"Um inferno
debaixo d’água"
"Um inferno
debaixo d’água"
Fotógrafo e produtor de mídia digital para a Prefeitura de Santos, Luiz Fernando Rodrigues transforma em imagem o mesmo cenário que marcou sua infância: a luta cotidiana contra a força da água.
Durante a semana, Luiz Fernando Rodrigues atravessa os morros de Santos com a câmera na mão e o olhar atento. Fotógrafo e gerente de redes sociais da Secretaria de Comunicação da cidade, ele registra obras de infraestrutura, vistoria serviços e traduz em imagens a movimentação urbana, especialmente nas regiões mais altas, onde o risco de deslizamento aumenta a cada temporal.
O que pouca gente sabe é que, por trás da produção estética e informativa, existe alguém que conhece os desastres ambientais não pelos noticiários, mas pela própria história. Luiz cresceu na Zona Noroeste de Santos, área periférica que convive há décadas com alagamentos. Por mais de 20 anos, viu a água subir pela casa em dias de chuva forte. Não uma ou duas vezes, mas com frequência suficiente para transformar a enchente em parte da vida cotidiana.
“A água chegava na minha cintura, era mais de um metro, subindo pelas paredes da casa”, lembra. “Já perdi muito móvel pra enchente. Já perdi muita esperança também.”
Mas o sofrimento não vinha só da perda material. Luiz recorda o impacto emocional de crescer sob a tensão constante da chuva. “A sensação de vivenciar essas enchentes é desesperadora, né? Era desesperadora tanto no físico quanto no pessoal, porque não tinha um ambiente familiar muito estruturado, muito estável. Então era ficar trancado com gente que não se dava muito bem num ambiente terrível. Era um inferno na terra. Um inferno debaixo d’água, verdadeiramente.”
As perdas iam além dos bens materiais. Com a água vinham o medo, o desgaste e a frustração. Para Luiz, o impacto mais cruel da crise climática, para quem vive nas periferias, é sempre o mesmo: o bolso. “Numa casa onde moravam cinco pessoas, eu, minha mãe, meu pai e dois tios, pra gente que é pobre, é uma luta pra conseguir pouco. E aí você perde tudo muito fácil com a água. A sensação de impotência é absurda, né? Você vê a água levando seus móveis e não pode fazer muita coisa.”
Hoje, Luiz mora no Morro da Penha, de onde observa outra face da vulnerabilidade urbana. Subida íngreme, solo instável, obras emergenciais para conter deslizamentos. A geografia da cidade o cerca de diferentes formas. O que mudou não foi a preocupação, mas o tipo de ameaça. Sua rotina profissional continua girando em torno das consequências ambientais, agora como testemunha e comunicador, mas a memória da água ainda o acompanha.
Para ele, o conceito de mudanças climáticas nunca foi algo abstrato. Enxerga nas enchentes mais intensas e nos temporais mais frequentes a ampliação de um problema antigo.
O caminho até a fotografia, no entanto, não foi planejado. “Eu comecei a trabalhar na comunicação por acidente, né? Quando me apaixonei pela fotografia, comecei a pensar em como monetizar. Fazia evento, cobria festa universitária… cinquenta reais a noite, o que aparecesse. Eu não sabia que queria seguir esse caminho. Aconteceu no final da adolescência. Mas é melhor achar o nosso caminho tarde do que nunca, né?”
Antes de atuar oficialmente na Prefeitura, Luiz viveu situações extremas também com a câmera na mão. “Já cobri tragédia sim. Já fotografei deslizamento, desocupação, demolição. Não como fotógrafo oficial, ainda tava trampando em outra coisa, mas fotografava enquanto acontecia. Já fotografei operação policial em morro também.”
A experiência de campo e o olhar sensível o colocaram num espaço raro dentro do serviço público: o de quem retrata a cidade, mas também a sente. Ainda assim, Luiz reconhece os desafios de ocupar esse lugar num meio que, segundo ele, continua sendo excludente. “Me desafia muito a falta de oportunidade. O elitismo da área e a dificuldade de acesso. É uma área bem difícil de entrar. É um lugar elitista, bem branco, caro e inacessível. Mas quero ver brecar a gente.”
Ele também carrega uma crítica direta ao discurso dominante sobre sustentabilidade. Fica evidente seu incômodo com campanhas que transferem para o indivíduo a responsabilidade por um problema global e estruturado. “É sempre o trabalhador que tem que mudar o estilo de vida, enquanto os verdadeiros causadores da crise continuam ilesos. A conta nunca chega para quem realmente devia pagar.”
Quando fala do futuro, a hesitação é visível. A ansiedade climática não é apenas teórica, ela atravessa seu cotidiano.
Apesar do desalento, Luiz continua criando. Trabalha de dia, edita imagens e à noite se dedica aos quadros, à fotografia autoral, às experiências visuais. Nos fins de semana, cobre eventos. “Nas horas livres, gosto de garimpar em brechós, pedalar e jogar capoeira. São meus hobbies favoritos.”
Caseiro, ele prefere o silêncio à agitação. “É raro eu sair. Saio mais para trabalhar mesmo, é difícil algum rolê me tirar de casa.” Quando quer descansar, procura os canais e os morros, lugares que, para ele, carregam o verdadeiro encanto de Santos. “Eu gosto dos canais da praia. Não é em Santos, mas eu gosto do Quitanduva, da raia do Itaquitanduva e dos morros no geral. Todo morro tem seu charme, eu acho.”
Entre um pedal e outro, ele alimenta paixões simples: ouvir música, ver filmes, lembrar da comida da mãe. “Minha comida favorita é estrogonofe que minha mãe faz. É o prato que lembra minha infância também.”
Nos fones, variam sons e estilos. “Geralmente escuto MPB ou Jazz, mas às vezes um rap também. Esses tempos tenho escutando bastante BK de novo, mas vira e mexe surge um Cartola, alguma banda de Jazz, Jorge Ben, sou bem eclético.” No cinema, prefere as histórias bem contadas. “Eu não leio tanto mais por falta de foco, mas assisto bastante filme. Gosto de filme de terror, os da A24. Filmes com história, com texto, com narrativa. Gosto de história inteligente.”
A fotografia, no entanto, é o eixo de tudo, o gesto que organiza o mundo à sua volta. Ele conta que tem um pequeno ritual antes de começar a trabalhar. “Sempre que eu vou começar um evento, sempre que tô pra começar a fotografar, eu tiro a câmera do pescoço e amarro ela na mão direita. Dou umas voltas e deixo ela presa. É o momento em que eu entro no modo focado, pra sair do relaxamento e começar a produzir.”
Seus sonhos atravessam a mesma lente. “Meus sonhos são continuar expondo, vender quadro e fotografar. Quero fazer uma vernissagem, uma exposição grande, vender uma pauta para revista, para site. São metas pessoais mais abstratas. O que me motiva a continuar é que eu amo essa parada. Me dá propósito, me alegra levantar de manhã. Todo dia que eu posso fotografar é um bom dia.”
E quando pensa no futuro, Luiz se vê do mesmo jeito, câmera em punho, olhar atento. “Me imagino daqui a dez anos fotografando.”
É na criação e no registro do cotidiano que ele encontra o que o mundo tantas vezes lhe negou: permanência, sentido e um pouco de luz, mesmo depois de tanto tempo debaixo d’água.