta resistência que começa a se comportar como um fluido. Não é o enredo de um filme-catástrofe, mas um alerta que já tem respaldo técnico — e exige ação.
A Prefeitura de Santos, ciente da situação, realiza monitoramentos técnicos periódicos. Segundo a Secretaria de Obras e Edificações, os laudos apontam uma inclinação média de 1 centímetro por ano. O número, embora pequeno, é levado a sério. “Os prédios estão sendo acompanhados de perto. A responsabilidade é dos condomínios, que precisam seguir as orientações técnicas”, informa a gestão municipal.
Atualmente, são cerca de 60 edifícios com maior inclinação sob vigilância intensiva. A estimativa geral é de que mais de 100 tenham algum nível de desvio. Para enfrentar o desafio, moradores criaram uma associação com 31 condomínios, em parceria com o poder público. O objetivo: garantir que, mesmo tortos, os prédios se mantenham de pé — firmes, como a vontade de quem mora neles.
Dona Maria Rosa tem 88 anos e a leveza de quem já viu de tudo. Com mais de 45 anos no mercado imobiliário, carrega na memória uma coleção de histórias. Quando perguntam até quando trabalhou, ela ri: “Até quando apareceu cliente!”
Ela vendeu imóveis por toda a cidade. Frente para o mar? Vários. Prédios tortos? Também. E nunca achou que isso fosse problema. “Quem tem dinheiro compra, não questiona. E não se arrepende”, garante. Hoje, mora em um desses apartamentos de frente para o mar, e o amor pelo lar é inegociável. “Esse eu não vendo de jeito nenhum. Vai ficar para as minhas filhas”.
O café da manhã dela vem com meditação e mar azul. Uma espécie de luxo cotidiano, conquistado com trabalho e teimosia. Um sonho realizado — mesmo que um pouco inclinado.
É a pergunta que paira no ar, entre um passeio de caiaque e um clique de turista curioso: esses prédios tortos vão cair?
Segundo a Prefeitura, não há risco iminente. “Nenhum dos prédios da cidade tem risco de queda hoje”, afirma o secretário de Governo, Fábio Ferraz. Laudos técnicos obrigatórios são exigidos e cobrados. Até agora, nenhum apresentou lesões graves.
As soluções propostas vão desde o controle da inclinação até tentativas de correção. “Estancar o movimento é o ideal. Mas, em alguns casos, seria possível até tentar retornar o prédio à posição original. Como usar um macaco hidráulico, só que em escala arquitetônica”, explica Ferraz.
Grande parte dos edifícios foi construída décadas atrás, com as tecnologias disponíveis à época. Fundos rasos, conhecimento limitado do solo, e uma cidade que ainda aprendia a crescer entre o mar e o mangue. “Hoje, os prédios mais novos já não enfrentam isso. A engenharia já superou essa etapa”, diz Ferraz.
Se hoje os prédios seguem inclinados, monitorados e seguros, o mesmo se pode dizer da cidade. Que se curva, mas não quebra. Que desliza um centímetro por ano, mas permanece inteira. Que olha o mar com certa inclinação no olhar, como quem vive há tanto tempo à beira do abismo que já aprendeu até a amar o vento.
Gabriel Zanuti
RedatorIsabelle Clemente
EditoraAlex
Castro