CONVENTO DE MAFRA

Ficção vs realidade

ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE

O Convento de Mafra serve assim de inspiração para a obra Memorial do Convento, levando-nos para um conjunto de linhas de ação secundárias que ocorrem no século XVIII, durante o reinado de D. João V. 

A primeira referência à construção do monumento dá-se no primeiro capítulo, quando o rei fez um acordo com Deus: se D. Maria Ana, sua esposa, engravidasse, ele construiria uma basílica (Palácio/Convento de Mafra).

«Mas Deus é grande. Quase tão grande como Deus é a basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar.»

-página 3, PDF Memorial do Convento

O nascimento de Maria Bárbara dá assim início ao cumprimento da promessa na vila de Mafra. Passados já alguns anos desde o início da construção do convento, em 1728, o rei reúne-se com o arquiteto alemão Johann Friedrich Ludwig para erguer uma basílica semelhante à de São Pedro em Roma. Contudo, Ludwig persuade D. João a mudar de ideias ao referir as inúmeras obras que já estavam em andamento em Portugal.

«E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma acção de não menor grandeza que a basílica que não pode haver»

-página 191, PDF Memorial do Convento 

Altera-se deste modo os planos para o Convento de Mafra. Inicialmente, previa-se a construção de 13 quartos para frades, prosseguindo depois para 40, de seguida 80, e por fim, no mesmo ano de 1728, decide-se o rei para 300 quartos. Já lá iam 11 anos de trabalho no convento e este custar uma fortuna, leva D. João a ter medo de morrer antes de ver a obra por si inaugurada, deixando os louros de tal magnífico símbolo de grandiosidade para outro monarca.

«Ora, Mafra já engoliu. onze anos de trabalho, das riquezas nem se deve falar (...)»

«Tem desenhado na cara o medo de morrer, vergonha suprema em monarca tão poderoso. Mas esse medo de morrer (...) é sim o de que não estejam abertos e luzentes os seus próprios olhos quando, sagradas, se alçarem as torres e a cúpula de Mafra, é o de que não sejam já sensíveis e sonoros os seus próprios ouvidos quando soarem gloriosamente os carrilhões e as solfas, é o de não palpar com as suas mãos os paramentos ricos e os panos da festa, é o de não cheirar o seu nariz o incenso dos turíbulos de prata, é o de ser apenas o rei que mandou fazer e não o que vê feito.»

-página 196, PDF Memorial do Convento 

Com isto, o rei começou a planear a data de sagração da basílica. Concluindo que esta deveria ser num dia sagrado, ao domingo, e também no seu próprio aniversário, questionou quando seria possível reunir estas duas condições.

« a estes perguntando se era realmente verdade, consoante julgava saber, que a sagração das basílicas se deve fazer aos domingos, e eles responderam que sim, segundo o Ritual, e então el-rei mandou apurar quando cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de Outubro, a um domingo, tendo os secretários respondido, após cuidadosa verificação do calendário, que tal coincidência se daria daí a dois anos, em mil setecentos e trinta, Então é nesse dia que se fará a sagração da basílica de Mafra, assim o quero, ordeno e determino» 

-página 197, PDF Memorial do Convento 

Ora isto só se realizaria passados dois anos, ou passados dez. Vendo que a segunda opção não era viável, pois nessa altura D. João teria 51 anos, o que na época já era entendido como próximo da morte, opta pela decisão de inaugurar o convento dali a dois anos. 

«disseram que o estado da obra não consentia tão feliz previsão, tanto no que tocava ao convento (...), como à igreja»

«Carregou-se o sobrecenho de D. João V (...) [e] preferiu chamar outra vez os secretários e perguntar-lhes em que data voltaria a cair a um domingo o seu aniversário (...). responderam que o acontecimento tornaria a dar-se dez anos depois, em mil setecentos e quarenta. (...) Porém, D. João V teve um pensamento negro, viu-se-lhe na cara, e faz rápidas contas, mentais, com ajuda dos dedos, Em mil setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente, Se ainda for vivo.»

-página 197, PDF Memorial do Convento 

Esta sentença fez soar os alarmes nos engenheiros e operários, que acautelaram o rei para a proximidade desta data, referindo assim que não haveria tempo para concluir a construção do convento. Mas a vontade final era a do rei absolutista, e assim se fez. Começadas as obras em 1717, a partir de 1728, houve um pico enormíssimo de trabalhadores de forma a sustentar o prazo irrealista de D. João. Estima-se à volta de 52000 homens de Portugal inteiro a trabalhar na obra. Para arranjar tal número de operários, o rei viu-se impelido a recorrer a métodos pouco humanos, ordenando que qualquer homem que estivesse em condições fosse obrigado a ajudar na construção, ou seja, uma requisição geral. Muitos foram persuadidos pelo sabor da recompensa, do bom salário, mas a grande parte teve de ir contra a sua vontade, abandonando a serenidade da sua vida, bem como as suas famílias...

«Ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, (...) retirando-os, ainda que por violência, dos seus mesteres (...) porque nada está acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a esta ninguém poderá invocar, que o fará em vão, porque precisamente para serviço dela se ordena esta providência, tenho dito»

«Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns, aliciados pela promessa de bom salário, por gosto de aventura outros, por desprendimento de afectos também, à força quase todos.»

-página 198, PDF Memorial do Convento

As condições de trabalho são péssimas, a alimentação péssima é. Mas a obrigação de trabalhar e o desejo de regressar a casa impele os homens a porem-se a pé nas manhãs frias. O narrador critica assim fortemente a presunção do rei ao impor os seus interesses pessoais por capricho e ainda pelo medo de morrer antes de ver o seu monumento acabado, violando a dignidade dos trabalhadores, enquanto ele, o todo poderoso, repousa no conforto do seu palácio, em Lisboa. Mas todo poderoso, só é Deus, e não os que se querem comparar a Ele, considera o narrador-autor.

«Pode cair fulminado por um ataque, espumando pela boca, ou nem isso, apenas derrubando-se e arrastando na queda o companheiro da frente e o companheiro de trás, subitamente e em pânico atados a um morto, pode adoecer no descampado e vai de charola, trangalhando pernas e braços, até morrer adiante e ser enterrado à beira do caminho »

«As noites são dormidas em palheiros, em portarias de conventos, em tercenas despejadas »

«De madrugada, muito antes de nascer o sol (...) levantam-se os trabalhadores de sua majestade, enregelados e famintos, felizmente os libertaram das cordas os quadrilheiros»

«Quanto pode um rei. Está sentado em seu trono, alivia-se consoante a necessidade(...), despacha ordens para que de Penamacor venham os homens válidos, ou nem tanto, a trabalhar neste meu convento de Mafra, levantado porque o reclamavam 200 os franciscanos desde mil seiscentos e vinte e quatro, e por enfim ter ocupado a rainha duma filha, que nem rainha de Portugal vai ser(...) E os homens, que nunca viram o rei, os homens que o rei nunca viu, os homens, mesmo não o querendo vêm, entre soldados e quadrilheiros, (...) e o tempo é o variável, sol de estarrecer, chuva de alagar, frio que gela, em Lisboa sua majestade espera que cada um cumpra o seu dever.»

-página 200, PDF Memorial do Convento

O narrador critica a desumanização e a falta de direitos e condições, referindo que cada homem nada mais é do que um tijolo que serve para assentar a base do monumento. 

«sem falar que o número é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta, diz-se quinhentos tijolos, diz-se quinhentos homens, e a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos e quinhentos, quem isto não entender à primeira vez não merece que lho expliquem segunda.»

-página 201, PDF Memorial do Convento 

Depois de todo o trabalho árduo, finalmente se inaugura o Convento de Mafra em 1730, já o rei contava com 41 anos. Tal obra não poderia deixar de ser acompanhada por uma celebração em concordância, repleta de gente que veio ver este momento único.

«Enfim, chegou o mais glorioso dos dias, a data imorredoira de vinte e dois de Outubro do ano da graça de mil setecentos e trinta, quando el-rei D. João V faz quarenta e um anos e vê sagrar o mais prodigioso dos monumentos que em Portugal se levantaram, ainda por acabar, é verdade” 

«já se armou a procissão solene que dará a volta à igreja, elrei vai nela, atrás os infantes e a fidalgaria, (...) e nisto se passou a manhã e grande parte da tarde, eram cinco horas quando o patriarca começou a missa de pontifical, que, claro está, levou o seu tempo, e não foi pouco, (...) [o] povo que esperava cá fora, setenta mil, oitenta mil pessoas, que num grande sussurro de movimentos e vestes se derrubaram de joelhos no chão, momento inesquecível, por muitos anos que eu viva»

-página 239, PDF Memorial do Convento