Aos 21 anos, Gabriel Mazagão transforma a dor da perda em energia para seguir adiante com disciplina do Exército e a leveza do carnaval.
Na lembrança de Gabriel Mazagão, 21 anos, o barulho da água ainda ecoa como um trovão inesperado. Era 2022 quando a enchente levou sua casa, seus móveis, seus álbuns de infância e tudo o que lhe cabia chamar de vida até então. Morador da Zona Noroeste de Santos, Gabriel viu, em poucas horas, o que havia construído se desfazer em correnteza. Desde aquele dia, vive em reconstrução, juntando os pedaços não apenas do que perdeu, mas também de si mesmo.
Naquela manhã, o céu parecia pesado, cinza como chumbo. Gabriel lembra de ter acordado com o som da chuva batendo no telhado, um ritmo que logo se transformou em tormento. “Quando percebi, a água já estava entrando pela porta da cozinha. Eu tentei salvar o que deu, mas em questão de minutos, tudo já estava boiando”, conta, com a voz embargada. A enchente tomou as ruas, arrastou memórias e, junto delas, a sensação de segurança. "O mais difícil não foi perder as coisas, foi ver a casa da minha mãe tomada d’água. Era o lugar onde a gente ria, brigava, vivia. E, de repente, não existia mais.”
De fala alta e jeito tranquilo, Gabriel se emociona com facilidade. Recorda cada detalhe da tragédia como quem revisita um velho filme. A lembrança é amarga, mas ele fala com uma serenidade que só quem sobreviveu pode carregar. Ainda assim, há algo em seu olhar que denuncia o cansaço de quem precisou amadurecer depressa demais. Ao mesmo tempo, a desconfiança transparece: não é a todos que confia suas memórias mais íntimas.
Gabriel em sua despedida do Exército Brasileiro.
O Exército moldou parte desse traço. Foram quatro anos de disciplina, fardas alinhadas e regras rígidas, que deixaram em Gabriel a marca da responsabilidade e da firmeza no olhar. Ele se recorda do primeiro dia no quartel, o corte de cabelo, o uniforme novo, o som do apito ecoando às seis da manhã. “No começo eu pensei: o que é que eu tô fazendo aqui? Mas com o tempo, fui aprendendo a respeitar a hierarquia, a confiar no grupo. O Exército me deu base, sabe? Me ensinou a segurar o tranco.”
Sem rumo, aos 18 anos, decidiu seguir outro chamado: o do Exército Brasileiro. “Achei que era hora de começar de novo”, diz. No início, tudo era novidade, a rotina intensa, hierarquia, disciplina. O que parecia apenas uma passagem se tornou parte fundamental da sua formação. Gabriel acabou ficando quatro anos, até fevereiro de 2025. Saiu de lá com o corpo firme e a mente moldada, pronto para enfrentar o mundo civil novamente. “Eu entrei menino e saí homem. O exército me deu uma base que eu carrego até hoje.”
Mas se a caserna ensinou a rigidez, foi o Carnaval quem devolveu a ele a leveza. Gabriel começou sua história no mundo do samba ainda menino, aos dez anos. A escola Mãos Entrelaçadas, no bairro Rádio Clube, foi sua primeira casa. Mais tarde, passou pela escola de samba Zona Noroeste, mas acabou voltando à sua eterna paixão: a Mãos Entrelaçadas. Foi ali que o menino aprendeu os primeiros toques de tamborim e surdo, e onde entendeu que o som do Carnaval podia curar silêncios que a vida impunha. “Ali eu encontrei uma família. A bateria era um lugar onde ninguém te julgava, onde todo mundo falava a mesma língua: a da música.”
Depois de alguns anos tocando nas escolas de Santos, em 2024, Gabriel começou a frequentar os ensaios da X-9, a pioneira da folia santista. O barracão cheirava a tinta fresca e fantasia nova. O chão vibrava com cada batida de surdo. “A energia ali era diferente. Eu chegava cansado do trabalho, mas bastava pegar o instrumento e tudo mudava”. Mal sabia ele que seria pé-quente: em seu primeiro desfile pela escola, a X-9 se consagraria campeã, quebrando um jejum de dez anos sem títulos. “Quando anunciaram o resultado, chorei. Era como se eu tivesse ganhado junto com a escola. Foi o meu renascimento.”
Depois de alguns anos tocando nas escolas de Santos, em 2024, Gabriel começou a frequentar os ensaios da X-9, a pioneira da folia santista. O barracão cheirava a tinta fresca e fantasia nova. O chão vibrava com cada batida de surdo. “A energia ali era diferente. Eu chegava cansado do trabalho, mas bastava pegar o instrumento e tudo mudava”. Mal sabia ele que seria pé-quente: em seu primeiro desfile pela escola, a X-9 se consagraria campeã, quebrando um jejum de dez anos sem títulos. “Quando anunciaram o resultado, chorei. Era como se eu tivesse ganhado junto com a escola. Foi o meu renascimento.”
Gabriel tocando pela Mangueira.
No mesmo ano, o jovem realizou outro feito: estreou no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, pela Estrela do Terceiro Milênio, do Grajaú. Ele lembra da imensidão da avenida, das arquibancadas iluminadas, do coração disparando antes da bateria entrar. “Ali eu entendi o que é o Carnaval de verdade. O som da bateria ecoando, a galera gritando... parecia que o chão tremia. Eu nunca vou esquecer”. A escola conquistou o oitavo lugar e se manteve no grupo especial, e Gabriel, pela primeira vez, viu seu sonho desfilar em escala gigante.
No Rio de Janeiro, ele ainda não desfilou, mas seu coração bate mais forte nas cores vermelho e branco do Salgueiro. Entre batuques e ensaios, Gabriel teve a chance de gravar o samba-enredo de 2024 da Dragões do Castelo, em Santos, mostrando seu talento nos estúdios e conquistando espaço no universo carnavalesco. E quando a Mangueira, sua escola dos sonhos, visitou Santos, veio o convite inesperado: tocar ao lado dos ritmistas cariocas. “Foi como realizar um sonho antigo. Quando peguei a caixa e toquei junto com eles, parecia que o menino de dez anos lá do Rádio Clube estava ali comigo.”
Mas antes do samba e das conquistas, havia outro desejo: o de ser jogador de futebol. Começou aos seis anos, passou por peneiras em clubes como Santos e Corinthians, até assinar seu primeiro contrato profissional, em 2020, com o Novo Horizontino. A pandemia, porém, interrompeu o destino: cortes financeiros afastaram o jovem do campo, e o sonho se desfez no mesmo silêncio com que o estádio se fechou. “Foi um baque. Eu achava que era o fim de tudo. Quando me dispensaram, senti como se tivessem arrancado um pedaço de mim.”
Quando o assunto é família, ele se revela carinhoso, leal e atento aos que ama. Os olhos de Gabriel se suavizam. O nome da avó Janice, quando pronunciado, vem sempre acompanhado de um breve silêncio, daqueles que dizem mais do que qualquer palavra. Era para a casa dela que ele corria todos os dias depois da escola, com a mochila pendendo de um ombro e o uniforme já amarrotado pelas brincadeiras na rua. Lá, o cheiro de comida boa tomava conta do ar, e a risada da avó se misturava ao barulho das panelas.
Ela fazia todas as suas vontades: preparava o prato favorito, participava das brincadeiras, inventava histórias e, com um jeitinho doce, convencia a filha a deixar o neto dormir mais uma noite sob o seu teto. Gabriel era o neto preferido, e não escondia isso. Quando ela partiu, o vazio foi maior do que ele podia suportar. Foi ali, no compasso do luto e da saudade, que o samba entrou para preencher o silêncio — o carnaval virou refúgio, batucada que embalava as lembranças e curava, pouco a pouco, a dor da ausência.
A mãe, Tatiane, fala com orgulho e ternura. “Passamos por muitas coisas na infância dele, e por isso hoje ele se preocupa tanto e preza sempre pelo bem da família e dos amigos. Demonstrar carinho e amor era muito difícil para ele antigamente, mas por medo de perder as pessoas que amava, ele começou a demonstrar mais.”
Nas tardes de domingo, quando o trabalho permite, Gabriel costuma visitar a mãe para o almoço. O som da panela de pressão se mistura às risadas da família, e o cheiro de café fresco invade a sala. É nesses pequenos rituais que ele encontra refúgio, o mesmo tipo de paz que o batuque da bateria lhe dá nas noites de ensaio.
Hoje, trabalhando como Operador de Gate na empresa Santos Brasil, Gabriel divide o tempo entre o trabalho, os ensaios e o sonho de crescer ainda mais no carnaval. Reconstrói a vida no compasso de quem perdeu tudo, mas encontrou, no batuque e no afeto, o ritmo certo para seguir em frente.