Temporal expõe fragilidades urbanas e a necessidade de intervenção pública (Foto da Capa: Biga Appes)
Em questão de minutos, ruas foram tomadas pela água, canais transbordaram e subsolos de edifícios se transformaram em piscinas urbanas. No finalzinho da tarde de 18 de fevereiro de 2025, a chuva caiu sobre Santos como um manto pesado e persistente. No bairro do Boqueirão, na pequena e pacata rua Otávio Spagnolo, colada ao canal 4, um prédio de doze andares virou cenário de um ato de coragem, solidariedade e, segundo alguns, milagre.
Murilo Sant’Anna, 27 anos, morador do edifício desde que nasceu, ouviu o alarme do prédio soar em meio à tormenta. Ao lado do pai, desceu pelas escadas para checar o que estava acontecendo nos outros andares e nas áreas comuns do prédio. Na garagem, a cena era de caos: água subindo com força e vizinhos tentando proteger os veículos.
Em meio à correria, uma senhora, moradora do prédio há décadas, entrou no elevador para encontrar o marido que tentava salvar o próprio carro. Ao chegar ao subsolo, o elevador praticamente mergulha na água acumulada no fosso. A cabine travou, e o nível da água subia quase no mesmo ritmo da enchente na garagem.
A moradora estava presa, impossível abrir a porta naquelas circunstâncias. Em uma tentativa desesperada de aliviar a situação, Murilo chegou a tirar água com baldes após a instalação da comporta, já que a bomba havia sido tomada pela água e não funcionava. Cada centímetro a menos era um alívio para a senhora, que se mantinha de pé com dificuldade, quase submersa.
Quando o cansaço bateu, o marido dela sugeriu revezar. Preso entre duas portas — uma de vidro e outra metálica — o elevador não cedia. Do lado de fora, Murilo nadava contra a correnteza que invadia a garagem. Do lado de dentro, a senhora — frágil, de pouco mais de 70 anos — lutava para se manter na ponta dos pés, com a água já na altura do pescoço. E assim ela permaneceria por duas longas horas.
A única salvação era uma comporta feita com uma pesada chapa de metal, que o condomínio tinha providenciado depois de uma chuva forte de anos atrás. Só que na chuva deste ano a barreira se mostrava insuficiente para o volume de água que descia feito cachoeira pela rampa de acesso ao subsolo. Era a barreira entre o desespero e a esperança.
Murilo, sem experiência, ainda a encaixou de forma errada. A estrutura emperrou. O tempo corria. A água subia. A força do fluxo tornava quase impossível qualquer ajuste. Foi quando outros moradores apareceram. Em um esforço conjunto, puxaram a comporta, uniram forças, gritaram “um, dois, três, vai!”. E conseguiram.
Com a água contida, o próximo passo era salvar a senhora. O elevador, encharcado, não abria. O socorro, acionado repetidas vezes, não chegava. Então, o pai de Murilo e o vizinho — marido da senhora presa no elevador— dirigiram-se a pé até a base dos bombeiros, no canal 6. A essa altura, cada segundo parecia uma eternidade.
O resgate finalmente chegou. Um técnico da empresa do elevador destravou o sistema. Os bombeiros usaram uma chave especial para abrir a porta. A senhora foi retirada com vida, tremendo de frio, mas salva. Murilo a acompanhou até seu andar. Chorando, ela agradeceu. Mais tarde, diria que o jovem havia sido um instrumento de Deus. E prometeu: "Você estará nas minhas orações por um mês."
Em outro episódio recente, ocorrido em 19 de abril, fortes chuvas causaram alagamentos na Baixada Santista, deixando moradores ilhados e impedidos de sair de casa. Casas e prédios, incluindo garagens subterrâneas e elevadores, foram inundados e comerciantes tiveram prejuízos com suas lojas atingidas. Até locais que nunca haviam alagado sofreram com enchentes. Comerciantes também sofreram prejuízos com suas lojas atingidas.
As drenagens, contenções e calhas não seguram sozinhas a força bruta da natureza. Sem um plano maior, elas são muros frágeis diante de um mar revolto. A prevenção real começa antes — com mapas que alertam onde não se deve pisar, com documentos informativos e com educação, alerta o geólogo Marcos Bandini.
É que a água não escolhe o caminho por acaso. Ao tocar o solo, ela obedece à geologia. Em terrenos porosos, cobertos de verde, infiltra devagar, dá tempo ao tempo. Mas no asfalto quente das cidades, onde o concreto sela a terra e a pressa ergue bairros inteiros em desacordo com a natureza, ela escapa, corre, acumula — e destrói.
Não foi diferente em 1928, quando parte do Monte Serrat desceu com fúria. A lama não levou só casas e vidas , ela ecoa como lembrete incômodo de que o território impõe seus próprios limites, e ignorá-los é escrever o futuro com a tinta da tragédia. Cerca de 2 milhões de metros cúbicos de terra desabaram, principalmente sobre a Santa Casa de Misericórdia, causando a morte de pelo menos 81 pessoas, segundo dados oficiais.
O geólogo Marcos Bandini conhece bem a linguagem das pedras. Ele olha para a Serra do Mar e vê movimento. Instabilidade. Transformação. “Vivemos numa região que se transforma. Entender essa dinâmica é essencial para sabermos conviver com ela”, diz, como quem traduz a terra para quem vive sobre ela.
Na Baixada Santista, cada rua, cada morro, cada palmo de terra carrega uma geografia viva. Uma paisagem que pulsa, que muda, que avisa. É preciso decifrá-la antes que ela grite. Porque quando o solo fala, é sempre urgente — e quase sempre tarde demais.
Os números confirmam o alerta. Desde 2020, a Baixada Santista tem batido recordes de chuva. Entre 1º e 3 de março de 2020, Santos registrou 347,6 milímetros em 72 horas. Só no dia 2, foram 155 milímetros em apenas três horas — mais da metade do previsto para o mês inteiro. Em fevereiro de 2020, choveu 916,6 milímetros, o triplo da média histórica. Uma enxurrada que encharcou o solo, sobrecarregou encostas e revelou as fragilidades da infraestrutura urbana.
Diante das mudanças climáticas, que tornam os eventos extremos mais frequentes e intensos, Santos vem tentando se adaptar. A Defesa Civil de Santos opera o Plano Preventivo de Defesa Civil (PPDC) desde 1989, ativado anualmente entre dezembro e abril, e acionado fora desse período se as chuvas ultrapassam os limiares técnicos. Entre as ações preventivas, estão visitas às casas em áreas de risco alto e muito alto, entrega de comunicados com orientações, formação de núcleos comunitários de Defesa Civil nos morros e o programa Defesa Civil na Escola, que ensina crianças a reconhecer sinais de perigo.
Além disso, a cidade conta com alerta antecipado por SMS (40199) e, em casos severos, com mensagens enviadas por broadcast, sem necessidade de cadastro. O mapeamento das áreas de risco é atualizado anualmente. Em outubro de 2024, a versão mais recente apontava 13.035 moradias em áreas vulneráveis: 136 em risco muito alto, 4.676 em risco alto e 8.223 sob monitoramento.
Desde 2020, mais de 600 famílias foram retiradas dos morros. No total, 1.700 famílias já foram reassentadas em conjuntos habitacionais, e outras 1.300 esperam pelas novas moradias que devem ser entregues em breve. Uma corrida contra o tempo, contra a chuva, contra o destino inscrito nas encostas.
O que acontece na Baixada Santista não é um evento isolado. Em todo o mundo, cidades costeiras enfrentam o avanço do mar, o aumento da frequência de tempestades, as ondas de calor e o desequilíbrio de padrões tradicionais de chuva. Especialistas em clima alertam que a janela de oportunidade para conter o aquecimento global está se fechando rapidamente. Mesmo com esforços locais, como o de Santos, é preciso uma resposta coletiva — global, nacional, regional — que envolva planejamento urbano sustentável, redução de emissões de gases de efeito estufa e políticas públicas de adaptação voltadas para os mais vulneráveis.
A crise climática não é futuro: é presente. Está nos bolsões de ar quente que intensificam temporais. Nos oceanos mais quentes que alimentam tempestades. Na terra que desliza e nas vidas que desabam. Entender isso é mais do que um dever — é uma urgência.
Bianca Novais
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Alanis Ribeiro
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Karina Faleiros
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