Revitalização, arte e abandono se misturam na maior comunidade de palafitas da América Latina, onde os impactos ambientais são agravados pela desigualdade e pela lentidão do poder público
No coração do estuário de Santos, em uma área de manguezal entre o Rio dos Bugres (segundo mais poluído por microplásticos do mundo) e a especulação imobiliária, cerca de 20 mil pessoas vivem sobre estacas de madeira. O Dique da Vila Gilda, maior favela de palafitas da América Latina, enfrenta diariamente a combinação entre a precariedade urbana e os efeitos das mudanças climáticas: maré alta, alagamentos constantes, calor extremo e insegurança alimentar e estrutural.
As moradias erguidas sobre a lama convivem com a ausência de saneamento básico, coleta irregular de lixo e risco constante de incêndios — como o de 2023, que destruiu dezenas de casas. Quando a maré sobe, tudo alaga. Quando a chuva aperta, o medo é de desabamento. E quando o sol castiga, falta ventilação e sobra calor.
Rio Burges é o segundo mais polúido por microplásticos do mundo.
Foto: Arquivo Viral
Diante desse cenário, a Prefeitura de Santos deu início à construção do projeto de revitalização chamado Parque Palafitas, que prevê a entrega de 240 unidades habitacionais com acesso a água tratada, rede de esgoto, energia elétrica e drenagem. As primeiras 60 casas já estão em fase de execução.
O projeto, segundo a Prefeitura, foi pensado não só como uma ação de moradia, mas também como resposta aos impactos das mudanças climáticas. As casas estão sendo construídas com fundações mais resistentes, inspiradas em técnicas utilizadas em estruturas portuárias, para enfrentar melhor a instabilidade do solo e a elevação do nível do mar. Também está prevista a instalação de energia solar em prédios comunitários e a criação de áreas destinadas à regeneração do mangue — um esforço para reequilibrar o ecossistema da região, historicamente degradado.
A iniciativa conta com apoio do governo federal, que cedeu uma área para o projeto-piloto, e da esfera estadual, com quem o município negocia recursos para as próximas etapas. Mesmo com as obras em curso, moradores e lideranças da comunidade cobram mais transparência e participação efetiva nas decisões que definem o futuro do território.
Uma das vozes que vêm denunciando as desigualdades históricas da região é a da vereadora Débora Camilo. Nascida em Santos e com trajetória ligada aos movimentos populares, ela alerta que a exclusão do Dique representa uma contradição profunda na imagem da cidade.
“Santos é vendida como a melhor cidade do Brasil, primeira em saneamento básico. Mas isso só vale até a divisa invisível da desigualdade”, afirma. “Enquanto no Boqueirão a expectativa de vida passa dos 80 anos, no Dique ela mal chega aos 70.”
Segundo Débora, a própria localização da comunidade — escondida atrás da Zona Noroeste, distante da orla turística — favorece o esquecimento. “É como se o Dique não existisse para o marketing da cidade.”
O instituto oferece diversos cursos e oficinas para moradores do Dique e da região. Foto: Arquivo Viral
Apesar do abandono, a comunidade tem construído alternativas por meio da arte. O Instituto Arte no Dique, criado em 2002, oferece oficinas de teatro, capoeira, música e audiovisual. Ali, mais de 300 crianças, jovens e adultos participam de atividades culturais semanais, promovendo pertencimento e autoestima.
“Existe uma omissão por parte dos últimos governos. O Arte no Dique é responsável por projetos ambientais e sociais com crianças e jovens para que eles tomem conhecimento de tudo que acontece e possam questionar o poder público”, ressalta Marcos.
A história do Dique da Vila Gilda não é só sobre pobreza, mas sobre resistência. Em uma cidade premiada por sua infraestrutura, ainda há um território onde a água que chega é pela maré — e não pelo encanamento. Onde a cultura é ferramenta de transformação. Onde o futuro está sendo debatido em cima da lama, com urgência e dignidade.
Se o Parque Palafitas sairá do papel com a força prometida, ainda é uma pergunta sem resposta. Mas uma coisa é certa: quem vive ali já aprendeu, há muito tempo, que só há como sobreviver resistindo.
Kayky Zeferino
Diagramador
Texto
Henrique de Mattos
Foto