1.1. Ideia geral da interpretação de Dickerson

1.1.1. Qual o objetivo da da Dedução transcendental?

O objetivo da Dedução transcendental seria mostrar como as categorias podem ser ao mesmo tempo objetivas (e.g. serem utilizadas em juízos sintéticos a priori) e espontâneas (i.e. serem regras puras utilizada pelo sujeito para determinar a experiência). Isto é, na Dedução, a possibilidade de termos objetividade combinada com espontaneidade é tornada compreensível, nos é explicada. Em suma, na Dedução, é mostrada que o conflito entre espontaneidade e objetividade – duas noções envolvidas no conceito de conhecimento discursivo - é apenas aparente. (pp. 42-5)

OBS. Nós, realmente, utilizamos (i.e empregamos) certos conceitos (a saber, as categorias de causa e feito, de substância etc.) em juízos sintéticos a priori. Esse fato (qui facti) não estaria em questão na Dedução. O que estaria em questão é a legitimidade desse emprego, dessas asserções (qui juris). (p. 41)

Dickerson resume assim (pp. 49-50):

1. Nós utilizamos certos conceitos (i.e. as categorias) em juízos sintéticos a priori.

2. Por isso, em contraste com o uso que fazemos de conceitos empíricos (i.e. aqueles abstraídos da experiência), nosso uso das categorias não é baseado no reconhecimento de características [comuns] do que é dado. Em outras palavras, ao usar categorias, o sujeito determina sua experiência, ao invés de ser determinado por ela [pela experiência].

3. Isto é, o uso que fazemos das categorias é espontâneo.

4. Entretanto, esse fato [i.e. essa espontaneidade] parece ser incompatível com a objetividade que nós associamos com as categorias (ao utiliza-las em juízos sintéticos a priori).

5. Pois parece que a objetividade pressuporia (i.e. exigiria) que o uso [objetivo] dos conceitos fosse receptivo, ou constrangido pela realidade, e não espontâneo. Como poderia essa espontaneidade do sujeito ser diferenciada da mera projeção de fantasias imaginadas [pelo sujeito] no mundo (como Hume argumenta acerca da ideia de conexão causal necessária)?

6. O objetivo da Dedução transcendental é mostrar como a espontaneidade e objetividade das categorias são compatíveis.

7. Esse objetivo será alcançado ao se demonstrar que essa espontaneidade é essencial para a objetividade em geral (i.e. para a cognição de algo como sendo um objeto). Isto é, a espontaneidade das categorias é o que torna o conhecimento [cognition] possível.

1.1.2. Qual a ideia geral da interpretação de Dickerson?

Na interpretação de Dickerson, o argumento de Kant na Dedução B pode ser resumido como sendo uma análise do conceito de conhecimento discursivo [discursive cognition].

O argumento é: compreender [grasp] uma representação complexa unificada implica espontaneidade, mas para que essa espontaneidade seja compatível com a objetividade -- e, portanto, com a receptividade -- então esse compreender precisa ser guiado por regras a priori cuja origem está na estrutura essencial do ato de julgar – i.e. esse ato de compreensão espontânea precisa ser governado pelas categorias. Portanto, as categorias se revelam como condições necessárias da experiência e sua objetividade ficaria então demonstrada (p. 32.)

Em resumo, a interpretação de Dickerson do argumento de Kant na Dedução B é o seguinte (p. 1):

1. Para que o sujeito possa compreender uma representação complexa unificada [i.e. para que ele possa conceber 'uma diversidade num único conhecimento', ‘to have a unified grasp’] – ou, como Kant diz, para que a ‘unidade da apercepção’ seja possível – um ato de ‘síntese espontânea’ se faz necessário. Esse ato mental é fundamental para gerar o conteúdo representacional da experiência (do sujeito).

2. Kant argumentará, então, que tal espontaneidade pode preservar sua objetividade – isto é, se tal ato pode gerar uma representação que merece ser chamada de ‘conhecimento (cognition)’ – somente se essa síntese é determinada [guiada, governada] por características essenciais do sujeito enquanto mente cognoscente discursiva. (E não por características contingentes do sujeito, e.g. características psicológicas empíricas.)

3. Como uma mente cognoscente discursiva é, essencialmente, uma mente que julga, temos que, essa síntese espontânea é governada por regras que tem sua origem nas estruturas essenciais do julgar (a saber: as categorias).

Então, as categorias tornam nosso conhecimento (cognition) possível.

CQD