Na esquina entre a compostagem e a esperança, entre a terra viva e os conselhos municipais, está Renato Prado – 60 anos, olhar sereno e atuação firme. Alguém que deixou para trás o mundo das redes digitais para tecer, com as mãos, redes humanas e vivas de uma cidade em busca de sua face mais justa, mais verde, mais comestível.
Após se aventurar entre áreas e fronteiras, o santista deixou os sistemas digitais para reprogramar a própria vida trablhando em Organizações da Sociedade Civil (OSC). Desta vez, com os pés no chão, literalmente. Hoje, ele fala da compostagem como quem descreve um milagre doméstico: o resíduo que vira vida. A casca da banana que vira flor. O lixo que, bem cuidado, vira insumo. E talvez essa seja a metáfora perfeita de sua jornada: o que parecia fim, virou começo.
Renato nasceu na Vila Belmiro, na Beneficência Portuguesa, no já longínquo ano de 1965, mas sua história cruzou fronteiras quando, aos 22 anos, decidiu atravessar o Atlântico. Em 1987, mudou-se para a França, na cidade de Caen, Normandia. O que parecia uma viagem temporária, simples visita à uma moça que conhecera no Brasil durante um intercâmbio em 1985, transformou-se em um longo capítulo de 15 anos de vida europeia.
Lá, se estabeleceu com a moça, que virou sua esposa, e teve duas filhas. Nesse período, aventurou-se no mundo do vídeo, onde já tinha experiência adquirida em produtoras da Rede Globo, em São Paulo, atuando como editor.
“A proposta era estudar na Universidade da Normandia. Fui com visto de estudante, mas logo percebi que precisaria trabalhar. Em quatro meses arrumei emprego no sul de Paris”.
Estação da Cidadania é o atual local de trabalho de Renato Prado
Foto: Rodrigo Cirilo
A relação com a França, porém, não foi linear. Entre 1991 e 2000, Renato e a família retornaram ao Brasil após o nascimento das filhas, com passagens por São Paulo e pela Bahia, onde viveram por quase seis anos. “Sempre tive essa conexão com o Nordeste, meu pai morou em Recife e Salvador. Queria que minhas filhas tivessem essa vivência, além de ser um clima mais agradável que o da Normandia”, conta.
O casamento nunca foi prioridade e acabou se formalizando apenas em 2004, quando as meninas já eram mais velhas. “Foi mais por conta da doença da mãe dela que resolvemos fazer essa cerimônia. Nunca tivemos preocupação com a formalidade”, lembra.
Em 2012, Renato voltou ao Brasil a convite de uma companhia canadense na qual já havia trabalhado na França. Assumiu cargos de liderança, incluindo o de country manager, negociando contratos de tecnologia, entre eles, um importante acordo com a Petrobras. Sua missão era expandir os negócios de TI no país.
Mas o auge profissional coincidiu com um período de rupturas pessoais. Após a separação em 2015, enfrentou também a chegada de um novo chefe, que era amigo do CEO e sem afinidade com o trabalho. “O cara não entendia nada do que fazia. A coisa não rolou”.
Renato viu sua estrutura financeira e emocional desmoronar. “Foi um momento forte. Fiquei bastante baqueado, cheguei a ter depressão. Foi difícil retomar outro rumo”.
A virada veio com a crise pessoal trazendo novos rumos e possibilidades para crescer. O primeiro passo no terceiro setor e nos projetos ambientais foi tímido, como um broto em busca de luz: o projeto “Condomínio Sustentável”, financiado pelo Fundo Municipal de Meio Ambiente de Santos. “Depois disso, nunca mais saí”, conta. Em 2017, compostagem ainda era um sussurro. Até que, em uma reunião, surgiu Dionísio – senhor de fala mansa e mãos de agricultor – com um mantra: “Compostagem, compostagem, compostagem.” E Renato ouviu. Ouviu de verdade.
Na Estação da Cidadania, em Santos, uma pequena caixa de compostagem começou a receber restos de cozinha desses dois sonhadores. Depois, vieram mais. A caixinha virou coletivo, o coletivo virou OSC, e em 2022 nasceu formalmente o Composta & Cultiva – organização que transforma resíduos orgânicos em adubo, comunidades em ecossistemas e ideias em políticas públicas.
“Hoje estamos compostando cerca de duas toneladas por mês. Isso significa evitar a emissão de quase uma tonelada e meia de CO₂. Isso não é pouco. É ciência. É ação climática de verdade”.
Mas Renato não parou aí. De uma visita a uma horta comunitária no bairro Jardim São Manoel, na Zona Noroeste de Santos, nasceu o BAAU – Banco de Alimentos e Agricultura Urbana, iniciativa que conecta hortas comunitárias a cozinhas solidárias. Uma engrenagem simples e poderosa: quem planta alimenta quem precisa.
“O São Manoel foi inspiração. A Horta Bons Frutos produzia, mas faltava estrutura. Então pensamos: e se investirmos ali, melhorarmos a produção e a horta conseguir doar para uma cozinha solidária do bairro? E assim foi. Deu tão certo que o projeto expandiu e hoje está em sua terceira fase”.
Com apoio da Autoridade Portuária de Santos, o BAAU se expandiu por outros bairros – do Saboó à Vila Nova. Em cada lugar, algo floresce: viveiros, hortas suspensas, banheiros adaptados, hortelãos remunerados. Mas, acima de tudo, floresce o senso de pertencimento.
Para além dos projetos de base, Renato tem sido uma voz ativa nos espaços de formulação de políticas públicas. Foi presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Santos (Comsea), onde ajudou a reativar o conselho após um ano de inatividade. Hoje, é membro do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Comdema) – e segue costurando a cidade com ideias, indignações e propostas.
Renato Prado cultiva hortaliças no terreno da Estação da Cidadania
Foto: Rodrigo Cirilo
Ele não poupa críticas. “Existe muito greenwashing. Sustentabilidade virou palavra de marketing. Falam em plantar 10 mil árvores, mas não cuidam de nenhuma. É preciso parar de fazer maquiagem verde e começar a trabalhar com raiz, adubo e tempo. Senão, nada vinga”.
Para ele, a agricultura urbana é chave no enfrentamento da crise climática e alimentar. Cita números, dados, estudos. Fala com paixão, mas também com precisão. “A compostagem reduz emissões de metano e CO₂, e quando aplicada ao solo, sequestra carbono. É mágica, mas também é método. Precisamos parar de enterrar a vida em aterros e transformá-la em adubo, em alimento”.
Na base de tudo está o cuidado: com o solo, o alimento, as pessoas, o futuro. Desde o nascimento da neta Jeanne – nome em homenagem a bisavó –, há oito anos, Renato diz que seu olhar mudou. O que antes era urgência profissional virou urgência vital. Legado. Semente.
“Já corri muito atrás de sucesso, poder, salário. Hoje, quero plantar ideias. Quero inspirar. Quero que, daqui a dez, vinte anos, alguém diga: eu comecei por causa de uma conversa com aquele senhor da compostagem”.
Em 2024 veio um novo casamento e novas possibilidades profissionais. Hoje sua jornada é eclética: palestra na Petrobras pela manhã, visita ao minhocários à tarde, participação nos conselhos à noite. Um pé no barro, outro na política pública. Um olho na crise climática, outro nas crianças das hortas suspensas.
Talvez esse seja o grande software que Renato administra hoje: o sistema operacional da esperança. Enquanto o mundo se pergunta o que fazer, ele já começou – com uma sacola de terra preta, uma garrafa de água percolada e uma fé imensa na transformação.
Diogo Andrade
DadosGustavo Pimentel
RedatorGustavo Sampaio
DiagramadorRodrigo Cirilo
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