Árvore Arterial
[Edição de Autor, 2020]
I
ÁRVORE ARTERIAL
há uma árvore arterial em cada momento
vagueiam humores dentro
como gente interligada
ar de treva às vezes, outras estrela sub-reptícia
pode até ser um sorriso lascando concepções ao mundo
, uma árvore de nervos e sombra
arterial na comunicação
uma árvore de sangue aguado ou transparente
[ramificação visual a anos-luz]
árvore arterial por segundos entre sinapses
em cada vazio-de-estar ou protopoema
II
COÁGULO
onde a palavra estanca
[vórtice de energia]
a palavra erradamente achada condigna
pois a sua energia
não se coaduna com pressupostos morais
o onde é a origem da transacção ―
a palavra estanca na dúvida
esguicha vida folho a folho na assumpção
de uma presunçosa ignorância
onde a palavra estanca
a boca
funcionando a boca como clausura de carne mastigante
assuntos cheios de osso e perfume
― dizer é estancar, magoar a veia no pensamento
tido por coágulo; vivemos todos os dias todos
com um borrão de tinta nos olhos, estancamos
e às vezes não reparamos no animal selvagem
que é o poema ali estancado
movimento de energia que é corpo e paisagem englobante
fosforescente e mágica cadência intermitente
peixe fugidio no sangue dentro do corpo
salpicando faiscas no fazer
com energia luzente por escrever, por inscrever
queimada a palavra e bebida a cinza
seguiremos a vida pela margem do silêncio
e então veremos ― a vida a poesia a vida
quando o olhar estanca
SEMENTE
um pé nu no frio limpo da varanda
mármore-mundi, cinzelado gesto ao piano
no que de quente se lembra a alma
as aragens ou correntes que o sangue diz e esquece
a cada momento mais pobre no salão oco
onde sementes caladas jamais germinarão
agudos silêncios de verde depois ― textura muda
de dor cravada nas frinchas do real
tom a tom no baque ridículo do coração
cambaleando e derivando ainda mais à deriva
o que é? para dentro o que de dentro se avoluma
em semente ― o que de fora sobra de casca grossa
de ver ou de haver em excesso nos olhos e nos livros
som fechado chamando vislumbres lexicais da morte
VÍRUS
acordar com um favo de lírios entre sal grosso e arruda ―
sacudida a levedura do sono
espraio os membros, lanço-os na confusão do espaço
. banho-me no som, confundo-me com o mar
a música entra-me em cada poro como que pela primeira vez
acordar assim a rondar a contínua boca do mundo
como mão cheia de piedade
as minhas entranhas quentes no núcleo da cama
rodeada de ouvidos predadores
espraio os membros ainda deitado
movem-se viscosos líquidos dentro, pressinto
hesitações de maré na alma
e a dor dos músculos funciona como um leme num barco
tanta água emocional, tantos aromas a esbofetearem
certezas a um caminho ―
daqui para o mundo um sopro que desloque continentes
abrace todas as almas de sal em cada raiz do horizonte
seja o amor um vírus deixado por herança
transformando em boa luz o que de mal tenha
em ingenuidade a humanidade
ARAME
farpados sonhos no crivo duma boca de barro
ensanguentadas palavras do que sobeja da mãe
um arame longo ou o fio encarnado de ariadne
― o caminho cardíaco faz-se a ludibriar a flauta
um dia outro dia ainda aqui, orfeu rasgou o mapa
, escalas de céu estragado na vergonha das pautas
o que resta de mãe e se ata com um lírio branco
dor deslocada por gestação virginal das lágrimas
amnésia do labirinto onírico na senda dos tempos
: a profundidade do poço como língua perfurante
POIESIS
em que verso surge morto o rouxinol diuturno
sem que uma manhã de sal suplante úlceras ao espanto?
falemos então da fome alveolar
que febrilmente vai assolando o espírito
embrenhado em perfumes no silvado
à luz da culpa
do amplexo de vómito no ocre da névoa
ou falemos do corte por onde brotam erradas
as asas contra a manhã
ou calemo-nos
uma vez metidos irremediavelmente
com a petrificação do sangue
escorchados favos de caminhos paralelos
[mel de ânsia]
versos, linhas sonoras do monólogo
linhas daninhas como pautas desirmanadas
de perguntar às flores campestres da memória
luz e corpo em tronco de respirar
de conjugar ressonâncias de outros corpos num corpo
seivas a ladear pensamentos por um desejo de vazio
mênstruo de alma a inquietar canteiros de sombras
em que verso atear o eremitério de estrelas
sem que inadvertidamente
um líquido venenoso irrompa da noite?
VOZ
voz ― quando o som se transforma em corpo
pelo timbre da água emocional na garganta
, um peito rectilíneo desenhado por código morse
todos os dedos da mão mentindo convexamente
coisa de eco por ovo ou verdade escamoteada
: o ouvido cinge a voz dum corpo estranho
que estranhando a si próprio abre-se inteiro
por descobrir-se polimorfo
como a mente na estrada do barulho
aquilo que se fizer de estrutura em toque
de levantar o mínimo átomo de uma adjudicação
aquilo que se fizer da memória nos sonhos
de apagar o cadastro mímico à alma
aquilo que se fizer de barulho ou imaginação musculada
de irrigar vénulas ao medo cardíaco feito coração
voz ― a medusa ensaiando protótipos de sangue
da presença opulenta de ditongos em música ou
vício mordente de palavras que no corpo se contorcem
FLAMA
, arde o canibalismo de remoer os mortos ― combustível
forte cheiro a plantas podres num lado inverso do espelho
redemoinho de antemanhã contranatura para distribuir os
flashes libidinais, a fina dor extenuada da centelha ritmada
dança de contrastes sobre permanência | jogo-da-cadeira
méxico invertido de jogar à cabeceira, mas a aleijar muito
e o animal passeia-se no esdrúxulo das noites incendiadas
desfolhadas noites tatuadas p'lo incenso roubado à infância
o tanto que o adulto desaprendeu nas algibeiras do sonho
passeia-se esse animal órfão contando e recontando o mal
e também o sal de cada palavra enganada de folha mineral
espanta-se repetidamente no bruxedo roxo de estar vivo
pensar ou falar de mortos subitamente precipitados vivos
em sons e movimentos soletrados pelo corpo junto à flama
complicado canibalismo quase musical de gestos e solidão
tudo confundido ou atabalhoadamente explicado na dança
que perde o fôlego, levando à sísmica arritmia da centelha
deixando entrever pétalas de decadência rumo à extinção
BEIJO
e de repente beijar tem o sabor do azul marinho
uma concha translúcida
com um pequeno veio de sal cantante
, fina flor de mosto naufragada na saliva bífida da angústia
um querer de vileza quase pura de desejo
quantos veludos do vermelho haverá nas línguas?
quantos rostos sobrepostos no beijo?
rebentam barcos feridos no mofo das perguntas
……………………………………………...................................
porque o reino azul do sonho é escrito com o sangue
de repetidos dias,
com o peso de ornamentadas portas da noite
por sua vez carregada de aromas enigmáticos
pela misteriosa fugacidade do nome
identidade imiscuída em múltiplos espelhos navegantes
e de repente respirar
abrupto respirar à tona de querer estar vivo
para beber das últimas estrelas toda a água possível
SOPORÍFERO
prestes a dormir o fundo roxo inquieto
algo de errado se chama alma
[virtude necromante do vidro negro]
o que se olha por dentro em reflexo líquido
já não é planta nem animal
antes um vírus onírico
lento pousar de cabeça no tosco ninho dos mitos
a febre é algo que se dá às crianças
algo errado na cópula dos mundos e dimensões
«toma este bago líquido de pesadelo
bola de cristal ou pérfida lágrima-de-cheiro
escolherás um dia»
― algo de errado, consciência
dita flor de solstício
sem haver um meridiano moral onde um estilete
pudesse assinalar grumos vegetativos, embrionários
apenas uma gota roxa, bago de pesadelo
pelo qual o ouvido floresce além da orelha
nada sabendo sobre moradas do inferno
florescendo oportunamente
como infinito aturdimento pela sua existência
talvez um prenunciado búzio de carne
precipitando-se em cenários da verdade-ampola
semente dos sonhos [fundo roxo inquieto]
fata morgana crepuscular da ingenuidade
III
FLECHA
de largar a flecha dos dedos no breve raio de loucura
ferindo às cegas, a amar
o globo de fogo
como lágrima-de-cheiro pontiaguda
de conhecer a lama por texto
a cimentar reflexos comunicantes
a amar como pássaro desirmanado de marionetas
na biblioteca ― era uma vez a nudez
apresentada a retórica envergonhada da cartilha
folículos perversos do casulo negro
intrometido com injúrias musculares
: que álcool apurado faz evoluir
a fúria transumante do rosto?
fugacidade de identidade? porque evolução?
as rectas paralelas do ser em tracejado vivo
para uma tenra exposição epistolar
de tendões amorfos ilusoriamente aquecidos
pela literatura prescrita,
as facciosas rectas do ser paralelo a mundos
por explorar ― o sol, o globo de fogo
substituindo o olho cego
oclusão inteira como palavra engasgada na garganta
o diário escrito dentro do corpo
com silêncios de sangue a descoberto;
e o que levar do sono para o sonho?
que prontidão alveolar antever nos outros
entrando e saindo da nova pele?
de perder altitude
de trair a velocidade de análise [quimeras e ensaios]
o diário a latejar dentro do corpo
de ferir o voo às cegas, dos dedos largar louco
a flecha
LOSANGO
respirar entre fantoches que intentam palavras
ar de sopro estilizado na renúncia, pergunto-me
que imagem cerebral preservar de uma paisagem
se sempre aleija beber o ruidoso sangue da romã?
esperar o tempo [musgo verde] sempre magoando
mãos nas fragas ― o manto púrpura da noite viúva
alento rendilhado de canções amarelas sobre o dorso
ângulos do meu losango, de estar frio entre fantoches
gruta de pesadelos cheia de visco e ruído ― vitríolo
enchendo guloso frascos nocturnos para a especiação
entrar escuro confundindo todos os gritos com o meu
desenhar noutros rostos qualquer rosto que não o meu
CÍRIO
sonho como ondulam os mantos do fogo no coração
«é uma chama»
coisa de texto por abrir no peito
, dançam dedos em volta do calor ―
há uma deiscência de amor empobrecido na fuga
coisa de viajante interior em fúria com a intimidade
com aquilo que fica justo mas desnecessário
uma existência como reminiscência de perda
sonho como são curvos estes mantos do fogo
curvos como a beleza repentina do susto de estar vivo
e escrevem epístolas imorais à decência dos órgãos
trabalham verdadeiramente o fruto da paixão
[seara quente] a vida mantida a fogo
que viver é arder cada dia escuro
com nada escrito a limpo no planalto do peito
e dói-me o coração como brasa doente
― que futuro terá este fruto maduro?
JARRO
, assim tivéssemos colhido os folículos do ventre
como gestos de rua ou mesmo orvalho das pessoas
o de dentro sobeja exagerado no papel e nas mãos
um jarro complicado de cristal e névoa assustadora
estremecimentos, palpitações de pele estrangeira
desatar a correr para os lábios gordos duma boca
assim caíssemos na tarde sobre papéis amarrotados
a saliva desenhada nas paredes fumadas duma boca
― corpo de nadas e de águas vazias já de estrelas
soubéssemos assim o real engano, isto tudo em cor
com células caminhantes em rodapés da miragem e
caindo em espiral na construção anónima do cristal
. vês no jarro a garganta do universo? os magmas,
lavas dissimuladas dum mar organicamente fatal?
CABELO
fio a fio linha a linha traço a traço
chuva de rostos na retina complacente
que denúncia significará a variação
de temperatura da manhã para a tarde?
que significam critérios de corpo
no soluçar medicinal do cérebro?
e fio a fio se conta o dia entre os dias
à noite riscado da cabeça aos pés
desfile de manequins perdulários
suficientemente humanos para o erro e sono
linha a linha o que chove meu deus
e a fonte dentro dos olhos prestes a secar
ossos enterrados no chão, humanas insígnias
desajeitadas ― manequins perdulários
traço a traço nada de nada a constatar
perigoso nada de sobrepeso exagerado
e mesmo depois da esotérica viagem
interessarão estes ossos enterrados no chão?
e ver-te na neblina outrora quiçá amor
planície desejada verde mas enfeitada
com cadavéricos galhos secos e queimados
negros negros arabescos confusos na alma
[cabelo] e ver-te ainda mesmo que difusa
no sonho azedado do concreto ou poeira
que brilhante se confunde com água emocional
ver-te ainda assim na contínua chuva
dos teus cabelos negros sobre a realidade
LIVRO
às vezes quase animal outras quase planta
no domínio do quase um reino sem fim
o livro ― uma presença de lugar inteiro
e como que se aproxima por pseudópodes
à cata dum pulso ou olhar por onde entrar
― de orvalho em orvalho o músculo do livro
diz «lê-me» e não «come-me» ou «bebe-me»
e num instante surgem pessoas desaparecidas
chaves, espectros luminescentes, algum oásis
elixir do entorpecimento revitalizante : o livro
oferece um lápis mágico a agir no pensamento
genuíno ovo filosofal rumo à música das esferas
ÁLCOOL
chegou o corvo
olhar vidrado à janela
grito mudo ao invés de música
o pé nu a chorar sangue entre os juncos
chegou o corvo de nervos umbilicais
negrume sobre a mentira de cristal
uma cama de espinhos em cada asa de amargura
perco as mãos em tanta roupa ferida
memórias estilhaçantes na parede
o corvo vê-se corpo no copo
vejo-me de súbito a matar
o pecado no líquido ascendente do aborrecimento
o corvo vê-se no copo
e eu vejo-me a matá-lo
a afogá-lo entre as pedras de gelo na bebida
a afogá-lo numa ebriez fervida de impaciência
o poliedro adensa-se na ferida em espiral
grito mudo a encarcerar nas páginas dalgum livro
o corvo
vejo-me a matá-lo, a afogá-lo
forasteiro na floresta traída da alma
entre a chuva de néon que alimenta
a farsa no álcool
PAREDE
e a sombra sobra na parede
por ramificação do sangue
num azul respirável
tornando tóxica a possibilidade
de verter medo às palavras
no anseio de falar ―
a silhueta cresce medonhamente
na comparação de mãos fictícias
ao redor das de carne que de dor
cintilam no trabalho
, tudo se cinge a uma espera
como pele tardia do tempo engolido
perversamente engolido por
indefinição existencial
tudo se mistura promiscuamente
na sombra sufocante que cresce
da parede
CÁLICE
gomo a gomo pela língua
uma nuvem gerada nos lábios
― diz-me, porque sangram
os lilases na conversa?
apenas queria escrever-me na tua pele
sílabas de vento, nada de permanente
paixão só dos dedos e de olhar uma luz
como quem se despede do crepúsculo
: vazio-de-estar o tempo.
as páginas. o tempo. nada.
que luz tem a fúria do pão?
o tempo, as páginas, o tempo
de esmurrar os lábios
de sangrá-los
em silvados vespertinos da solidão
angústia de veludos magoados
......................…………………………..
― onde a renúncia dos ciclos?
como calar o sangue? diz-me,
o que farei agora a este cálice?
IV
FRUTO
ordem de fruto, como se frutificar
estabelecesse um reduto placentário de justificação
novos significados da chuva ―
lenta conversa de pingos alheios ao pensamento
o linho enganado de outros tempos aflora de novo
no manto impróprio da noite
cantando contrários da seda em canaviais sombrios
da idade adulta
a espera é um ninho de tâmaras perigosas
metidas com os fungos;
as mãos apalpam a noite violeta
que engorda na ampola renegada aos olhos
esferas brilhantes entre a chuva felina confessada
aos telhados
um futuro nada complacente ―
nunca sangue o líquido escuro da noite
nem promessa nem teorema a esperar
resta somente o bafejar contra o vidro gorduroso
namorar a sujidade fecundadora da circunstância
e mesmo assim recomeçará a ilusão
graças ao ovo estranho gerado na dobra de papel
rente ao sangue
a perigosidade é de estar vivo, ordem de fruto
― sempre a possibilidade de descer
a um qualquer outro reduto desconhecido
NOME
memória dum nome esse som
ainda assim sem que nomeie
nada nem ninguém no plano
mas tutelarmente acendendo
arestas abandonadas ao gesto
que o som abre fissuras roxas
e através delas a pele respira
confundindo colagens tácteis
órgãos uivando de frio e medo
e os membros já desordenados
o som articula o espasmo-de-luz
eco ou um arco de fuga contínua
a vibração enevoada dum passado
ou múltiplas sombras de decalque
o que há de tensão azul nesse nome
DESERTO
desenho na areia caminhando como se escrevesse
o deserto que há em mim ―
depois do aflito azul efervescente
para loucura amnésica dos pulmões
depois da azáfama acinzentada
de mordomias civis e burocráticas
encontro-me agora com o perfil ósseo
da minha sede em mármore
, ou tenso branco expandindo mentalmente
da água e dos textos, do mar ―
julgo que me cresce no peito uma rosa-dos-ventos
pequenina como o mundo, de pétalas cárneas
aventuras do corpo | segredos com outros
na cinza hodierna
o corpo ― trevo de ânsia ensimesmado
corpo verde crescente
sobre a maré silente do horizonte
desenho-me sonhando imobilidade
um perfil nu abandonado ao sol e ao vento
CHÃO
demoro-me na magia dizedora das coisas ―
procuro nela o chão dançante
o inominável país do amanhã
, um chão que a trémula anémona de lume
segreda aos meus ouvidos e à minha pele
dando uma superfície iridescente
ao meu canto caminhante
. o barro conversa com a pedra húmida
e o resultado é um musgo humano
narrativa efémera da poeira de estrelas
in extremis na desordem da noite
cantar é perder sangue como areia entre as mãos
as raízes escrevem fundo o desalento no peito
, porque os mortos são o chão dos vivos
MÁSCARA
as mãos tectónicas entrecruzadas sobre o rosto ―
a máscara mascara profundas impressões do duplo
argênteo sonho real ou antes pesadelo
moeda do sol doente de fundo onírico
, ir até ao mosto róseo de alguma veleidade
e encontrar entre tecidos as vísceras de cristal
como constelação orgânica vital ―
as mãos escavam subterfúgios ao rosto
a máscara espelha como quartzo ferido de luz
será o rosto o caminho de casa?
poderá a máscara irradiar poemas como fio-de-sangue
as muitas cartas escritas ao sol e à lua?
a linha-de-vida é o fio-de-sangue
o quartzo junto ao coração, poema
ROCHEDO
sempre sujo falar da linhagem selvagem da natureza
uma incógnita escuridão enevoando o pensamento
perante as inalienáveis curvas fecundadoras de vida
, em vez da pureza dos rochedos tenho palavras na boca
de enganar sangue vivo o que perder em oportunidade
de abarcar ignorância em cada soluçante sílaba do tempo
o tédio é a novíssima água enganadora de mitos e seivas
tão pesada a existência se pesarosamente pensada a sério
por isso ajoelho-me e planto uma mão no peito da terra
sinto o surdo pulsar do núcleo longínquo como coração
dispo-me caminhando pelo sol até ao mais alto rochedo
NÁUSEA
que rosto o meu depois da rente revoada de pássaros
que voo vertical, quase de condenar uma pobre alma
depois da revoada na mente, que rosto transfigurado
oferecer ao mundo? talvez o que serei em transeunte
nas esquinas dobradas em luz, o que sou no momento
atendido o corpo por ebulição atroz de uma periferia
com os cingidos objectos da mundanidade quotidiana
dos ciclos entre ciclos sobre ciclos, escada em caracol
onde a nuvem de pássaros murmura desdenhosa alguns
atalhos para voos d'alma ― receio não compreender
tudo isto em aroma e cor adentro os sentidos em teia
tenso elixir de iodo e enxofre já babugem no ouvido
quando com sapiência as árvores riem mudamente e
eu no meu ciclo entre ciclos retrabalhando um rosto
QUARENTENA
apartados loucos numa redoma cíclica de contrição
― o que é sangue? o que é o vinho? o que é o pão?
METÁFORA
qualquer coisa de fruto gordo entre a fuga e a linha-de-vida
de camada em camada até ao cerne da imaginação
qualquer coisa de atender medos sob capa frágil
por anseio interno ― entre a mesoderme e a agulha cárnea
a forma curva rodopiando nas mãos entre realidades
entre sangues diferentes, diversos
. já tão longe do pericarpo até onde ir com
a intromissão de entes escorregadios na luz?
o enleio oval da língua no fruto [qualquer coisa]
a explodir de espanto numa superfície afectiva ―
que picotado azul sobra do álcool incendiário da filosofia?
para quê redimensionar o inferno depois de dante e blake?
que ferida abrirá portas coronárias ao diário do desolado?
[ardem os olhos] quantas gemas de sol gastas na metáfora?
entre sangues diferentes, diversos
a forma curva rodopiando nas mãos entre realidades
por anseio interno ― entre a mesoderme e a agulha cárnea
qualquer coisa de atender medos sob capa frágil
de camada em camada até ao cerne da imaginação
qualquer coisa de fruto gordo entre a fuga e a linha-de-vida
V
CARTA
olhos viúvos do mar ainda morrendo sobre a cama
como que aprendendo com nódulos venais do peito
redemoinho coronário de foz perdida entre duplos
cujo vórtice é transfusão do medo convulso para um
cancioneiro de veias rasgadas na púrpura desavinda
glória de mapas do submundo com música de cristal
escrevo-te escrevendo-me por dentro sob lâminas as
linhas da memória de nervuras duma árvore morta
que reverdece e orvalha ante a poalha branca da lua
escrevo-te deitado com os olhos viúvos duma ideia
esperando os arcos de lume no barco da insónia ―
vislumbrar o manto que me espera despindo as mãos
aquecendo roçagares da montanha no peito florido
pronto para entrar no jardim de violinos cortantes
jardim de espelhos e espectros arredados do prisma
as cores não são nomeáveis na gradação nem os sons
contrastes aos milhares, mil faces escavadas em mim
hora de trazer o derradeiro fogo | intocável relíquia
que o medo traz em velocidade o cavalo pelos trilhos
a música de cristal não tem nada de belo | tudo de falso
artefacto de escrita a apodrecer sangues na linguagem
o compasso a compasso é dentro cheio de humores e linfa
escrevo-te escrevendo-me dolorosamente por dentro
porque afinal não há jardim nem violinos nem espelhos
apenas os muitos espectros da solidão povoando as veias
porque as artérias secaram com o choro dos querubins
olhos viúvos do mar morrendo continuamente na cabeça
morrendo continuamente na carta ainda sem remetente
desordenadas linhas que desenham e apagam um rosto
como as ondas numa praia no desalinho vocal das marés
débil cancioneiro de veias rasgadas na púrpura desavinda
aqui só, sem rosto nem nome, escrevendo na pele assino