1.2. Esboço da interpretação (Sketch of an interpretation)

O próprio Dickerson oferece a sua interpretação da Dedução B como podendo ter sua ideia central resumida em duas premissas e uma conclusão:

( α ) Uma síntese espontânea precisa estar envolvida em todo conhecimento discursivo [discursive cognition].

( β ) Se o conhecimento discursivo [discursive cognition] envolve uma síntese espontânea, então essa síntese precisa ser governada pelas categorias.

Logo, as categorias tornam o conhecimento discursivo [discursive cognition] possível.

No original (p. 51):

( α ) All our cognition must involve a spontaneous synthesis.

( β ) If our cognition involves a spontaneous synthesis then this synthesis must be governed by the categories.

Therefore, the categories make our cognition possible.

Mais precisamente (ver pp. 201-3):

( α ) All discursive cognition must involve a spontaneous synthesis.

( β ) If discursive cognition involves a spontaneous synthesis, then this synthesis must be governed by the categories.

Therefore, discursive cognition must involve a category-governed spontaneous synthesis (and thus the representational content of that cognition is, in part, determined by the categories).

1.2.1. Explicando um pouco melhor a premissa α

Nós, seres com uma mente discursiva, conhecemos o mundo fazendo juízos sobre objetos. A premissa (α) diz que esse conhecimento, esse juízo sobre objetos, só é possível se houver uma síntese espontânea.

Uma vez entendido o que a premissa (α) afirma, devemos agora nos voltar para como ela é demonstrada. Na argumentação de Dickerson, há quatro passos fundamentais:

(A) Nosso conhecimento envolve a apercepção de intuições sensíveis.

EXPLICAÇÃO. A prova da premissa (α) começa assumindo que todo objeto da nossa intuição é representado como complexo (i.e. como algo não simples). Logo, o conhecimento [cognition] desse objeto envolve a compreensão [the grasp] de uma representação complexa (i.e. um múltiplo unificado de representações).

[Clique aqui para uma explicação mais detalhada da passagem de (A) para (B). ]

Repetindo. Nosso conhecimento envolve a apercepção de intuições sensíveis e uma intuição sensível é sempre uma representação complexa (i.e. um objeto da intuição sensível é composto de várias representações componentes).

Por isso, temos que:

(B) Todas as representações compondo minha intuição precisam ser aperceptíveis por mim como formando uma unidade.

EXPLICAÇÃO. As representações compondo uma certa intuição (que é uma representação complexa) minha precisam ser capazes de serem compreendidas [grasped] por mim como (i) representando e (ii) como estando juntas formando uma única representação ou ponto de vista sobre o mundo (o meu ponto de vista) (p. 105).

OBS. Chamamos (B) de ‘princípio da unidade da apercepção’ e é uma proposição analítica.

Repetindo. Se nos perguntarem “O que é o chamado 'princípio da unidade da apercepção'?” Podemos responder: “É o princípio: todas as representações compondo uma intuição (= uma representação complexa unificada aperceptível) minha precisam ser aperceptíveis por mim como formando uma representação complexa unificada. (p. 106)”

(C) Para que o ato de apercepção de uma representação complexa seja possível, essa apercepção deve ser entendida holisticamente.

EXPLICAÇÃO. Para que (B) seja possível, é necessário explicar essa apercepção em termos holísticos. Isto é, apenas através de uma concepção holística do ato de apercepção é possível tornar inteligível o fato de podermos tratar uma representação complexa como representando algo (p. 51).

Pergunta. Qual é a concepção da apercepção chamada por Dickerson de holística?

Resposta. Segundo a concepção holística, a nossa capacidade de aperceber a ‘variedade numa intuição’ como um todo unificado não pode ser explicada em termos da possibilidade da consciência de cada representação componente individual (p. 112); i.e. meu entendimento da representação toda não seria um resultado do meu entendimento de cada um de seus componentes (p. 126). Numa visão atomística, o sujeito primeiro seria consciente de cada componente e isso, de algum modo, geraria (como que por “construção”) uma compreensão unificada do todo. Já na visão holística, nós primeiro compreendemos o múltiplo unificado de representações como um todo, como uma unidade.

[Para a ideia da defesa de (C), clique aqui.]

(D) Se a concepção holística da apercepção é verdadeira, então há uma síntese espontânea.

EXPLICANDO. O que (D) diz é (p.123): a existência de uma "síntese" é uma condição necessária para se compreender (i.e. apercerber) o conteúdo de uma representação complexa, pois a mera receptividade é insuficiente. Aqui a síntese precisa ser entendida como o ato de conhecer [cognising] alguma coisa nas nossas representações (p. 135). Note que (D) se articula com (B): a unidade que uma representação complexa possui não pode ser entendida como apenas sendo dada (i.e. como passivamente recebida), precisa haver um elemento de espontaneidade (p. 80).

Repetindo. Para que a apercepção de uma representação complexa unificada seja possível, essa apercepção não pode ser meramente passiva (como uma recepção passiva de informação) (p. 98).

[Para a ideia da defesa de (D), clique aqui.]

OBS. Já no início dessa seção 1.2.1, por simplicidade, usei a tese kantiana de que, para nós, a cognição mais elementar é o juízo, i.e. não há outro tipo de cognição mais fundamental que o julgar, i.e. não há conhecimento sobre o mundo para nós até 'pensarmos ou dizermos' certo predicado de um objeto (p. 137).

Em suma, a defesa de (α) é resumida por Dickerson do seguinte modo (pp. 146-8):

Passo A

1. Nosso conhecimento [cognition] ocorre através da consciência imediata de estados internos ou das ‘modificações da sensibilidade’. (Pressuposto representacionalista de Kant.)

2. Esses estados internos ou representações não precisam sempre estar na consciência do sujeito; ou, equivalentemente, representações inconscientes são logicamente possíveis. (Tese leibniziana.)

Logo, necessariamente: conhecimento [cognition] envolve a apercepção de representações.

3. Todos os objetos de intuições sensíveis são representados como complexos. (Certamente verdade no caso de seres humanos. Como nossos objetos são representados sempre no tempo e/ou espaço, eles são, potencialmente, infinitamente divisíveis. Logo, todos os nossos objetos são representados como não simples.)

Portanto, o conhecimento discursivo [discursive cognition] é a apercepção de um múltiplo unificado de representações.

Passo B

4. Para que o sujeito possa aperceber uma representação complexa unificada, ele precisa ser capaz de aperceber todas as representações componentes como formando uma unidade. (Esse é o chamado 'princípio da unidade da apercepção'.)

Passo C

5. A apercepção de um representação complexa unificada não pode ser uma consciência meramente receptiva de cada componente, pois senão a ‘unidade de apercepção’ (4) seria incompreensível. Isto é, seria impossível entender como cada representações componentes estaria junta formando um único ponto de vista sobre o mundo.

6. Essa ‘unidade da apercepção’ (4) só é possível se a apercepção de uma representação complexa unificada é holística e não atomística. Isto é, o sujeito precisa compreender a intuição como um todo complexo unificado, ao invés de construir esse todo a partir da consciência de suas partes.

Passo D

7. Se a apercepção de uma representação complexa unificada precisa ser holística, então tal apercepção deve envolver uma síntese espontânea – i.e. a aplicação a priori de um regra de projeção pela qual o sujeito compreende [grasp] a representação toda como uma combinação determinada de representações componentes (e.g. como apresentando um objeto espaço-temporal, como no caso de seres humanos).

Segue-se que uma síntese espontânea precisa estar envolvida na apercepção de uma representação complexa unificada.

Conclusão

Logo, (α) uma síntese espontânea precisa estar envolvida em todo conhecimento discursivo [discursive cognition].

CQD

1.2.2. Explicando um pouco melhor a premissa β

A motivação para afirmar (β) é: dado (α), resta saber se a objetividade do conhecimento [cognition] é possível. Isto é, como evitar que a espontaneidade (de α) se degenere em algo meramente subjetivo e arbitrário?

Por (β), tentamos evitar que nosso ‘conhecimento objetivo do mundo’ seja substituído por uma associação livre ou pelo solipsismo (p. 52).

A resposta a essa questão é, basicamente, a seguinte: apesar da sua espontaneidade, as categorias são também objetivas uma vez que elas estão na base, na essência, do próprio ato de julgar (p. 71).

EXPLICANDO. Para que um conhecimento (cognition) tenha validade objetiva (i.e. validade necessária e universal), o ato de síntese (descrito em α) não pode estar apenas fundamentado por características subjetivas de pessoas particulares (i.e. não pode ser apenas fundamentada por características psicológicas empíricas de cada sujeito) -- nem mesmo se, factualmente, essas características fossem compartilhadas por todas as pessoas. Ou seja, para que a objetividade seja necessariamente universal, esse ato precisa, portanto, estar fundado em estruturas essenciais da mente discursiva.

Kant, precisando explicar como é possível um sujeito cognoscente ser, ao mesmo tempo, espontâneo e receptivo, defende que a mente precisa aplicar espontaneamente as categorias sem que ela (i.e. a mente) possa aplicar conceitos de maneira totalmente arbitrária (p. 62).

Em suma, a defesa que Kant faz de (β) pode ser resumida da seguinte maneira (p. 63):

1. Necessariamente: um ato de síntese espontânea pode gerar um juízo que revindica objetividade (i.e. um conhecimento [cognition]) apenas se a síntese é governada somente pelo que é essencial à mente cognoscente.

2. Uma mente cognoscente é, essencialmente, uma mente que julga.

3. As estruturas essenciais do ato de julgar são as funções lógicas listadas na ‘tabela de juízos’. (Sabemos isso pela Dedução metafísica.)

Logo, necessariamente: um ato de síntese espontânea pode resultar em um conhecimento [cognition] apenas se a síntese é governada pelas funções lógicas.

4. As funções lógicas são exatamente as categorias.

Logo, necessariamente: um ato de síntese espontânea pode resultar em um conhecimento [cognition] apenas se a síntese é governada pelas categorias.

Portanto, (β) se nosso conhecimento discursivo [discursive cognition] envolve uma síntese espontânea, então essa síntese precisa ser governada pelas categorias.

CQD