A jornalista Catharina Apolinário constrói pontes entre comunicação, ancestralidade e resistência
A sala onde Catharina vive, na Ponta da Praia, em Santos, tem cheiro de memória em movimento. Livros empilhados dividem espaço com brinquedos da filha, Catarina Nimompy’rua Apolinário dos Santos, de 1 ano, que transformam o chão em território lúdico. No canto, o gato preto e peludo, observa tudo, como se guardasse os segredos de uma casa que abriga mundos distintos. É ali, entre o barulho do mar ao fundo e o silêncio das lembranças, que ela reflete sobre as travessias que moldaram sua história.
Criada pelos avós vindos de São Sebastião onde viveu até os 10 anos. Depois morou na Praia do Tombo, que naquela época ainda era área de mata, mesmo sendo praia. Mais tarde, se mudou para Vicente de Carvalho e, já adulta — por volta dos 30 anos, embora eu não saiba a data exata — passou a viver em apartamento. Por conta disso, Catharina aprendeu desde cedo que o tempo da roça e o tempo da cidade correm em ritmos diferentes — e que ela carrega os dois dentro de si.
“Eu fui criada pela minha avó, uma mulher do mato - caracterizada por pertencimento ao território e entendida da natureza - que veio morar em apartamento com 30 anos”, conta. No apartamento não havia horta, não tinha chão para cuidar, não existia o espaço da roça.
No entanto, a avó Benedita lhe ensinou a plantar mandioca, colher cana, fazer chás e respeitar os ciclos da terra. O avô, Mário Sérgio Apolinário, foi pescador e navegador — trabalhou na Wilson Sons, no rebocador Netuno, um dos mais conhecidos do Porto de Santos. Com eles, a menina aprendeu o que era viver entre o concreto e o mar: “A gente pescava siri pra comer, jogava tarrafa, pegava peixe na Ponta da Praia.”
A infância também foi marcada pela comunicação. Aos sete anos, depois de ganhar um gibi da Turma da Mônica sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, reuniu os colegas da vizinhança na garagem e fez uma “reunião” para explicar que todos tinham direitos. “Eu dizia: vocês têm direito de brincar, de ir e vir. Se a mãe não deixa, fala que tem uma lei agora.” Pouco depois, levou o gibi até o síndico do prédio para convencê-lo a reservar um tempo de lazer no pátio. “Daí em diante eu nunca mais me encaixei no processo de apenas aceitar”, ri.
Cresceu em meio a contradições. Estudou em colégio católico, mas também se formou nas celebrações de São Pedro Pescador e nas conversas com pescadores sobre o mar. Entre rezas e tarrafas, aprendeu o que chama de “pertencimento”: uma forma de estar no mundo sem precisar escolher entre a cidade e o mato.
O contraste da aldeia para a cidade
Catharina foi até a Aldeia Tapirema, em Peruíbe, na Terra Indígena Piaçaguera, onde viveu por dois anos. “Lá faltava água toda semana. A escola só chegou depois de uma mobilização coletiva da comunidade.” Já morando em Santos, enquanto conciliava o trabalho e as responsabilidades de mãe, participou das articulações para que o ensino fosse implementado na aldeia.
Foi ali que conheceu o pai de sua filha, um indígena, que a mãe também possui o mesmo nome, sendo chamada de Catarina Nimbupy’rua, de 78 anos, uma liderança da aldeia— uma história que atravessa gerações. Desde pequena, o pai dela incentivou os estudos. Mesmo vivendo na aldeia, ela foi cedo para a escola, aprendeu português e cresceu com a missão de ajudar o seu povo.
Na década de 1970, participou das articulações que levaram os povos indígenas a contribuírem para a Constituição Federal de 1988, integrou o primeiro congresso de educação indígena de São Paulo e fez parte da primeira turma indígena de formação de professores da USP.
Mais tarde, liderou, junto da família e de anciãos, a retomada da Terra Indígena Piaçaguera, em 2000, área destruída por uma mineradora. O processo de demarcação oficial levou quase 20 anos.
Até hoje, atua pela preservação e difusão da cultura Tupi-Guarani: dá palestras, participa do Acampamento Terra Livre, ensina dentro e fora da aldeia e ajudou a estabelecer a primeira escola indígena da Terra Indígena Piaçaguera, na aldeia Personã Guarani.
A relação terminou, mas Catharina guarda desse período um aprendizado sobre força e recomeço: “Apesar da separação, considero muito a minha sogra que fez tanto por mim quanto pelo povo. Mas prefiro estar sozinha do que com alguém que me fere. A maternidade solo é pesada, difícil, mas é a minha travessia.”
Na aldeia, participou de rituais de cura e de colheita, aprendeu o sentido do grafismo tupi ou também conhecido como grafismo indígena — símbolos de proteção e continuidade — e ouviu histórias que reafirmaram sua identidade. “O sonho é uma tecnologia indígena”, repete. “É através dele que a gente recebe informação. Já sonhei coisas que aconteceram depois. O sonho é espiritualidade, é sabedoria.”
A palavra como ferramenta
A comunicação, para ela, nunca foi apenas profissão. Formada em Jornalismo, Catharina fundou há 12 anos a OQA, empresa que atua em projetos culturais, ambientais e comunitários. O nome vem de uma interjeição caiçara usada em Ilhabela — “Okwa!”, expressão de espanto, encantamento ou susto. “É uma palavra de impacto, de presença. É o que eu queria que meu trabalho causasse.”
Pela OQA, já realizou assessoria de imprensa para eventos como o Festival Afrotur e a Festa do Fogo Sagrado Tabassu, além de formações culturais em parceria com o Museu de Arte Moderna (MAM). Também foi conselheira de Cultura e de Juventude na Baixada Santista.
“Coloquei o meu trabalho a serviço do ativismo. As pautas com que trabalho têm ligação direta com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU e com os direitos humanos. É uma forma de devolver à sociedade o que aprendo.”
O ativismo de Catharina não se limita aos editais. Está no cotidiano: guardar a bituca de cigarro para que não vá parar no mar, plantar na janela, ouvir as histórias da filha. “O meio ambiente não é uma pauta, é uma forma de viver”, resume.
A vida entre o urbano e o indígena, diz ela, é também uma disputa de narrativa. “As pessoas não pensam na bituca, então como vão pensar no efeito estufa? A gente precisa mudar a matriz energética, mas ainda vive preso a modelos coloniais.”
Para ela, a colonização não é passado, mas presença: está na língua, na roupa, no modo de pensar. “A gente fala português, vive em apartamento, mas tem dentro de nós histórias que vieram antes. São memórias de milênios.”
Essa consciência de pertencimento a conduz a um trabalho de reconexão. Ela pesquisa há 20 anos as culturas caiçara e indígena do litoral paulista, acumulando experiências em comunidades tradicionais. Agora, planeja lançar um roteiro turístico cultural com base nessas pesquisas, unindo história, ancestralidade e sustentabilidade.
O futuro que se planta
Hoje, Catharina vive com a filha no apartamento herdado da família, em Santos. Não paga aluguel — “um privilégio, hoje em dia” —, mas diz que trocaria o conforto do concreto pelo tempo da floresta. “Se me dissessem pra escolher entre o apartamento e o mato, eu escolheria o mato.”
Quando o tema é representatividade, fala com serenidade: “Eu não me considero uma representante. As pessoas às vezes me colocam nesse lugar. Pra representar, é preciso ser reconhecido pelos representados.” Prefere apoiar, fortalecer, dar suporte — “ser braço”, como define.
O que ela deseja para o futuro é simples e, ao mesmo tempo, imenso: cuidar da filha, fortalecer a cultura e continuar comunicando o que precisa ser dito.
“Meu trabalho é o meu modo de existir. Eu coloco ele à disposição da sociedade, como foi o juramento que fiz como jornalista. A minha vida e o meu ativismo são a mesma coisa. Não dá pra separar.”
Autores