03. Implicação lógica e verdade lógica; analiticidade e aprioridade

ERRATA. O texto apresenta erros tipográficos no final do quarto parágrafo do capítulo 3 (p. 29). Onde se lê “(ou mesmo: “É impossível que, se A e B então não C). É com base nisso que se pode deduzir o conceito de implicação ao de verdade necessária.”, deveria estar escrito “(ou mesmo: “É impossível ter A e B e não C). É com base nisso que se pode reduzir o conceito de implicação ao de verdade necessária”.

O terceiro capítulo da Propedêutica é extremamente importante e recheado de conteúdo. O objetivo do capítulo é elucidar a noção de inferência lógica. Para tanto, Tugendhat discutirá um grande número de conceitos (incluindo diferenciações clássicas feitas por Leibniz e Kant) e suas inter-relações.

3.1. A estrutura conceitual do capítulo 3 resumida

No capítulo 3, cinco assuntos principais são citados: inferência, implicação lógica [ou conseqüência lógica], necessidade lógica [verdade lógica], analiticidade [verdade analítica] e princípio da não-contradição.

A ordem em que os cinco assuntos principais aparecem e a conexão entre eles é resumidamente [i.e. o movimento do texto ou a ‘espinha dorsal’ do texto] a seguinte.

Os autores rejeitam a concepção dinâmica de Kant para inferência, dizendo em seguida que o único modo (de se explicar o conceito de inferência) totalmente isenta de possíveis equívocos é por meio da implicação lógica [conseqüência lógica] que de certa forma é a explicação dada por Aristóteles: “se as premissas são verdadeiras, então necessariamente a conclusão também é verdadeira”. O conceito decisivo para compreender essa necessidade lógica [verdade lógica] é o de verdade analítica [analiticidade] que, por sua vez, remete (mas não se reduz) ao princípio de não-contradição.

Podemos representar a estrutura conceitual do capítulo 3 resumida, esquematicamente, da seguinte forma:

Inferência

||

||

V

Implicação lógica [conseqüência lógica]

||

||

V

Necessidade lógica [verdade lógica]

||

||

V

Analiticidade [verdade analítica]

||

||

V

Princípio da não-contradição

3.2. Textos clássicos citados ao longo do capítulo 3

Para discutir o conceito de analiticidade, Tugendhat cita a distinção de Leibniz verdade de razão / verdade de fato e a clássica distinção de Kant juízo analítico / juízo sintético e a priori / a posteriori.

3.2.1. Monadologia

Leibniz escreve na Monadologia:

“Nossos raciocínios se fundam sobre dois grandes princípios: o princípio de contradição, em virtude do qual julgamos falso aquilo que implica contradição, e verdadeiro aquilo que é oposto ou contraditório ao falso. (§31)

“O princípio de razão suficiente, em virtude do qual consideramos que qualquer fato não poderia ser verdadeiro ou existente, e qualquer enunciado não poderia ser verídico, se não houvesse uma razão suficiente do por que a coisa é assim e não de outra forma – por mais que as razões suficientes sejam para nós no mais das vezes ignoradas. (§32)

“Há também duas espécies de verdade: as de razão e as fato. As verdades de razão são necessárias, e seu oposto é impossível; as verdades de fato são contingentes, e seu oposto é possível. Quando uma verdade é necessária podemos encontrar seu fundamento [sua razão, sua justificação] mediante a análise, decompondo-a [dissolvendo-a, resolvendo-a] em idéias e verdades mais simples até chegar às primitivas. (§33)”

DEFINIÇÃO (Leibniz). Verdades de fato são contingentes e seu oposto é possível.

DEFINIÇÃO (Leibniz). Verdades de razão são (i) necessárias; (ii) seu oposto é impossível; (iii) podemos encontrar a razão por meio da análise (i.e. decomposição).

OBS. As duas primeiras características das verdades de razão listadas acima, (i) e (ii), estão no nível metafísico [i.e. estão justificando a natureza da verdade de razão]; enquanto que a (iii) está no nível epistemológico [i.e. descreve uma maneira de reconhecermos uma verdade de razão].

“Há por fim idéias simples das quais não se pode dar nenhuma definição. Há também axiomas e postulados – ou, em poucas palavras, princípios primitivos – que não podem ser demonstrados, e que por outro lado não têm necessidade de demonstração: trata-se dos enunciados idênticos, cujo oposto contém uma contradição explícita [evidente]. (Monadologia, §35)”

DEFINIÇÃO (Leibniz). Idéias primitivas (idéias simples) são aquelas que não podem ser definidas por outras idéias.

DEFINIÇÃO (Leibniz). Princípios primitivos (enunciados idênticos) são enunciados verdadeiros devido ao seu oposto conter uma contradição evidente (uma contradição explícita).

O método de análise da Monadologia é descrito:

“(...) Quando uma verdade é necessária podemos encontrar seu fundamento [sua razão, sua justificação] mediante a análise, decompondo-a [dissolvendo-a, resolvendo-a] em idéias e verdades mais simples até chegar às primitivas. (§33)

“E é justamente mediante a análise que os matemáticos reduzem os teoremas especulativos e os cânones práticos a definições, axiomas e postulados (§34)”

EXPLICAÇÃO. Para fundamentar uma verdade de razão temos que reconhecer, através do método de análise, que as idéias e verdades (do enunciado) estão, por sua vez, fundamentadas por idéias primitivas e princípios primitivos. Em outras palavras: para reconhecer uma verdade de razão (verdade necessária) basta decompor (dissolver, resolver, analisar) as idéias e verdades (do enunciado) em idéias e verdades cada vez mais simples (e continuar decompondo) até chegar a idéias primitivas e os princípios primitivos.

3.2.2. Crítica da Razão Pura (CRP)

3.2.2.1. Distinção entre conhecimento a priori e conhecimento a posteriori (empírico)

Kant diz na sua introdução da CRP:

Segundo [a ordem d]o tempo, portanto, nenhum conhecimento em nós precede a experiência, e todo ele começa com ela [a experiência]. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência.”

Agora, Kant apresenta a distinção entre duas maneiras de conhecer.

DEFINIÇÃO (Kant). Chamamos de conhecimentos a priori aqueles conhecimentos adquiridos independentemente de qualquer experiência particular.

EXPLICAÇÃO. Conhecimento passíveis de se obter seja qual for a experiência que se tenha, sem apelo a experiências particulares, são conhecimentos adquiridos a priori. Um conhecimento é a priori (ou absolutamente independente de toda a experiência) quando independe do fato de que tenhamos esta ou aquela experiência. Isto é, podemos adquirir tal conhecimento a partir da experiência, qualquer que seja.

NOMENCLATURA. Quando um juízo não depende de nenhuma experiência particular para sua verificação, dizemos que sua verdade foi decidida a priori. Esse tipo de juízos são chamados de juízos a priori.

EXEMPLOS. “5 + 7 = 12” e “todo corpo é extenso” são exemplos fornecidos por Kant de conhecimentos que podem ser adquiridos a priori. Para citar um exemplo menos problemático: posso saber que “nenhum solteiro é casado” a priori.

OBS. Na introdução da CRP são dados dois critérios seguros para que reconheçamos um conhecimento a priori: (i) o critério da necessidade (i.e. todo conhecimento necessário é a priori e todo a priori é necessário) e (ii) o critério da universalidade (i.e. todo conhecimento estritamente universal é a priori e todo a priori é universal).

DEFINIÇÃO (Kant). Denominamos conhecimentos a posteriori (ou conhecimentos empíricos) aqueles conhecimentos que possuem suas fontes na experiência.

EXPLICAÇÃO. Conhecimentos que só podem ser obtidos através de certas experiências particulares, são chamados de a posteriori. Um conhecimento é a posteriori (ou dependente das impressões dos sentidos) quando depende que tenhamos esta ou aquela experiência específica. Isto é, não podemos adquirir tal conhecimento a partir de qualquer experiência.

NOMENCLATURA. Quando um juízo depende de certas experiências particulares para sua verificação, dizemos que sua verdade foi decidida a posteriori. Chamamos esses juízos de juízos a posteriori (ou juízos empíricos).

EXEMPLO. Só posso saber se há pessoas na sala ao lado a posteriori, pois preciso, por exemplo, verificar com órgãos do meu sentido (olhos) se há.

OBS. Os conceitos “a priori” e “a posteriori (ou empírico)” dizem respeito ao modo como nós atingimos conhecimento (p. 31). (Ou seja, a distinção a priori / a posteriori é uma distinção epistemológica.) Para Kant, ao conhecermos algo fazemos isso ou a priori ou a posteriori. Esquematicamente:

[modo de atingir conhecimento] a priori / a posteriori

3.2.2.2. Conteúdo e extensão (esfera) de conceitos

Para que se compreenda a próxima seção (3.2.2.3) é preciso que se entendam as definições kantianas de conceito e conteúdo de conceitos. A presente seção (3.2.2.2.) tem como objetivo elucidar esses dois termos.

Entendendo “representações” como “determinações internas do nosso espírito” (CRP B 242), as representações com consciência são chamadas de “percepções”. As percepções são divididas em “sensações” (i.e. percepções subjetivas) e “conhecimentos” (i.e. percepções objetivas) (CRP B 376). Segundo Kant existem dois tipos de percepções objetivas: “conceitos” e “intuições”. No primeiro parágrafo da Lógica de Jäsche é dito que uma intuição é uma representação singular (i.e. uma intuição só representa um objeto em particular) e que:

DEFINIÇÃO (Kant). Um conceito é uma representação que pode ser aplicada a mais de um objeto.

EXPLICAÇÃO. Um conceito é uma característica que é comum a várias possíveis representações. Ou melhor, conceitos são “pensamentos” pelos quais o “eu” representa o que é comum a várias possíveis representações.

EXEMPLO. O conceito “metal” é uma característica comum a vários tipos de metais particulares, e.g. ouro, ferro, cobre etc.

OBS. É importante notar que um conceito sempre pode ser aplicado a vários (mais de um) objetos. Por exemplo, mesmo que factualmente só exista um único cisne negro no mundo, o conceito de “cisne negro” pode, hipoteticamente, ser aplicado a vários possíveis cisnes negros.

Outro ponto importante a notar é que, segundo Kant, todo conceito tem conteúdo e extensão.

DEFINIÇÃO (Kant). O conteúdo de um conceito são as características definitórias do conceito.

EXEMPLOS. O conteúdo do conceito metal é formado pelos conceitos de: corpo, maleável, condutor de eletricidade, alto ponto de fusão, condutor de calor, elemento químico etc.

NOMENCLATURA. Se (i) “o conceito P é característica de S”, então é equivalente dizer: (ii) “P é um conceito parcial do conceito S”, (iii) “o conceito P está no conteúdo do conceito S”; (iv) “P está contido em (enthalten in) S; ou (v) que “S contém P em si”. (i, ii, iii, iv e v são deferentes maneiras de dizer o mesmo!)

EXEMPLOS. Dizer que “animal é uma (nota) característica de bezerro” é dizer que “animal é um conceito parcial do conceito bezerro”, que é o mesmo que dizer “o conceito animal está no conteúdo do conceito bezerro”, que é sinônimo de “animal está contido em (enthalten in) bezerro” ou “bezerro contém animal em si”.

EXEMPLO. As notas características “corpo”, “maleável”, “elemento químico” se encontram contidas no conceito metal. Equivalentemente, fazem parte do conteúdo do conceito de metal, os conceitos “corpo”, “maleável”, “elemento químico”.

DEFINIÇÃO (Kant). A extensão (ou esfera) de um conceito são as representações que possuem como característica comum esse conceito.

EXPLICAÇÃO. Tomando o conceito como uma representação, essa representação está contida num múltiplo infinito de diversas representações possíveis, e essas representações possíveis formam a extensão (ou esfera) desse conceito. Dizendo de outra maneira: ao se pensar um determinado conceito como (nota) característica, essa (nota) característica é comum a várias possíveis representações, essas várias possíveis representações formam a extensão (ou esfera) desse conceito.

EXEMPLO. Considere o conceito metal. Pensando o conceito metal como nota característica, metal é característica de que representações? Metal é característica comum dos conceitos ouro, prata, cobre etc. Portanto, os conceitos ouro, prata, cobre etc. fazem parte da extensão (ou esfera) do conceito metal.

NOMENCLATURA. Se (i) “o conceito P é característica de S”, então podemos dizer equivalentemente: (ii) “S está na esfera do conceito P”; (iii) “S está contido sob (enthalten unter) P”; (iii) “P contém S sob si”. (i, ii, iii e iv são deferentes maneiras de dizer o mesmo!)

OBS. Na extensão do conceito se encontram propriamente representações, e não coisas. [É verdade que Kant é pouco claro se a esfera de um conceito é formada por objetos e/ou conceitos. Também é verdade que existe uma tendência de aproximar a concepção kantiana de extensão com a noção contemporânea de extensão. Para uma discussão detalhada sobre esse assunto, veja CODATO, Luciano. Extensão e forma lógica na Crítica da Razão Pura. Discurso: Revista do Departamento de Filosofia da USP, n. 34, p 145-202, 2004.]

OBS [Essa observação pode ser pulada]. Modernamente não falamos de conteúdo e extensão de conceitos, mas, sim, de intensão (em inglês intension) e extensão de termos gerais. A definição moderna de extensão é: a extensão de certo termo geral é o conjunto de objetos (coisas, indivíduos) a que esse termo geral se aplica (e.g. o conjunto de todos os bezerros forma a extensão do termo geral “bezerro”, p. 105). Hoje o que freqüentemente chamamos de “conceito” é a intensão de um termo geral (p. 105). No capítulo 8, os autores da Propedêutica [Tugendhat e Wolf] definirão um conceito como aquilo que é comum a todos os termos gerais que são usados do mesmo modo (e.g. “vermelho”, “red” e “rouge” são usados do mesmo modo, portanto estão no lugar do mesmo conceito, p. 112).

O essencial do que foi dito pode ser compreendido no seguinte esquema:

Qual é o conteúdo do conceito metal? O que o conceito metal contém

/ em si? [Quais são as características de metal?] Resposta: corpo,

/ maleável, elemento químico...

/

/

metal - {

\

\

\ Qual é a extensão (esfera) do conceito metal? O que o conceito metal

contém sob si? [Quais são as coisas que tem metal como uma de suas

características?] Resposta: ouro, prata, cobre...

[O esquema exposto resume toda a seção 3.2.2.2. Vale a pena memorizá-lo!]

OBS. O conteúdo de um conceito X é dado pelo conjunto das (notas) características que se encontram contidas no conceito X. (Descobrir o conteúdo de um conceito X significa: pensar quais são as características contidas em X.)

OBS. As diversas representações que contém em si a característica X, formam a esfera do conceito X. (Descobrir qual é a esfera do conceito X significa: pensar o conceito X como uma nota característica e perguntar onde ela se aplica.)

OBS. Note que dizer “P é nota característica de S”, significa dizer, ao mesmo tempo (i) “P faz parte do conteúdo de S” (i.e. “S contém P em si”) e (ii) “S faz parte da esfera de P” (i.e. “P contém S sob si”).

3.2.2.3. Distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos

DEFINIÇÃO (Kant). Um juízo analítico (afirmativo verdadeiro) é um juízo predicativo afirmativo verdadeiro no qual o conceito predicado se encontra contido no conceito sujeito.

EXEMPLO. O juízo predicativo afirmativo “todo bezerro é um animal” é analítico, pois o conceito predicado animal está contido no conceito sujeito bezerro (i.e. animal é um dos conceitos parciais de bezerro) e isso significa: o conceito animal é uma das (notas) características de bezerro.

OBS. Descobrimos que um juízo é analítico pelo processo de desmembramento (decomposição, análise) pelo qual decompomos (analisamos, desmembramos) o conceito sujeito em seus conceitos parciais. Num juízo analítico afirmativo verdadeiro, ao decompor o conceito sujeito A em seus conceitos parciais, verifico que o conceito predicado B estava contido em A; e isso significa exatamente: ao analisar quais são as (notas) características de A, encontro o conceito predicado B como sendo uma das notas características de A.

NOMENCLATURA. Os juízos analíticos são também chamados de juízos elucidatórios [por meio de juízos analíticos apenas esclareço conceitos].

DEFINIÇÃO (Kant). Um juízo sintético (afirmativo verdadeiro) é um juízo predicativo afirmativo verdadeiro no qual o conceito predicado não se encontra contido no conceito sujeito.

EXEMPLO. O juízo predicativo afirmativo “alguns bezerros são brancos” é um juízo sintético, pois o conceito branco não é uma (nota) característica de bezerro, i.e. o conceito branco não está contido no conceito bezerro.

NOMENCLATURA. Os juízos sintéticos são denominados de juízos de ampliação [juízos sintéticos podem estender, ampliar nosso conhecimento].

OBS. Juízos analíticos e juízos sintéticos compartilham a mesma forma: a forma predicativa (A é B). Portanto, a diferenciação analítico/sintético não é formal (i.e. não é uma distinção que dependa da forma dos juízos); mas, sim, uma distinção que depende da matéria dos juízos (i.e. depende de quem é o conceito A e de quem é o conceito B).

OBS. Kant dirá sobre juízos analíticos: sua verdade pode ser conhecida usando apenas o princípio de contradição (CRP A 151). Para Tugendhat essa passagem na verdade deveria complementar a definição kantiana de juízo analítico (p. 34) fornecida aqui. (Ver 3.3.1.) É discutível se Kant pensava nela como apenas um critério a mais [para verificar de juízos predicativos são ou não analíticos] ou se visava alargar a definição de juízos analíticos (como Tungendhat sugere) de modo a abarcar outros juízos que não possuíssem a forma predicativa [juízos como “César morreu em 44 a.C ou César não morreu em 44 a.C.”]. Se Tugendhat estiver certo, a definição de de Kant poderia ser ampliada para abranger tanto juízos como “todo solteiro não é casado” quando “César morreu em 44 a.C ou César não morreu em 44 a.C.”. Kant consideraria, então, ambos analíticos. [Para ele, ambos seriam juízos elucidatórios. Pois, poderíamos dizer que o primeiro servia para a elucidação do conteúdo conceitual (substancial), i.e. esclareceria o conceito “solteiro” para alguém que não sabe; enquanto o segundo juízo, talvez, servisse para a elucidação do conteúdo estrutural (formal), i.e. esclareceria como funciona as expressões “não” e “ou”.]

OBS. Da maneira como foram apresentados na seção IV da Introdução da CRP, os conceitos “analítico” e “sintético” se aplicam apenas a juízos predicativos. Para Kant, um juízo que relaciona um sujeito com um predicado ou é um juízo analítico ou é um juízo sintético. Esquematicamente:

[juízo predicativo] analítico / sintético

3.3. A estrutura conceitual do capítulo 3 reorganizada

Acreditamos que um leitor ansioso por extrair rapidamente o resultado final da discussão possa se beneficiar em ler o texto numa ordem diferente de como o assunto foi originalmente apresentado por Tugendhat no capítulo 3.

Caso o texto fosse escrito de uma maneira direta, os conceitos poderiam ser apresentados na seguinte ordem: analiticidade, esquema de frases formalmente válidas, verdade lógica e implicação lógica.

3.3.1. Analiticidade

DEFINIÇÃO. Um enunciado analítico é um enunciado cuja verdade ou falsidade se funda apenas em seu significado.

EXPLICAÇÃO. Enunciados analíticos são enunciados nos quais, apenas através de seu significado, podemos determinar sua verdade ou falsidade (p. 36). Enunciados analíticos são enunciados que não dizem nada sobre o mundo, i.e. são enunciados cuja verdade ou falsidade é conhecida não empiricamente, mas a priori, através do significado do enunciado (p. 195). Ou seja, a verdade ou falsidade dos enunciados analíticos já está decidida previamente, não dependendo de como esteja o mundo (p. 36).

OBS. Podemos dizer que a necessidade presente nos enunciados analíticos se funda em última instância no princípio da não-contradição. Enunciados contraditórios são analiticamente falsos. E enunciados cuja negação implica em contradição são analiticamente verdadeiros (p. 36 e p. 196).

EXEMPLOS. São exemplos de frases enunciativas analiticamente verdadeiras: “Todo solteiro não é casado”; “Se Pedro é solteiro, então Pedro não é casado”; “Cesar morreu em 44 a.C. ou Cesar não morreu em 44 a. C.”. As seguintes frases enunciativas são analiticamente falsas: “Algum solteiro é casado”; “Pedro é solteiro e Pedro é casado”; “Cesar não morreu em 44 a.C. e Cesar morreu em 44 a.C.”.

NOMENCLATURA. Um enunciado analiticamente verdadeiro [verdade analítica] é dito ser analiticamente necessário (i.e. necessariamente verdadeiro no sentido analítico) [necessidade analítica].

OBS. É bom notar que os autores, no capítulo 14, dirão que só há uma necessidade que reflita a idéia intuitiva de “não pode ser de outro modo”: a necessidade no sentido analítico (p. 202). Portanto, a necessidade analítica não é um caso particular de uma necessidade mais geral.

3.3.2. Variáveis, esquemas formais, instâncias de substituição, esquemas formais válidos, formalização

Nessa seção tentaremos elucidar os termos, não espere definições precisas.

Variáveis são caracterizadas como símbolos artificiais que representam uma expressão substancial de um tipo determinado. Isto é, variáveis são indicadores de posição (marcam o lugar) de um tipo determinado de expressões da linguagem.

Hoje em dia é uma convenção comum usar letras minúsculas “p”, “q”, “r” como variáveis de frases enunciativas.

EXEMPLO. Suponha que nós queiramos dizer de maneira compacta o seguinte: uma frase componente seguida do símbolo ‘ou’, seguida do símbolo ‘não’, seguida pela repetição da primeira frase componente. Usando variáveis poderíamos dizer simplesmente: “p ou não p” (observe que as duas ocorrências de “p” estão indicando a posição de uma mesma frase componente).

Convencionou-se também usar letras minúsculas “a”, “b”, “c” como variáveis de termos singulares (e.g. “Sócrates”, “Aristóteles”, “o professor de Alexandre”, “o estudante de Platão” etc.). E é usual usar letras maiúsculas “F”, “G”, “H” para termos gerais (e.g. “homens”, “mortal”, “animal”, “professores”, “gregos”, “suecos” etc.).

EXEMPLO. Suponha que queiramos dizer de maneira compacta o seguinte: se algum membro de uma primeira classe é membro de uma segunda classe, não necessariamente igual à primeira, então algum elemento da segunda classe é elemento da primeira classe. Usando variáveis poderíamos dizer simplesmente: “se algum G é H, então algum H é G” (observe que as ocorrências de “G” estão dizendo onde se deve colocar o primeiro termo geral e os dois “H”s marcam qual é a posição de um segundo termo geral, não necessariamente distinto do primeiro).

Um esquema formal (ou matriz) é uma expressão construída por palavras formais (como “e”, “ou”, “se... então”, “não”, “todo”, “é” etc.) junto com símbolos marcando posição de certos tipos de expressões substanciais; tal que: nela, a substituição dos símbolos pelas palavras substanciais apropriadas produza sempre uma frase enunciativa.

EXPLICAÇÃO. Um esquema formal (ou matriz) é uma expressão [uma seqüência de símbolos], formada de palavras formais e variáveis; desde que tal expressão satisfaça o seguinte critério: ao se substituir suas variáveis pelas palavras substanciais correspondentes temos sempre uma frase enunciativa.

EXEMPLO. Um esquema formal: “a é F ou a não é F” onde a está marcando posição de um termo singular e F, de um termo geral.

Dentre as frases geradas substituindo-se em dado esquema formal as variáveis por seus tipos de expressões correspondentes, as instâncias de substituição desse esquema formal são apenas as frases que apresentam uma e a mesma expressão substancial em todos os lugares que, no esquema formal, se encontram uma e a mesma variável (p. 40).

EXPLICAÇÃO. Uma instância de substituição de um dado esquema formal nada mais é que uma frase gerada substituindo-se corretamente no esquema formal as variáveis por seus tipos de expressões correspondentes de maneira correta.

EXEMPLO. São instâncias de substituição do esquema formal dado no exemplo anterior: “Sócrates é homem ou Sócrates não é homem”, “Sócrates é um continente ou Sócrates não é um continente”, “Europa é um continente ou Europa não é um continente”. Considerando o mesmo esquema formal as seguintes frases não são exemplos de instâncias de substituição de tal esquema formal: “Sócrates é homem ou Europa não é homem”, “Europa é um animal ou Europa não é um continente”.

OBS. Pelo critério contido na definição de esquema formal: toda instância de substituição de um esquema formal é, em particular, uma frase enunciativa.

DEFINIÇÃO. Um esquema formal válido é um esquema formal em que todas as suas instâncias de substituição desse esquema formal são frases enunciativas analiticamente verdadeiras.

EXEMPLO. O esquema formal “a é F ou a não é F” é válido, pois todas as instâncias de substituição desse esquema (“Sócrates é homem ou Sócrates não é homem”, “Sócrates é um continente ou Sócrates não é um continente”, “Europa é um continente ou Europa não é um continente” etc.) são enunciados analiticamente verdadeiros.

EXPLICAÇÃO. Dizemos que um esquema formal é válido se, e somente se, todas as frases que são obtidas pela substituição das variáveis do esquema por suas expressões substanciais correspondentes são analiticamente verdadeiras.

OBS. Note que continuamos sem saber exatamente como se reconhece, na prática, a validade de um esquema formal. Isso é um dos trabalhos da lógica (p. 41). Repetindo: uma das tarefas da lógica é investigar quais são os esquemas formais que são válidos (p. 39).

OBS. As instâncias de substituição de determinado esquema formal são frases que tem a mesma forma (a estrutura) do esquema e vice-versa. Portanto, um esquema formal é válido se toda frase com a mesma forma do esquema é analiticamente verdadeira.

Formalização pode ser caracterizada como o processo de abstração pelo qual um esquema formal é obtido a partir de uma frase (p. 39).

EXEMPLO. Da frase enunciativa “Europa é um continente ou Europa não é um continente” podemos obter, por formalização, o esquema formal “a é F ou a não é F” (onde, seguindo a convenção: a está marcando posição de um termo singular e F, de um termo geral).

OBS. Não existe uma única maneira de formalizar uma frase (p.40), i.e. muitas frases podem ser formalizadas de vários modos. Também não é claro se há um limite inequívoco que determine até onde frases podem ser formalizadas logicamente (p. 41). Portanto, formalização é um conceito que permanece vago.

3.3.3. Verdade lógica e implicação lógica

DEFINIÇÃO. Uma frase enunciativa é logicamente verdadeira se há pelo menos um esquema válido no qual ela pode ser formalizada.

NOMENCLATURA. Quando um enunciado é logicamente verdadeiro [verdade lógica], dizemos que ele é logicamente necessário (i.e. necessariamente verdadeiro no sentido lógico) [necessidade lógica].

DEFINIÇÃO. Dizemos que as premissas implicam logicamente a conclusão se é logicamente verdadeira a frase enunciativa que diz: se as premissas são pressupostas, então vale a conclusão.

EXPLICAÇÃO. 'p implica logicamente q' significa 'é logicamente necessário: 'se p então q' '.

EXEMPLO. As premissas “todos os homens são mortais” e “todos os gregos são homens” implicam logicamente a conclusão “todos os gregos são mortais” se, e somente se, é logicamente verdadeira a seguinte frase enunciativa: “se todos os homens são mortais e todos os gregos são homens, então todos os gregos são mortais” (i.e. se, e somente se, é logicamente necessário que: “se todos os homens são mortais e todos os gregos são homens, então todos os gregos são mortais”). E, “se todos os homens são mortais e todos os gregos são homens, então todos os gregos são mortais” é logicamente necessária pois existe um esquema formalmente válido em que essa frase pode ser formalizada; o esquema válido em questão é “se todos os G são H e todos os F são G, então todos os F são H” (onde “F”, “G” e “H” indicam a posição de termos gerais). Lembrando que dizer que se trata de um esquema válido significa: que todas instâncias de substituição desse esquema são enunciados analiticamente verdadeiros. [Para ver mais um exemplo, clique aqui.]

OBS. A necessidade lógica se funda, no final das contas, num conceito de necessidade mais geral, a necessidade no sentido analítico.

3.4. Uma tentativa de elucidar a diferença entre analiticidade formal e analiticidade substancial (ou analiticidade material)

Adiantamos que a importante distinção entre juízos formalmente analíticos (analiticidade formal) / juízos materialmente analíticos (analiticidade substancial) não é precisa, logo não espere definições exatas.

Um enunciado é formal-analiticamente verdadeiro se sua negação é uma contradição explícita (uma contradição baseada apenas na forma). Isto é, uma frase enunciativa é formal-analiticamente verdadeira se sua negação já é uma contradição. Portanto, o conceito de analiticidade formal se reduz ao princípio de não-contradição.

EXEMPLO. Negar “chove ou não chove” (que tem a forma “p ou não p”) gera uma contradição que só depende da forma: “não-p e p”.

OBS. Como a verdade formal-analítica é exatamente a verdade lógica, uma caracterização de verdade formal-analítica (verdade lógica) mais precisa pode ser encontrada nas seções 3.3.2 e 3.3.3. Para ser sucinto: o que acontece é que a verdade de um enunciado formalmente analítico se mostra no fato de sua verdade ser uma mera conseqüência da validade de um esquema formal (p. 39).

Um enunciado é substancial-analiticamente (ou material-analiticamente) verdadeiro se sua negação é uma contradição implícita (uma contradição que depende do significado de palavras substanciais). Isto é, uma frase enunciativa é material-analiticamente verdadeira se sua negação é uma contradição com base na análise. Por isso, o conceito de analiticidade material (ou analiticidade substancial) remete, mas não se reduz, ao princípio de não-contradição

EXEMPLO. Negar “Todo solteiro é não casado” gera uma contradição que depende do conteúdo (depende de palavras substanciais), p. 32. Esquematicamente:

“Todo solteiro é não casado” [enunciado material-analítico]

|

| análise

|

V

“Todo não casado é não casado” [enunciado formal-analítico]

OBS. Toda frase logicamente verdadeira é analiticamente verdadeira, mas nem toda frase analiticamente verdadeira é logicamente verdadeira. Exemplo: “Todo solteiro é não casado” é analiticamente verdadeiro, mas não é logicamente verdadeiro.

OBS. As frases enunciativas que caracterizamos como logicamente verdadeiras são necessariamente verdadeiras no mesmo sentido que as frases formalmente analíticas são necessariamente verdadeiras.

OBS. A distinção entre palavras substanciais e palavras formais é uma distinção que apela para intuição e ainda não há um critério satisfatório para precisar essa diferenciação. A distinção entre verdades material-analíticas e verdades formal-analíticas (lógicas) é apenas intuitiva, essa diferenciação não foi ainda traçada de modo rigoroso (p. 41).

[Clique aqui para ler alguns pontos importantes que talvez tenham passado despercebidos.]

3.5. Questões

Questões do capítulo 3:

(i) O que caracterizaria uma concepção "dinâmica" do conceito de inferência lógica? [Esboço de resposta: a conclusão é extraída, sacada, deduzida das premissas. Passamos das premissas para a conclusão por um processo, por um movimento.]

(ii) Por que Tugendhat e Wolf criticam a noção kantiana da inferência? Explique. [Esboço de resposta: os autores consideram a caracterização kantiana de inferência dinâmica e, portanto, psicológica.]

(iii) Por que a caracterização dinâmica de inferência seria insustentável? [vide p. 28]

(iv) Escreva as noções envolvidas na estrutura do capítulo 3 da Propedêutica. Isto é, qual é a estrutura [conceitual] desse capítulo?

(v) Por que, para os autores [Tugendhat e Wolf], a primeira caracterização kantiana do conceito de analiticidade parece insuficiente? [vide fim da p. 34 e início da p. 35]

(vi) Segundo os autores [Tugendhat e Wolf], qual a inovação de Kant na CRP, isto é, qual o passo adiante que Kant dá em relação à Leibniz?

(vii) Discuta [analise] a caracterização kantiana de juízo analítico.

(viii) Defina o conceito de analiticidade kantiana. Esclareça a metáfora do “estar contido em” quando se explica o conceito de analiticidade de Kant.

(ix) Esclareça por que Kant chama os juízos analíticos de “elucidatórios”.

(x) Com que concepção de análise Leibniz trabalha? Compare com a noção de analiticidade de Kant.

(xi) Compare a noção de verdade de razão (Leibniz) e a noção de juízo analítico (Kant). [Esboço de resposta: são obtidos por análise (p. 32), são enunciados idênticos (pp. 32 e 36), sua verdade pode ser conhecida com princípio da contradição (pp. 32 e 34), vide ainda p. 33]

(xii) Como Tugendhat e Wolf explicam o conceito de inferência lógica?

(xiii) Qual a diferença entre analiticidade formal e analiticidade substancial [material]?

(xiv) Por que, segundo os autores [Tugendhat e Wolf], a noção de verdade analítica se remete mas não se reduz ao princípio da não-contradição [i.e. o conceito de analiticidade envolve uma remissão, mas que não é uma redução]?

(xv) Como é possível que uma proposição seja analiticamente verdadeira, mas não seja logicamente verdadeira? Dê exemplos.

Chegamos ao fim do arrebatador terceiro capítulo da Própedêutica lógica-semântica.