O narrador e a sua visão crítica

Em "Memorial do Convento", temos um narrador observador e comentador que, quanto à presença é heterodiegético, o narrador não faz parte da história, não participa na ação como personagem, o que lhe permite fazer uma narração na 3ª pessoa. Quanto à sua focalização é omnisciente, ele não só sabe tudo aquilo que vai decorrer na ação, como também conhece tudo aquilo que diz respeito às personagens, dando-nos então a conhecer o que com elas se passa, o que sonham, pensam, analisando ainda estes seus atos e ações, a partir de comentários e críticas, esta sua omnisciência permite-lhe ainda antecipar a narração (prolepse), já que este tem uma visão ilimitada do enredo. Por fim, quanto à sua posição é subjetivo, o que lhe confere a envolvência na ação, oferecendo o seu ponto de vista a partir de comentários e críticas.   

A seguinte passagem denota a presença heterodiegética e a focalização omnisciente do narrador, visto que ele conhece o pensamento da personagem: “São pensamentos confusos que isto diriam se pudessem ser postos por ordem, aparados de excrescências, nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar, Sete-Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade, Em nada, e contudo já pensou tudo isto,” , página 47, segundo parágrafo. 


O narrador encontra-se temporalmente afastado do narrado, o que o obriga a adaptar a linguagem utilizada e a fazer a distinção entre um vocabulário que respeite a época da obra e outro que se adeque ao tempo da escrita (século XX). É visível esse distanciamento através de prolepses e de ironias sarcásticas, que têm como principal objetivo atacar alguns aspetos históricos, geralmente aqueles que dizem respeito a personagens de estratos sociais altas, como é o caso de el-rei

Saramago critica a vaidade, o poder e a omnipotência do rei; a má gestão financeira e a falta de produtividade do reino; a opressão do povo pelos ricos; a negligência do rei face às necessidades de um povo, ignorante, que vivia na miséria e sob o controlo do monarca e da Igreja; a corrupção da Justiça e a ausência de valores (adultério e incumprimento de votos de castidade). 

Logo desde o início do romance, nas primeiras páginas, é visível o tom irónico e até mesmo sarcástico do narrador, relativamente à hipotética esterilidade da rainha e às infidelidades do rei: "que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, (...) que a rainha, provavelmente, tem a madre seca". Esta atitude irónica do narrador mantém-se ao longo da obra, denunciando o comportamento leviano do rei, a sua vaidade desmedida e as promessas excessivas. 


O clero, que exerce o seu poder sobre o povo ignorante através da instauração de um regime repressivo, entre os seus seguidores, e que constantemente  quebra o voto de castidade, também não escapa ao olhar crítico e sarcástico do narrador.  

Podemos comprovar esta última afirmação na seguinte passagem, quando Blimunda se defende da tentativa de violação de um frade, matando-o com o espigão de Baltasar: “O frade tacteou os pés de Blimunda, afastou-lhe devagarinho as pernas, para um lado, para o outro, excita-o terrivelmente a imobilidade da mulher,(…) Empurrado pelas duas mãos, o espigão enterra-se entre as costelas ”, final e início da página 235 e 236 respetivamente.

São sobretudo as personagens de estatuto social privilegiado que são o alvo de maiores críticas por parte do narrador, que denuncia as injustiças sociais, omnipotência dos poderosos e a exploração do povo, evidenciada nas miseráveis condições de trabalho dos operários do Convento de Mafra, ao mesmo tempo que denota empatia face aos mais desfavorecidos, cujo esforço elogia e enaltece. 

No capítulo da Quaresma, início da página 14 até aos primeiros dois parágrafos da 19, está destacado um contraste, entre os ricos que morriam por comer demais e os pobres que morriam por comer de menos: “No geral do ano há quem morra por muito ter comido durante a vida toda (...) Mas não falta, por isso mesmo falecendo mais facilmente, quem morra por ter comido pouco durante toda a vida”, primeiro parágrafo. 

O capítulo XIX, início da página 160 até ao segundo parágrafo da 179, fala no transporte da pedra. Saramago descreve o episódio como um ato heroico dos operários, que tiveram de transportar a pedra de enormes dimensões com a ajuda de 200 juntas de bois e milhares de homens. O protagonista do romance (os obreiros) é assim imortalizado, através do enaltecimento da sua coragem e esforço e da denúncia do sofrimento e dos sacrifícios por que teve de passar. O autor, nos últimos dois parágrafos da página 175, fala de Francisco Marques, que morre esmagado pelo carro que transportava a pedra, sendo este um nome fictício, mas que serve para simbolizar todos aqueles que morreram no caminho, só por causa de uma pedra que alguém resolveu transportar inteira, por montes e vales, durante quilómetros.

Em suma, Saramago cria "Memorial do Convento" em memória e em homenagem a todos os obreiros e a todas as famílias que, direta ou indiretamente, contribuíram para a construção do convento. Critica o rei, como homem, pelas suas atitudes desumanas e a corte, por desrespeitar, maltratar e humilhar o povo, o que conduz a uma releitura do passado e à correção da visão que se tem da história.