Ancoradouro


[Universitária Editora, 2002]



pousa a boca no peito fissurado da terra

colhe o silêncio do que está morto

regressa para onde nunca estiveste

reconstrói em ti a pequena ruína dos brinquedos

no quarto escuro refaz o fugitivo corpo


da rumorosa existência de papel bebe

a ansiedade venenosa das palavras o sangue

das perdidas aves no surdo coração da viagem


quando chegares ao límpido limiar do corpo

incendeia a cruel noite da infância despede-te

porque ao regressares aos tristes dias de hoje

terás esquecido a breve alegria do rosto e

uma luz extinguir-se-á vagarosamente

no interior da mão envelhecida


Al Berto

ABISMO


falar da montanha

o real da cordilheira de papel sem jasmim

o cheiro a suor como soporífero

terror dos currais ambicionados


decanto o pranto desenhando a anca

absorvo o fluido predilecto

a tarde em que morre o cárcere

dono do esperma ressentido


uma cara desertora exibe o silêncio

dum monólogo interior

apagam-se mãos nas cortinas encarnadas

e as pevides não ardem;

ainda é cedo para ressuscitar

o nódulo encarapinhado


derrapo fedendo em mim

num chão de desejos rotulados

a abelha brocada persegue-me

ao vislumbrar a soldadura incólume

prevendo a luxúria nos lábios

AFINIDADES


sobre a mesa a muda faca

e seu espectro como boca

mareja minerais; o alumínio

dissimula o suprimento cívico

da redundância terminal


de tudo os olhos apartados

perdulários afastam formas

ciciam os justos títulos

para o assomo acuchilado

pela nesga de luz


o arabesco turvo do silabar oscilante

principia o gesto brusco da limalha ensaiada

autêntico dízimo brejeiro


o pão ázimo inculca o peito nomeado

seu gume afiado ameaça

no cruciar verídico e a lua emboca

com seu núcleo oculto

na cinza dum corpo pagão

recordando o borbulhar

o cismar do arroxeado

queimor incógnito que abrolha

na linha acidental da era finda

GRAVIDADE ASSIMÉTRICA


a chave espetada na parede onde haveria uma porta

se azulejos iconoclastas não destruíssem a simetria

do que é real e que se povoa hermeticamente suspirando


carreiros perpendiculares perpetuados

por um esgalhar de escrita abissal

entre esculcas que ávidas apontam ao movimento


conto a partir do nada instalado

refiro-me ao extasiado breviário

de ditongos clonados em penúria

pela ave negra que voa engordando

com a sublime gravidade tácita

volúvel no aturdimento inconfesso

EXSUDAÇÃO


olhando-me insípido renovo o descrédito amontoado

tonalidade da demanda parasita causticando o arco

cume enquanto verme tendo como capa a manta morta


uivos iniciam a sinfonia do descampado

vale ou garganta em sangue


o potro finta as escamas

a poética entra em oclusão

entranha-se nas redes microscópicas

dum pedaço de pele sofrível

e as labaredas acolhem indecisas

um sopro

insígnia da ardência verbal

ANTRO SIBILINO


trio damascos côncavos enquanto recluso

fricciono os músculos no soalho

até poder cheirar uma outra carne


morrem seres no armário caliginoso


viajo na janela quase ecrã

a cera inimaginável

em breves depósitos do decalque ocular


a criança mutante aponta o dedo ao peito do pai

enquanto a mãe recolhe os fragmentos de mercúrio

logo adulterados pela química lacrimal


abaixo do reflexo em roda

o outro lado escrito

cifra do tecto sinuoso

ANCORADOURO


encravando no arranque repelente

no solavanco defraudado

colarinhos aveludados coincidem

com o desaparecimento da palavra


a denúncia dos actos envenenados na mente druida

trilha a gula frágil da ruga a voar em asa delta pausa

o espelho comanda a força

não há decisão fremente no que se acusa

através de feridas amordaçadas num antigo destino

conotado pela noção de casa


surge a estrela desavinda do que se encontra quando só

e um relance musical atrai o desenlace pausa

um instrumento hipnótico escuta o tambor da fala

e a voz rouca canta para acrílicas paredes incrédulas


a nuvem de pássaros pedintes desperta

e o céu oferece-se de novo pausa

uma nova melodia aviltada no crepitar da revolução;

vampiros da legião guerreira afunilam dogmas

do ressuscitar em oração e de novo o relance musical

a loucura de subir pelas paredes, o cântico negro

a fugir das vogais em convulsão pausa

um estômago emerge sozinho vomita ganha braços

e punhos e esmaga golas desencontradas

num peditório ou banco de esperma imaterial


palavras esfaqueiam projectos defecados em sonho

como espuma parida por um mar poluído

e de novo o relance musical

o bando de pássaros aflora sem aviso prévio

para um renovar a partir do vetusto trilhar empoeirado;

outra sílaba no descanso e há um dilúcido arrependimento

ao auscultar carunchosas óperas aniladas

dulcificado pábulo do solevantar inicial

apadrinhado por algum céptico corrupto

PÉRIPLO


alongo o pus na ferida imutável

exalo a fúria dum tentáculo corroído

posteriormente mastigado por bocas imundas


o consumo ardente da nova aurora

direito à perda perante o público

na ascensão da parábola saciada


rua coberta de paralelos esdrúxulos

sob frenético lençol esverdeado

a penugem do ensandecido púbere


alcançando as rochas negras

o navegante eremita suaviza

a paisagem energúmena do ridículo


no lago navegam alfaiates obstinados

a escada não se releva como astro íngreme

é antes disseminada em argutas utopias

CONSUMPÇÃO


ao aplaudir serpentes que se esfregam

a desejar anfíbios e ovos

dilaceram-se gostos da promíscua serenata degolada

esquina sombria renitente do fôlego alheio

e os objectos metálicos reluzem

os dedos não escondem a soturna face embriagada

negra de crer em fictícios ícones, geleias nocturnas

suprimento de candeias no deserto algente


o carbúnculo do eremitério a luzir

e a velha dorme

sequiosa perfila na gigantesca roda

ou álamo perfidioso

unguentado pela maresia chistosa

para déspota armação

CONFLITO


na evaporação o halogéneo simula a corrente diletante

como anémona acorrentada em vago aquário inculcado

rematando as pontas duma raia drogada que escuta

a música de orcas em festa


a rusga insidiosa entre elementos esfomeados

por negritude assaz

convoca o cometa do desarranjo planetário


em cada palavra a linfa detentora

e o porão repleto de injúrias

manjar inopinado de tribos

MUTAÇÃO

o último desperdício

e a salamandra insurge

exibindo suas manchas


chamas como auréolas

sobre as cabeças

invasões em terapias provisórias

que ineficazes escavam poros

num antro desmontado

a cada viragem de entoação

CULTO


monges jejuaram diante do lamento

desadunado pelo efebo de olhos húmidos


monges beberam lágrimas seminais

cumprindo em oração até à exaustão gótica


um estranho jarro de estanho jorra soluços

sincronizando espáduas antagónicas


painéis apodrecem à primeira fala do prior

na tarde alumiada em que estigmas afloram

TIROCÍNIO


foi-me dado o tremeluzir da fleuma

a província escolástica guardada

como morro beneditino


o cabelo enxuga os pés molhados

o coração guarda-se em casa

numa caixa perene à senda dos tempos

e relíquias perdem valor

enquanto meros artifícios passados

valorizam com estrénuo suor depositado

VERTIGEM


assistindo à solidão das galinhas

prestes a provarem o cúmulo da perdição

engulo o lagarto sapiente em justa harmonia


o onde em verão ao deglutir tâmaras envenenadas

com palavras postiças, autênticas falácias em combustão

em conspiração arquitectada para um arborescer maligno


o sangue ferve nas demoníacas veias da hegemonia

felpuda irrigação sonante, querido fado de chinelos

apercebo-me da vertigem ao beber a saliva de ícones

INCISÕES


o muro em células

intacta rosa do deserto

seu aroma, balbuciar indiscreto

do peregrino que propaga

pétalas de choro

com seus olhos contíguos

ao luar envidraçado


cinco incisões e prossegue-se

o baptismo com pó de anjos

cinco chagas, flores quaresmais

de todo o sempre apregoado


os tigres adormecem no covil

onde o movimento oureja

CONTRASTE OUTONAL


folhas amolecidas, negras arrastam-se pelo chão

visitam o musgo repousado na rocha paciente


o rosto claro da ampla magnitude

soberba murmurada na brisa

da manhã húmida que entreluz


ângulos incertos e depois um sopro

assenta a geometria cintilante

de fungos espermáticos

TREVO


a sorte a boiar no lago

reforço da carapaça prateada

caruncho da carne ou véu indemne

lança espetada na monotonia casual


a sorte do pulgão que assalta

o floema da planta robusta


não há sorte que conforte a má sorte

está lido o gemido contido no ser sofrido


as medalhas arrecadadas afogarão o vencedor

RECUSA


decorado está o ostíolo em chama

morbígero alardeia a língua inepta


pupilas decaem no regaço aberto

lomba de mentor inconsciente

para triagem da languidez ou rícino

jactância predilecta em compromisso


a fala não engana o dono do falo

relicário no sudário ambulacrário


o quarto com cama inalterada

servirá de poço no lençol

a única nódoa é a de lágrimas

amontoadas histericamente

DE BOCA CHEIA


da maldade fiz farinha

dessa farinha fiz pão

desse pão falo agora


com o esófago congestionado

trinco o que deveria apregoar

dou comigo a fruir o que injurio

dou o que rejeito amando ao longe


ainda aqui a ver o de lá definhando

sobra-me o fatal dizível querendo

morder minha crua carne nímia


denuncio a rotatividade nociva

o ciclo devasso entre ciclos fidos

no espelho nada é proeminente

embora saiba que a boca está cheia

TROVOADA

embarco na fala da chuva

e na do trovão colérico


estremecem telhas

corações frágeis


embarco na ira fria

da enguia eléctrica


ouço brados ensandecidos

vejo navalhas afiadas e chicotes


ao som de golpes desferidos

a equivalência dum choro tácito


embarco no desdém a ferimentos

o laranja halogenado quase mártir


cintilam fímbrias arrojadas

cinza de olhos e algum granizo


embarco no mote dúbio e distante

à flor do que vive abaixo desse fogo

EVOCAÇÃO


num elo próximo abrir de novo

os pulmões afogados no passado

rever rubis a arderem como olhos

decepar aglomerados em nubladas

contrições lenificadas ao ritmo

dos gestos complacentes lápide:

em tudo o fundo deste mundo

APARIÇÃO

pálido sob a figuração

espezinhando a negritude

entediado no antro do lume


ouço a voz e cravo no peito

a pluma da outra terra

terra de lâmpadas que fundem mudas


um vulto emana intensíssima luz

e tudo cega à volta

do já cego meditabundo

EFÍGIE


prosseguindo a estação visionária um pé franzino na areia

arrisco um sopro súplica nítrica ou louco zumbir

a bandeira mergulhada no lago, fraco sol sobre a pele

rente ao coral medito sobre a esfera, dedilho fragmentos

de madressilva; pecador isento traficante de pecados

pescador em alto mar, a dor é aguda: palma ou solha

não tens lugar nos mortos pois esta festa é sesta

na cama sulfúrea, uivo como uva salgada e o mar longe

degredo instancial braçada na terra tumor sem dor

e o corpo com mazelas os dentes a roerem imagens passadas

fugidias enguias a contorcerem-se e é estranho o som

resultante da fricção destes corpos expandidos;

não subestimo a matéria nem o vácuo, reato a frugal

subsistência verbal o vivo canto vertical intermitente

sou cúmplice ao ver extinguirem-se sopros vertiginosos

acendo fósforos a partir do cume na noite de néons

e estudo a alquimia dos seres que se apagam no painel

clarão com marcas de água estampado no rosto dos olhos

a tinirem sussurros discretos sobre a dissolução do mal;

realço a azia ou gaivota bravia em tamanha heresia

tardio consolo da boca que arde fendida no corpo calçado

ASSEMBLEIA


o silêncio colhe o catarro da arquibancada

prestes a ruir o alento a sisudez cárnea

gorjas expandem-se no prelúdio feérico


eis o sóbrio halo no devaneio balístico

a sede de metais aquando a decadência de escórias


a sombra colhe o medo do extorquir pedinchando

o debruçar sobre o cristal deixa de ser culto

e o pulso transfigura o recipiente do sémen baldio


eis o contorcer férrico acusando dissimetria

a fome de acrílicos aquando a revolução arbórea


os desavindos rostos em armadura

libertam faúlhas de cumplicidade

e rubros mantêm-se profundos

FEUDO


o pulgão frouxo na areia dissimula o visco ejaculado

no culminar da dança pela alameda

lábios em euforia e como estorvo as palavras e os dentes


traz-me o basalto para emoldurar a escultura de gelo e seda

e um cálice de vinho para amadornar acérrimos presságios


vesti a túnica de alumínio para este deserto

no qual a flor explode e ganha gomos

moribundo hei-de segredar à vagina da montanha

os pecados ridículos borbulhando para dentro

as fábulas espectrais da infância intermitentemente sacudida

as esculturas mirabolantes construídas com papel e cuspo

as fantasias estrambóticas da adolescência litografada


e depois a dolorosa ressaca em que se viaja chovendo meteoros


tónico para descompressão:

reviver a gula por presépios em construção

esbofetear o rosto

e cheirar e ler os velhos papéis que assombram o presente

DESASSOSSEGO


preocupa-me o precipitar de corpos mortos

em pantomina

o sexo dos anjos caídos

o portal

a demora anacrónica

dos acontecimentos almejados

para os dias vindouros

agarrados ao exasperar granítico


preocupa-me a repulsa entre salivas

a fuga imediata do calcário

e um abraço fratricida rompendo

a madrugada

os músculos contundidos no duplo disparo de atalaias

os olhos feridos solitários

repetindo o espectro lunar

irrequietos


arredo as tulipas na mesa movediça

estampo a mão direita na face argilosa

e sorvo os ruídos os ditongos ao abandono

na tarde estéril

o sol purificando os poros da pele já cortiça

um desalento frívolo

as pálpebras procuram o cabelo

o medo só o medo ao raiar a fogueira insaciável


preocupa-me o canto das ninfas embriagadas

aprisionadas em baladas do absurdo infinito

e o tampo

sob a monotonia azulácea

que o magenta crepuscular dissolve

gorgolejando como antevisão da solitude hipocondríaca

da noite


e o austero relógio ameaça com seus ponteiros

VENENO


apraz-me rebolar com as metáforas das imagens

porém há que ter cuidado

as víboras adoram surpreender

ternas suavizam os conceitos

balouçam a cabeça o corpo

mas mordem e o veneno traz a ressaca

fervorosos alucinogénios povoam o corpo

tornam o intacto no difuso transparente


quando acordadas estas víboras emigram

para o interstício fictício

até alcançarem a câmara sulfúrea

do icebergue

nas profundezas do mar gelado


aninham-se e segregam veneno

para vasos que irrigam de imediato

o cérebro o coração os músculos da periferia do sonho


a esterilidade destas víboras

inquilinas das metáforas

explica o apanágio de cada veneno singular


surgem ininterruptamente por geração espontânea

e cada qual herda a acidez do instante ímpar

aspergindo o seu fruto exclusivo

CIZÂNIA

as palavras agravam-se o sangue precipita nas veias

e depois a nuvem de electrões navega hesitante

entre o confessar fluido e o abalroar da barragem memorial


os dilemas ofendem as incontornáveis orações pragmáticas

e por vezes a assilabia é sorvida como asilaria

sulcando tecidos ocultos abrindo fendas coronárias


após os disparos de pólvora o desarrumo interpessoal

e a ablução do desentendido desenterra cadáveres

já corroídos pela solidão acetosa


o arrependimento aniquila os alicerces do confabular

o diálogo volta a ser moita por desbravar

a fidelidade dos pombos é posta em causa


os halogéneos tornam precária a ambiência

estilhaços de hemáceas obstruem arteríolas

as palavras consensuais oxidam na garganta


dispersos os despojos de guerra apodrecem

e a emanação dos gases pressagia a serenidade

a letargia de argumentos acéticos até nova contenda

OBSERVÂNCIA


ergo a tábua despida de simetria

tiro medidas e fétido

guardo uma estilha acesa


evoco o cuinchar de ratazanas

envelhecidas junto ao contentor do lixo

no bairro desnudado a cada sílaba do tempo


transitando entre objectos

os nós lassos respiram difusos feixes de fotões

e na reentrância de luz

pressente-se o estridor de alvéolos


ergo a taça transparente

roubo a cor ao vinho por beber

declaro intragável esse alegórico líquido

e sorvo a aquilina quilha naufragada

inane fosforescência

LUCÍFUGO


sob a lua betuminosa

compacto esperma luzindo

o noctívago espuma químicos pela boca

adormece no regaço sombrio

com as narinas drenando o sal de excessos

decalca a rua macadamizada por blocos de gelo

a língua disforme

trago de lava por engolir


obliterado pelo granizo de insinuações

cativo no palanfrório da circunlocução em rede

o noctívago foge da luz da claridade que flui opaca

em suas veias como tóxico imediato

os lábios gretados do sofrimento

os dentes fustigados

o corpo em aperto

os pulsos vibráteis sobre o balcão

na pele abundam nódoas

manchas de compostos oxidados


nutre-se da própria sombra tatuada

com o fulgor amargo

de incentivos murchos

de fósforos humedecidos pelo suor

e depois grilos cobertos de néon invadem a cabeça


e quando nasce o dia

o noctívago procura uma outra noite

na qual possa dormir

DEFLEXÃO


derreto o cálamo e pouso o cinzel

sobre as pétalas duma flor menor


mastigo sementes de maçã

negros diamantes amargos

os dedos montam a janela

e desfiguram-na rotativamente


albatrozes iniciam o bailado

sangram o céu e bebem-lhe

o laranja ejaculado efusivamente


repito assíduo o configurar de hemorragias subalternas

hilariante despeço o escárnio aéreo

e translado gravuras bolorentas

ECOS CONGÉNITOS


o eflúvio digno da maresia ablaqueada

colora a derme acordando os genes subtraídos

a corolas caprichosas vultos luxuriosos

em espiral no ar


o lodo não substitui a configuração arrecadada

dos rostos

assim como o iodo das nódoas pálidas arreigadas

em cândidos gladíolos

não substitui as lágrimas derramadas à luz

do candeeiro surdo


na floresta negra o ariano florígero afugenta o corvo

a fonética enrobustece o cango sobrecarregado

os insectos embriagam-se com a abundância de néctar

e o fruto apodrece solitário afogado na sua própria água

CAVERNA


dilatas a culpa

entras numa ala húmida escura

e depois vês raiar a desolação de falecidos a falarem

por entre dentes

rumores aviltados abrigados pela sombra

das noites impunes


é aí

nesse lôbrego espaço em que depões as ogivas

denegridas pústulas amealhadas na boca

não é segredo

toda a carne é fraca toda a carne decai desfalece

e apodrece bolorenta adúltera

a cor não esconde pecados


mesmo dissimulando os frutos como a aveleira

verás que o disfarce cai

sulcando essa mesma carne que aglutina prazeres

e nessa caverna onde te escondes

viverás para sempre o inverno da neve rubicunda

sufocarás ao avistares as flamíferas torrentes de lava


edificarás o inferno à tua imagem

e também tu caminharás pela sombra

das noites impunes

CIRCUNSPECÇÃO


escuta o sustenido na adipsia

de vocábulos órfãos

e sente o carvão lúzio

ascender no canal


ausculta o carbono a cintilar efémero

o enxofre a articular os cabelos

o ferro a pesar no sangue volúvel

que suporta o perfume de lírios

em acrimónia


ouve o desabrido coração

abscôndito nos supérfluos minutos do dia

e de cônscia postura

queima incenso no eremitério erigido

a partir de frases carnudas polposas


quando pressentires a surdez impingida

abstrai-te irradiando espectros falaciosos

e bebe o azoto gasoso da tarde chuvosa

ARTIMANHA


aconchegando os lençóis

alumio truques carbónicos

seguindo-se os sussurros cardíacos


as costas buliçosas

o rosto acossado na almofada

atarraxado experimenta a respiração alcoólica

imprimindo o bafejar


a parénese barrenta

sobre a analgia dos afectos

o aguaçal

a verosimilhança como cataplasma

para desobstrução de meatos


da entoação letárgica em desalento

o sepulcro embusteado

o vazio longínquo

a semântica cadavérica

das atrozes chibatadas eléctricas

áscuas reboliças na cama de fumo soporífero


Dédalo cativo no labirinto de Creta

SEDUÇÃO


os dedos apegados ao quartzo leitoso

aduladores passeiam-no

pelos mamilos dilatados

que difusos emanam propano


ulmeiros intimidam a sílica luzidia

da pele em erupção contínua

e olhares clorídricos avançam na atmosfera

circunscrita à paixão


quando exposto o narcótico

disseminado na embriagante angiospérmica

torna-se invisível e os encandeados cegam

iniciando a lenta dança inebriante

rumo à inércia inconsciente

TANGO INOXIDÁVEL


reflexos moldados por oleiros

fúlgida empatia

dois corpos coriscam no salão

com ventosas pregadas cambiam suores

rompem-se lábios e as peles roçam-se húmidas

uma contra a outra


primeira investida

esfaqueia-se o ar com dois punhos irmanados

depois a segunda a terceira e o foco estampa-se ébrio

vultos rodam arfam espevitam o ânimo


fissão centrifugação fusão sublime dos corpos

que empalidecem até ao brilho metálico


a faca dança ritmada obedecendo ao metrónomo

corações sincrónicos ignoram o público obsidente

PRECIPITAÇÃO


o livro pesa morto nas mãos leprosas

chove

o vinagre escorre nas telhas amordaçadas

pela aragem defunta

chove

o orvalho mudo dos deuses esquecidos subsiste

no mofo salomónico

chove

as hélices enferrujam com o vapor

eflúvio de murmúrios secos

chove

sonâmbulos deambulam nas estantes abandonadas

chove

a caravela de velas córneas enfrenta a intempérie

em plena saliva

chove

o marfim definha esponjoso

e asfixia no sonho estridente

chove

o coração balouça num abismo destilado

em horas calcárias

chove

e não é chuva

CANSAÇO


um vulto corpóreo abatido

a lupa a galope

estranho torpor ósseo

algas negras no derrame

filamentos das pálpebras alquebradas

oscilam aleatoriamente


as dunas desmoronam-se

e no laboratório

estudam-se alquímicas reminiscências


a inquisição intrapessoal persegue

os ecos recapitulados

como funestos espectros do avejão


tímidos fantasmas alcalinos

surpreendem

aquando o vago ressentimento iminente

e

alvejando os cristais linfáticos

masturbam-se alterados desnudados

sob a mesa transparente


o olhar côncavo pelos objectos

que murchos gatinham para a margem abissal

e após a consternação maleável da distância

um sopro fastiento como último decesso

antes do fenecer recto

EBRIEZ


dados mergulham na cerveja

paulatinos dedos engendram órbitas

o copo queima em todo o perímetro

e a boca do degredado símio incha atónita


regressando a casa o polvilhar de enxofre

as faces em metamorfose o clamor no peito incendiado

a elasticidade dos corpos

em torno dum eixo naufragado

e térmites algozes escarafuncham a vítima


e depois na cama

roda gigante em movimento

desponta a viagem vertiginosa

à ilha das aves brancas


entre vómitos abrolhosos o subterfúgio da sede

delírio de polímeros extintos ao pequeno-almoço

SOLSTÍCIO DE INVERNO


a criança principia

o tumulto na água tépida


o cisne de jade levanta voo


verdes vimes enastrados

na soledade

cal exaltada sobre dorsos


a fragata anestesiada

alívio incauto no domínio

da neve

dolo fragrante sob a saliva repudiada

espuma postiça nos lábios da onda


a cadeira como chão após o suspiro

e depois um olhar destoante

sobre o ábsono vale arrependido

ABNEGAÇÃO


bebo a infusão de aves marinhas

e emigro no espelho fingido para o rito

de pautas corrompidas pelo óleo lacónico


jejuo em plena alvorada

renuncio a esquálidos líquidos

e patenteio a polpa sumarenta de frutos

espiráculo em ascensão

tónico para viajar no limbo amnésico


culmino no promontório

trémulo afundo-me lentamente

na água betuminosa

esbracejando apaziguado

sempre indiferente ao sabor insalubre

dos dias

CESURA


o fogo prende com sua chama

a pele da face povoada

por escamas de paixões fugazes


retomo o fluxo jorrando o forro

são inúmeras as sogas sob o hélio solar


solitário o andor impune retalha

a maresia lunar

e assomam-se seres ambígenos

que taciturnos

circunscrevem estrelas ignescentes

ALUIMENTO


tudo é redutível ao incêndio deliquescente

equídeos do câmbrico exalar vigiam

ásperos fragmentos dum diálogo


há um buraco negro na fala

uma ardência cúmplice no rosto

em permanente declínio


estalactites rangem no cogitar esfíngico

e reflexos espessos em erosão fulminam

poros causídicos estigmas de depuração


há suor estampado delíquios interiores

ecos baldios em constante turbilhão

e primorosos animais matizados no olhar

O ÉS-NÃO-ÉS DA EXPURGAÇÃO INCENDIÁRIA


a casa na ravina

o ouvido acochado à terra

para escutar o murmúrio acrisolado

e com o plasma a ferver nas artérias

analiso eufórico o quase partir o quase apagar


a rebolar na manta ouço o choro dos flamengos

o leito a cair para trás o entorpecer do cais

zumbi de umbigos iludidos pela memória turva

rasguei os mapas ininteligíveis e acendi uma fogueira


beijo a cinza de outros corpos

até a maré encher

provo o sal reluzente e invoco Neptuno

plantado na férvida ejaculação de ondas


depois a melancolia do vazio

e a convicção de que a idiossincrasia cíclica

congemina casulos negros na face oculta de vitrais

RESSONÂNCIA


atenta na sáfara nuvem manchada de óleo

e guache

até descobrires a morada dos banidos


ressoam cavernosas sonatas distorcidas


é proibido chorar no átrio aleivoso da felonia

frontispício do espécimen que cansado

vê correr o egoísmo nas veias

espreita instintivamente habitáculos

e cerra as pálpebras

para caldear rostos e feições

em cenários lamacentos com espectros

de cores em alvoroço


ouve o marulhar estriduloso

ao extinguir-se o som

e banzo

sente o empedernir silente da egolatria

CONTÁGIO


de outro pão o furor sulcado

rio de prata definhando

sob o artifício prolífero


a mão dum corpo infectado

açulado por desaires implícitos

torna-se a quilha provisória

em fortuitas tempestades lancinantes


decifrar a inveterada geografia de corpos oscilantes

é como tentar enxergar debaixo do oceano

de agitadas águas reboliças cegamente turvas


de outro pão o silenciar fosforescente

a cáustica agonia a equimose imperecível

e biliosos fungos abstergem a orgânica de corpos

a carne fundida dum novo corpo em alucinação

BÁRATRO


a cair

os pulmões encharcam-se de vertigem

caveiras a arder

as cinzas dissolvem-se na escuma de mostrengos

despertos na cegueira negra

safiras dançam em rostos de cobiça alheia

e inflamado derrapo no ar

pulsos cadavéricos pedem auxílio

exânimes dedos ousam tocar em nódoas

de sangue ressequidas diante dos olhos

a melodia barroca invade o antro

aquando o transplante cerimonial do órgão anómalo


a cair

sempre a cair na devassidão com ardência rubra

atropelando fantasmas transluzentes

rasgam-se corpos num círculo de escarros

as gaivotas definham deprimidas no alcatrão defecado

a linfa congela e explode convulsiva no peito

dum estóico voluntário de voz rouca e balofa

coleópteros luzidios passeiam calmos

pelas teias de aranhas falecidas


ao fundo

a lava de canais ferve ininterruptamente

e anémico continuo

a cair

ANTÍDOTO


recordo as amoras que assassinaste com desdém antipático

ao disparar contra ti

frondosos bagos verdes ainda enrijecidos pelo ódio


a tua pele áspera repousa sobre lírios murchos

pela desolação acre de improvisos claudicados

reconheço esse teu arquear erudito

a agilidade exibida ao refreares ironias

a sagacidade irónica de palavras que sensual

temperas com cianeto


continuo a disparar até perfurar

o pálido coração que carregas apática

e o fruto amadurecerá até explodir

povoando de pigmentos o antro coronário

REGRESSO

as paredes caiadas o declive achamboado

do varal semimorto

mexo remexo o que há muito nem sequer movia


indago bandurreando pelas linhas

dum metal abstémio

toco em nostálgicas fotografias

sem espreitar

e o ranho salitroso babuja os dedos

tornando-os pegajosos


acendo paisagens amodorradas

revejo diapositivos para corroer

as túnicas de circunstância


nu diante do espelho

colmato lacunas do sorumbático exalar

retoco manchas espermáticas da alma ardente

e recito orações rumorosas das noites esdrúxulas

FILÁUCIA


esgaço sufrágios da cepa torta

os lábios a sangrar

é daqui que parto pelo mar fora

bebo sucos frases intemporais

os filósofos mijam sobre mim

beatas mecenas masturbam-se

com imagens mundanas banais

e matam discretamente bodes expiatórios


morro de nylon ao pescoço

na última vinheta da jornada grávida

registada na agenda

o corpo queixa-se

vítima da fugacidade pertinente

da noite


a quilha deteriorada padece de embaraço

mas enxovalho o pranto negando tudo

sangro ditadura para aspergir autoridade

numa baiúca velha que leprosa sobrevive

e dilacero ossos bolorentos intimidando

o rival doentio à minha imagem

zombeteando em memória de Sartre

INSTINTO NECRÓFILO


sobre o estrume débeis rosas

demolhadas na água onde conspurcados sais

se encontram dissolvidos

o esperma na panela ao lume

e virgens açambarcam-lhe o aroma

tentando adivinhar o paladar ansiosas

por sorvê-lo

o instinto é feérico

os corpos queimam para dentro

na límpida folha de papel para sempre

morará a urina de fragrância ímpar

alguns monges dizem-se infiéis

às ilhargas deleitadas na cama

dóceis despojos do amor confundido

na fundição de corpos em festa fúnebre

os sexos húmidos embevecidos num exasperar

de peripécias em contusão flamívoma

imperceptíveis egos amassam fezes de ritos

e repetem provérbios ao descerrar a cortina

das menstruações agendadas a perfilhar

nas cabeças dos proxenetas em constante masturbação

as imagens abrandam

um olor a sémen fermenta na ambiência

em remorso

nas janelas embaciadas desenham-se

com a respiração de dedos ainda trémulos

os destinos de cada um e a separação dói

em todos os músculos e são inúmeras as mazelas

apenas um sono restará

no qual os corpos dormirão

aconchegados e apaziguados no tempo que sobrou

da noite vigiada pelo tigre dos olhos de fogo

restará um sono como despedida

da fusão alienada e partilha de suor fumegante

REANIMAÇÃO


recuso-me a desnudar a elanguescente fábula

de seres em ascensão erótica

porque é imenso o labor no jardim

de vocábulos em flor


o perfume da terra empanzinada de húmus

dissolve qualquer pretensão

de esquadrinhar posições

e ressuscita a fala orgânica no corpo


espero pelo crepúsculo fecundo

pois a carne e a terra crepitam fulgurantes

e movendo-me placidamente aprecio

a solidão inanimada dos objectos ciosos

CARTA A RIMBAUD


escrevo-te sem saber a cor dos teus olhos feridos

limpa a terra dos ouvidos

pois lerei esta carta vezes sem conta


um dia em alucinação beberemos cervejas juntos

no inferno

trocaremos mágoas e queixumes

e na prancha de salto compararemos nossos umbigos

comichosos umbigos ainda acirrados


escrevo-te sabendo-te morto mas áureo

eras novo ainda e tão sofredor


quero que saibas isto:

os delírios que viveste são hoje realidade

os teus escritos sobrevivem ainda enuviados

alumio-os insulado ao lusco-fusco

no crepúsculo sangrento do dia agreste


há ainda um ténue olor a roupa suada

presente em cada frase em cada verso

e o pesaroso eco do esgrimir entre palavras

ensurdece aquele que experimenta o clarão afoito

das trevas

ELIXIR DA LONGA MORTE


o lamento vidra em surdina

todos respiram o fumo dúbio

– lúgubre dissipação de lágrimas –

todos a bordo todos sangram

ábditas células amontoam-se

fugidios ícones em feixes purpúreos

e atravessam-se silvados

os jardins de outros


recônditos gestos suspeitos

estranhos estranham o facto

dum estranho estranhar

o que de si vê à sua volta


todos choram silenciosos

no quarto de ossos

revestido de músculos e pele

em desassossego

todos a bordo todos sofrem

todos tragam o elixir da longa morte

LUTO FÚNGICO


o felino jaze na tromba-d’água

já não regressa às noites abochornadas

de pólen doentio

ergo a cabeça e enfrento o espelho indizível

a avidez sepulcral de vestígios acesos

pelo beijo da égua morta

em putrefacção nos baldios


onde se esconde hirto o esporângio?


subtraio-me à mímica dum sentinela

e no lago o peito inconsútil espelha cicatrizes

CONDIÇÃO


água escorre pelo corpo

e a cabeça sangra por dentro

o desplante palaciano substitui

por momentos

o frenesim de pólipos delirantes


centro o dia no suplício da carne

abundam escoriações obscuras

e farto de mundos embutidos noutros

fecho a porta e um tampo colossal

cisma do não tampar airoso

ameaça errático descendo lentamente

com irregulares pseudópodes coruscantes


o arfar da terra é contíguo ao corpo

RESSACA


fugas ao chover

o pesadelo rasteja

à volta do pináculo


desponta o sono

âncora de seda entre os livros


provo a ferrugem de carris

dum monólogo frustrado

ternura de pó que se acumula

engendro ódios no covil amado

e sem verter o suor do dia

visito o curral

de centauros valdevinos


sobram sóbrias imagens

em declínio cáustico

ALENTO


a mosca cai moribunda

não se esforça por voar

sobre a contagem irreal


o vento ver-te-á chorar

tenta ser o vácuo pois no fim

saberás cair até perderes tudo

e nada te correrá nas veias


quando longe negaste o berço

imóvel no nevoeiro que te abrigava

bradaste ao infinito lancinante?

no fim saberás que do calar macambúzio

houve um outro fim e nada te cairá nas mãos


confia no braço magoado do polvo

e crava as unhas na pele grossa

dum animal do câmbrico

não verás lágrimas fosforescentes

na vegetação densa


por detrás do espelho arde a fuligem duma melodia

há um casulo carmim na denúncia resguardada


uiva aos testículos do medo

pois ele veio para ficar


quanta terra ficou sem proprietário?

elos dementes sobressaem

há demasiada pressão na palavra pranteada


saqueia o suor dos injustos

pois dele beberás para subsistires

SENSABORIA

a lápis a soberania de fortuitos mosquitos

que arregaçados intimidam a complacência atroz

dos beijos raquíticos num mesmo zumbir irado

como paisagem de morder nos ávidos minutos


elegante esta denúncia ensanguentada

por anfíbios da razão bíblica

testemunhada por um deus desempregado

acima de qualquer moldura castigada

nas reentrâncias imagísticas


o café das horas mortas em oposição ao alimento vital

vagas azuis masturbadas sob desígnios ambíguos dum ser

que se diz maior exibindo arrogante a sua mediocridade


quem és tu que vês a tua vida como alegoria

a bailar num papel incendiado dia após dia?

ESSÊNCIA


posterior avulso entre cabeças

a mãe chora e tu caída no regaço

de antigas fábulas sobre o cerco da lua

olho ferido vertendo o mar

decantado em póstuma tristeza

da convocação ríspida de arcanjos

que frágeis balouçam nos cavalos molestados


híbridas lágrimas de Antígona

murmúrios secos despojados

aquando a leviandade do sal

polvilhado nos versos húmidos

até quando? até quando o suspiro

o suspiro impuro entre os outros

que a pouco e pouco o tornam puro?


derramado o suco vital da mortandade legítima

os pigmentos afloram secundários

sob o flácido jugo sem jogos florais

e tudo o mais é o nada a menos

a pérfida monotonia da sangria objectal

prendida ao olhar múltiplo rendilhado

do coral colorido rouba o mineral saber

SABOTAGEM


arranco o som de frestas cancerosas

estilhaçando mosaicos desgastos

bebo de rajada o cálice de adrenalina

e despojo-me do ridículo encenado

castelos de mucosas em ruínas

sussurrando alcunhas alvejadas


na vespertina tarde o impávido réptil patrulha cioso

o lodo macilento de estrias

da mão que maneja o compasso rente ao abdómen

a simetria lograda de recomeços falaciosos

de unguentos do degredo

de coimas empedernidas no avassalar cambaleante


como desprezo o sorriso atiçando a cal desabrida

a perpendicularidade insalubre da valsa pungente

a limpidez vingativa de lâminas cegas

a supremacia errónea de arcos córneos


e provando o vurmo indelével de feridas

construo uma cabana com os ossos traídos

DETERIORAMENTO


Golias morto na terra estrumada a quente

suores frios na cama

a desolação arde no cerne do peito

solene visita do irmão morto que todas as noites

altera a posição nostálgica dos castiçais de prata


o pedúnculo de carne definha

como qualquer coleóptero pálido

sobre a corola dum malmequer

leito de morte a salgar extremos

e o sonho forma a ponte

mas as margens continuam líquidas


o pesadelo paira na atmosfera de cobre

os objectos escumam por sentimento algum

castigos às avessas em cena

pudor em fúrias incorridas

e alguns farrapos de carne a instigarem o assunto


ao passear na praia dos agoniados

irrisórios planos convexos

arrevessados para um plano maior

que por si só é desprezível

coalham como universos concretos


os pássaros planam

sobre o borrão da paisagem alumiada

por amantes fosfóricos

seduzidos pelo ópio acalentado da sodomia

de animais sinceros cumpridores do ciclo a grafite


deste papel um outro

a celulose intacta para o sentido ou estilha inflamável

de tudo o arder e a morte

de nada serve a faca

e a existência animada a discorrer no pesadelo

de alguém que quer a sorte ácida do gume

para ninguém próprio mas que irrompe

pela madrugada cinzenta de mais um dia contrafeito


o demo paira sobre as cabeças

as línguas de fogo foram contaminadas e atrofiam secas

e morrem na planície árida do monólogo

articulado por quem se julga inocente


ouvir não do tu que é outro na mesma imagem

é como comer a terra que compõe o fruto inarrável

mas tamanha baixeza esgueira-se por ser pobre

de algo que se vê podre mas que se aglutina intocável

e prolifera para a prosperidade a ritmo de infecção

VIGÍLIA


apaziguei no regaço da estrela apagada

desenho acrílico ao abandono

atordoado conto as manchas negras no corpo

sacudo o pó desavindo do capote pardo

e agitando o cabelo neva cinza hodierna


apresento-me encenando o cavalgar espectral

do vulto sonâmbulo que rouba castiçais

e à luz de círios baptizo espermas inflamáveis


da lua herdo a limpidez

e exibo-a no rosto blasfemado

até ao enegrecimento dos frutos nomeados


das searas dançantes herdo o sorriso lacónico

repleto de amido alegórico

e a cravagem-do-centeio para mastigar sofrendo


apresento-me vigilante sorvendo a seiva elaborada

do monólogo exasperante

e contraindo os músculos afundo-me hirsuto

na devassidão agonizante da noite