Clima imprevisível e elevação do mar transformam a rotina de quem vive em áreas vulneráveis
As projeções da Universidade de São Paulo (USP) apontam que até 2050 o nível do mar poderá subir 27,7 centímetros na região, o que equivale à Avenida da Praia, o canal 1, o bairro do Gonzaga e partes do Centro Histórico debaixo da água. Em 2100, pode chegar a 72,8 centímetros, o que deixaria bairros como Ponta da Praia, Estuário, Macuco, Paquetá e Centro submersos.
A oceanógrafa e geocientista Regina de Souza Ferreira, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Hidrodinâmicas (NPH) da Unisanta, acompanha essa transformação com olhos de cientista e tom de alerta. Para ela, o problema deixou de ser uma projeção distante. A elevação do nível do mar, diz, já está em curso, impulsionada pelo derretimento das geleiras e pela expansão térmica dos oceanos — fenômenos provocados pelas mudanças climáticas.
Na prática, isso se traduz em ressacas mais violentas, chuvas intensas que não têm mais para onde escorrer e áreas da cidade que alagam, mesmo sem uma gota de chuva.
O aumento do nível do mar é uma realidade que afeta não apenas Santos, mas diversas cidades costeiras brasileiras, impondo desafios significativos para a infraestrutura urbana e a segurança das populações locais.
Segundo projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o nível médio global do mar já subiu cerca de 9 centímetros nos últimos 30 anos, e a estimativa é que esse índice possa chegar a 80 cm até o ano de 2100.
No Brasil, estudos indicam que cidades como Rio de Janeiro, Fortaleza, Salvador, Recife, Porto Alegre, São Luís e Santos estão entre as mais ameaçadas por inundações costeiras. Por exemplo, no Rio de Janeiro, áreas como a Ilha do Governador e partes de Duque de Caxias correm riscos significativos de ficarem submersas até o final do século.
Além das inundações, o avanço do mar contribui para a erosão costeira, afetando praias e ecossistemas litorâneos. A intrusão de água salgada em aquíferos de água doce também é uma preocupação, tornando a água imprópria para consumo humano e agricultura.
Diante desse cenário, diversas cidades brasileiras estão adotando medidas de adaptação. Em Recife, por exemplo, estão sendo implementadas soluções baseadas na natureza, como a restauração de manguezais, que atuam como barreiras naturais contra a erosão e as inundações. Já no Rio de Janeiro, a cidade firmou parceria com a NASA para monitoramento do nível do mar e desenvolvimento de estratégias de resiliência.
Até mesmo em cidades não litorâneas, como São Paulo, o enfrentamento das chuvas intensas virou prioridade. A capital paulista investe em piscinões, como o da Avenida do Estado, e na reurbanização de áreas de risco, buscando soluções estruturais e ambientais.
Em todo o mundo, regiões costeiras estão sendo pressionadas a se reinventar diante da elevação dos oceanos. A cidade de Roterdã, na Holanda, por exemplo, tornou-se referência global ao criar um sistema urbano que aceita a presença da água como parte da paisagem. Lá, foram construídos parques alagáveis, praças multifuncionais e estacionamentos que armazenam água durante tempestades, além de barreiras móveis, como o Maeslantkering (barragem), que se fecham automaticamente para impedir a entrada do mar.
Em Tóquio, no Japão, o gigantesco sistema G-Cans, ou Greater Tokyo Area Outer Underground Discharge Channel (Sistema de Drenagem Subterrânea Externa da Área Metropolitana de Tóquio), é uma das maiores obras de engenharia civil do mundo, voltada ao controle de enchentes. Sua função é desviar volumes imensos de água para túneis subterrâneos e tanques de retenção, protegendo a cidade de inundações fluviais.
Nos Estados Unidos, Nova York respondeu ao impacto do furacão Sandy com o projeto “The Big U”, um conjunto de parques elevados e barreiras verdes ao redor de Manhattan, que além de conterem enchentes, oferecem espaços públicos para lazer e convívio social. Jardins de chuva, que são estruturas de paisagismo projetadas para captar, filtrar e infiltrar a água da chuva e telhados verdes complementam as soluções urbanas, ajudando na absorção da água da chuva.
Os pesquisadores do NPH trabalham arduamente para manter as informações hidrometeorológicas públicas sempre atualizadas - foto: Miguel Araujo
No setor de turismo de Santos, os sinais acendem preocupações. Rodolpho Hesselbach, gerente geral do Comfort Hotel Santos, instalado na Ponta da Praia, bairro que assiste ao recuo insistente da faixa de areia, observa a orla com receio. “Os turistas vêm para Santos em busca de praia. Se a faixa de areia diminuir muito ou houver mais alagamentos, a cidade pode perder visitantes, e isso preocupa bastante.”
Diante dessa realidade, Santos tem buscado se antecipar. Foi pioneira ao criar, em 2016, a Comissão Municipal de Mudanças Climáticas (CMMC), e, em 2020, lançou o Plano de Ação Climática de Santos (Pacs), que é uma iniciativa estratégica lançada em janeiro de 2022, composta por 50 metas a serem cumpridas entre 2025 e 2050. Desenvolvido em colaboração de universidades, ONGs e a Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), o PACS aborda oito eixos principais, incluindo planejamento urbano sustentável, resiliência costeira, gestão de riscos climáticos e redução de emissões de gases de efeito estufa.
Entre as ações destacadas, estão a instalação de 49 geobags submersos na Ponta da Praia para conter a erosão, a revisão do Plano Diretor e da Lei de Uso e Ocupação do Solo com foco climático, e a substituição de 20% da frota de ônibus por veículos não poluentes. Além disso, o município implementou o programa “AbE Subiu o Morro”, pioneiro no Brasil, que utiliza soluções baseadas em ecossistemas para promover a resiliência em áreas de morro.
O reconhecimento internacional veio em 2021, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Clima em Glasgow, quando Santos foi apresentada como exemplo de adaptação urbana.
Mesmo assim, para moradores como Wellington, a resposta ainda é lenta. “A Defesa Civil vem, risca o chão com giz, às vezes interditam a casa da pessoa, mas e depois? Vai morar onde?”, questiona. “Não adianta arrumar só a orla pra turista. Tem que cuidar de quem tá nas áreas mais vulneráveis.”
Diante desse panorama, a oceanógrafa da Unisanta insiste na necessidade de adaptação. Soluções existem, diz ela, mas exigem vontade política e planejamento. Entre as medidas sugeridas estão a reintrodução do jundu, vegetação nativa que ajuda a fixar a areia e conter a erosão, e a implantação de jardins de chuva, que funcionam como esponjas urbanas, melhorando o escoamento da água: “O jundu é uma vegetação nativa que ajuda a fixar a areia e impede que o mar avance tanto. Além disso, jardins de chuva podem ser uma solução para melhorar o escoamento da água em momentos de maré alta”, ressalta a pesquisadora.
Ela também destaca como os impactos se manifestam de maneira cada vez mais intensa em regiões vulneráveis: “Aqui em Santos, por exemplo, na Zona Noroeste, a gente consegue ter alagamento sem chuva. Só com o aumento da maré, algumas vias acabam sendo afetadas. E com a frequência maior dos eventos de ressaca, tem uma maior mobilização do sedimento. Então a areia vai sendo carregada por esses eventos que são mais frequentes e mais intensos, e tem uma erosão na faixa de areia”, explica.
“Atualmente, assim como já temos o hábito de acompanhar a previsão de chuva, os moradores também podem consultar, de forma pública e gratuita, a plataforma virtual da Sala de Situação do NPH (disponível em: https://salasituacaohidrobs.com.br/agem-painel/resumo). Nela, é possível acessar previsões de nível do mar e altura das ondas com até 96 horas de antecedência — ou seja, o dia atual mais os três seguintes.”
Para os moradores, acompanhar previsões de maré e clima virou parte da rotina — uma estratégia para reduzir perdas, ainda que não ofereça garantias. Santos, como tantas cidades costeiras ao redor do mundo, está sendo convocada a se reinventar. E a pergunta que paira no ar é se conseguirá fazê-lo a tempo.
Isabella Santos
DadosMiguel Araujo
RedatorThiago Scorvo
DiagramadorSabrina Campos
Fotos
Foto da Capa: Anderson Bianchi / PMS/ Prefeitura de Santos