O dinheiro do casal

O dinheiro do casal



A ideia de que é mais importante estar junto do que saber quem vai pagar a conta caducou; a arte de dar e compartilhar parece ter saído de moda

Maio de 2016

Christian Ingo Lenz Dunker

Duas ou três gerações atrás a diferença de proventos entre homens e mulheres reproduzia massivamente relações de dominação e opressão. “Quem paga a orquestra escolhe a música.” Qualquer manual da boa esposa da primeira década do século passado continha instruções sobre como uma mulher deveria ser “econômica” – palavra que vem justamente de “oikeos”, casa, em grego. Por outro lado era frequente encontrar a repetição das mesmas narrativas de sofrimento em torno de duas soluções básicas: “mesada” ou “conta conjunta”. Não é de admirar que a fantasia de prostituição fosse, naquela época, endêmica.

Com as novas conformações familiares, a crescente consciência sobre as questões de gênero, a mudança do lugar social da mulher e a flexibilização dos padrões de vida amorosa seria esperado que uma transformação equivalente se produzisse nas formas de gerir o dinheiro e de lidar com a desigualdade que ele produz no interior das relações. Contudo, o que tenho observado sobre a vida dos casais nessa matéria é uma regressão abissal. Tudo se passa como se a ascensão benfazeja da indeterminação dos tipos de laço amoroso criasse modalidades cada vez mais tirânicas e impiedosas de lidar com o dinheiro. É a repetição invertida da fórmula de Slavoj Zizek sobre o capitalismo neoliberal que deixa cada vez mais livre a circulação do dinheiro, e cada vez mais controlada a circulação de pessoas. Namorados que dividem rigorosamente a conta em todas as ocasiões. Noivos que fixam meticulosos contratos pré-nupciais. Casais que se fazem e se desfazem subordinados às respectivas carreiras. Famílias nas quais se aboliu toda circulação não controlada ou justificada do dinheiro.

A ideia de que é mais importante estar junto do que saber quem vai pagar a conta caducou. A arte de dar e compartilhar saiu de moda. A difícil decisão, que atravessa tantas vidas, opondo, aqui e ali, trabalho e amor, tornou-se indiscutivelmente decidida em favor da carreira. Entre a bolsa ou a vida, a escolha é sempre a bolsa. E quanto mais elevada for a classe social dos envolvidos, mais forte a regra draconiana do “cada um, cada um”. Se ela ganha mais ou se ele perde o emprego o casamento está em crise. Afinal, quem quer ficar sustentando o outro? Se ela não lava os pratos é preciso incluir o valor agregado disso na contabilidade do contrato conjugal.

O poliamor, os casamentos abertos, as flutuações de terceiros e quartos, as alternâncias de gêneros, os filhos de famílias tentaculares, as famílias homoparentais constituem experiências incrivelmente interessantes. Mas em matéria de compartilhar o dinheiro parece que nossa imaginação só empobrece. Ninguém fala em cooperativas, fundos mistos ou novas formas de desequilibrar a justiça do dinheiro no interior dos casais. Coisas como “quem tem mais paga mais” ou a antiga ideia de Gandhi “a cada qual segundo suas necessidades” tornaram-se signos do engodo de uma época de dominação. Misturar os dinheiros é perder-se, desorganizar-se, expor-se no mercado futuro. Compartilhar gastos terminará em sentimento de injustiça. O amor tornou-se um péssimo negócio, especialmente quando ele nos faz pagar mais pelo mesmo. Contra tudo isso o mais moderno neste assunto é ainda a tese de Lacan de que “amar é dar o que não se tem para quem não o quer”.

Este artigo foi publicado originalmente na edição de abril de Mente e Cérebro, disponível na Loja Segmento: http://bit.ly/1WusOOZ