Januellarium

[Palimage, 2009]




JANUELLARIUM




Janelas que cheiram ao ar de fora

à núpcia do ar com a casa ardente


Luiza Neto Jorge




COORDENADAS

] - ● - [



começar no pequenino ponto controverso

: é um princípio do movimento

mais do que isso

é O PRINCÍPIO


O MOVIMENTO sim, o único princípio

e razão única da pulsação


A VIAGEM, camuflado interesse do ser movente

nos dirá que

a única vicissitude do movimento

é a energia,

verdadeiro mistério de qualquer órbita ontológica


e O TRÂNSITO

assombroso milagre aspirante a precipício

que o ser intermitentemente o lê como abismo

ou fascínio (nas suas férias

estendidas a todas as partículas)

A CINÉTICA, portanto

fúria visível dos átomos em delírio

[energia viva]

pressuposto máximo de transacção

dança infernal ou futuroscopia pirotécnica


falemos de espasmos cintilantes

O CÂMBIO ecossistema convulsionante

espantosamente colorido

mais colorido que o próprio conceito de cor

que o efeito infinitesimal de toda a gama de cores

em todas as suas frequências colorido de espanto

melhor dito







A ÁRVORE DO BEM E DO MAL



esgueirando-se entre as sebes do conhecimento

a criatura plural ascende ao fruto

ascende sem que lhe conheça o nome

contando como seus todos os gomos

e a árvore é um grande livro à espera de ser aberto


namora-o belicosamente com a boca

inscreve instrumentos de sabor na casca

amacia aromas com a saliva

segreda-lhe regras do enfeitiçado dominó espinal

segreda-lhe, sem cair do degrau


um longo pescoço ● mãos para esbofetear

um a um

os inimigos de lamarck


a criatura habita a luz húmida

plural circunscreve a moral do degrau

vê-lhe na pleura o tambor pelo qual sempre quis falar

a dentição rodopia louca pelo fruto redondo

quer acender dentro as sementes negras


um dia falarão das trevas e da sua colheita







ENCONTRO COM A CORUJA



brilham o sete as pedras

espalhadas na incerteza nocturna


o segredo encontrado, algum

frio sanguíneo


brindo ao desespero


e não me preocupa a lenta mastigação do tempo

antes recuar como ecoam repetidos

os gumes

a esburacarem o saco


esferas numa brincadeira interplanetária

cegas sempre

no saco o bico perturba

a gravidade no impasse:

o beijo na sombra


à saída da tenda uma enorme

vontade de comer o céu à colherada







AURORA II



voltemos ao gato, meu amor

aonde o deixámos

a guardar o candeeiro que ilumina a rústica

artéria da cidade é este o gato que amplia

teu olho de peluche

[castanho mágico]

no espelho


queda-te que és agora objecto para engrandecer

e lamber

como o gato lambe as suas patas

à procura de pólen nocturno

que lhe extasie o corpo e lhe adormeça a alma


canto-te em surdina fina ó minha doce peregrina

eu sou o teu espelho

e tu o

ressonar sobressaltado dum cadáver

a chorar mil formas do lírio

um acordar de agosto em redor do gato

desviando o pêlo fogoso estorvo

à entrada dos sonhos


escorrega-me o corpo no foco desse farol prenhe

[castanho mágico]

que de tamanha luz e candura estilhaça

todo o

espelho


bebamos desta artéria, meu amor, voltemos ao gato

aonde o deixámos







RESET



e quem trai a memória da ignorância primeira

esconde-se medonhamente

refastelado entre as pétalas da cidade

alisando o silvado à borda

como se contasse no esquadrão celestial


e irrita-lhe a culpa

[prurido de instante]

toma antibióticos com muita fome de ser doente mas


e não há mas e isso irrita-o ainda mais

tanto como aquela roupa a secar por cima dum emaranhado de cabelo

e tinta a lembrança do filho por nascer

a confusão das tarefas metamorfoseada em murro


e não percebe a escrita do céu

a linhagem estelar irritantemente brilhante

a lendária memória da galáxia dita às cambalhotas

fia-se na (con)tradição oral, numa tradução

porcamente bocal e com cheirinho a fuligem

também fruto da visualização de documentários

de diminutivo televisivo, respeitando sempre

o conteúdo programático standard


e é obrigado a ser feliz neste spot







NA CAMA



noite viúva chamo-te


num último deitar de amparo

com um perigoso mastro de outubro

à boca do covil


um tigre parado no cobertor

ou um nariz tenro sobre o vermelho futuro


lanço-te o preguiçoso roncar das cordas

elas roçam-se febris como cobras

ao primeiro som repercutido


passeio pelos dentes brancos

macios e dolorosos de tão afiados


as janelas do crânio cansadas de colorir

os tendões estendidos ao infinito

múltiplos esfíncteres viscerais corroídos

e os pulmões a embebedarem-se

com o último líquido amniótico


chamo-te sangrando tecido pela boca

assino o teu nome com um suspiro


um minuto para a meia-noite







A CAIXA



quem lhe conta o peso da caixa?


ele sonha-lhe o ar primaveril

alguma seiva transbordante de hortelã desmaiada

faz disso um chá que lhe fortalece o olhar

continua a olhá-la num deslumbre crescente

percorre uma a uma suas finas arestas de cartão


depois os ouvidos vertem nos olhos um rumor

e agora pesa cada palavra na boca de quem diz

sem se aperceber das gomas sortidas que essa saliva

indiferentemente contradiz, mede-lhe os tiques

articula o boato rasando a caixa

sendo cada vez maior o desejo de lhe tocar


quer-lhe passar os dedos, cortá-los

na ânsia longitudinal de querer abri-la

e descobrir as muitas franjas de ar posto


sonha-lhe pesos indiscretos, índias empacotadas

senta-se no chão cruzando as pernas

lambe outra perspectiva

move frescas águas dentro dos olhos

como que à espera que ela o fite


ajoelha-se e quadrúpede ensombra-lhe a quadratura

pinga saliva na planície da caixa, mancha-a

e logo retrai com vergonha de lhe ter desferido desonra

acabrunha-se por um momento

até que a mola venosa encha de vermelho os olhos

que o catapultarão ao golpe de misericórdia


então ele pega na caixa, sacode-a violentamente

amarrota-lhe os lados, esbate-os com os punhos fechados

esquece-se de ouvi-la em profundo silêncio

inebriado pelo suor de renúncias e talismãs inquisitórios


pára, respira ofegante abre a caixa e é engolido







SUPERNOVA



há sangue a queimar ● entra depressa no quarto


sacode a estrela vizinha (ela brilha nos cortinados)

estreia-a na noite como quem solta as aranhas trepadeiras

põe-lhe a vermelhidão mortal com que inauguras os dias

poderás sorrir no flanco empoeirado das estações

a repetirem-se vezes sem conta no pestanejo rápido

junto aos livros libertados dos caprichos do calendário

cumprindo pena exilados, excluídos do carrossel sazonal


a mesa ferve madeira ● doa carbono


ressoa silhuetas libertinas, esquissos difusos

a lembrarem rostos que amealham faíscas

por um bocejar noctívago do líquen a pairar no hall

poderás identificar fantasmas e comer com eles

talvez até perscrutar vozes obscuras no mofo dos móveis

embarcar no torvelinho torrencial dalguma memória

a gazear no tecto agora picotado e permeável


a muralha nos intestinos ● a miríade vibrátil


espera algures qualquer coisa lá fora para amar

num trecho de mundo a beijar atrapalhadamente

para que reinventes passo a passo o perto em aperto

sem fechar definitivamente esse vórtice surpreendente

e salvaguardes o berço dos cometas; com sorte, talvez

aches lá fora quem de honesto conte frios os minutos

presos aos dedos patronos do medo, abençoados na perda


pergunto-te, até quando jejuarei nas entrelinhas?







O APARENTE IRMÃO GÉMEO



onde haveria de te encontrar, tempestuoso pirata

com argênteo tolde cobrindo um azul assassino


delonga de alguém insinuante no canto sobre

os buracos da flauta

onde haveria de te encontrar

arredado dos problemas do mundo


e porque a prata atrai os que se escondem nas

tufas de cabelo branco

saberei sempre onde te encontrar enquanto

souber interpretar o mínimo pavio reflexo dessa luz

tão brumosa e peculiar


nesta constante difamação contráctil do espaço

ouço a música contorcionista do teu corpo


[um claustro para a ocupação dos sons]


à distância uma simples carcaça sem nome e dignidade

arrefecida, esquecida e roída pelo som

ali à mercê dos chacais que os decibéis pariram

confessando-me as coordenadas







PLÁTANO



vejamos a grossura da linguagem oculta

esse velho soldado vegetal

petrificado na pequena praça

um estandarte de anéis expeditos

cravado no rodapé da história

um marco bélico de insígnias benignas

saudemos com ele a fúria protocolar das estações

mordamos em sua honra

as milimétricas peças do grande relógio

porque a nossa robustez está no equilíbrio dos sentidos

no complexo sistema de vagões celulares


a sintonia carbónica lambe a efemeridade do futuro

cintila nas sílabas que o tempo trauteia

assim se engrossa esta linguagem a nós oculta

num primeiro olhar

(premonitória herança do dilúvio)

a linguagem ao sabor da folia de espectros inesperados

armadilhas arquitectadas aqui e ali

pelos anões que descansam por turnos

nas ramagens mais gordas das árvores


celebremos este lugar

que o plátano há tantos anos come

há tantos anos digere sem perder firmeza

tonificando resplandecente

as folhas os ramos

os nós da camisa implacável

há tantos anos preso à cinérea jovialidade


celebremos esta praceta

atentemos na côncava alegria vinda dos espectros

um gigantesco olho de mosca granítico

apontado ao céu







A BRINCADEIRA



um dedo molhado ao vento

inferir é muito provável que alguém

deite culpas para cima do menino, dele andar por aí

a dar uso à natureza

de manter quentes no bolso os planetas que lhe convém


porque os berlindes

inócuos frutos de vidro no bolso da criança

são bolas de cristal dos bruxos crescidos

adivinham as quatrocentas e noventa parábolas a viver


as algibeiras do menino são fundas

e os adultos sabem disso, como sabem


na verdade qualquer criança é algibeira funda

daqueles que por miopia do olho espiritual

irrompem maioridade

por vezes tão funda

a ponto de por momentos encobrir toda a farsa


não há tribunal que apure esta causa

um pouco de natureza por estas paragens

igual à do menino que

de cova em cova

anda a puxar sorte aos berlindes







A LIÇÃO



ela olha as mãos do mestre

é capaz de respeitar o mais ínfimo

grão de areia não se atreve

a olhar-lhe o rosto

sabe-lhe a voz de encontro às coisas


ela bebe das mãos

o semblante que procura

confia no pássaro cítrico da lição


revê suor no pano

distingue brilhos da natureza

queda-se atenta e

não arreda pé da torre de cinza


cresce nas mãos uma tulipa roxa

espelho da viuvez espiritual

uma tulipa-cofre

para guardar cabelos brancos







EPISTEMOLOGIA DO ROMANCE



chegaram a casa entusiasmados

arrumaram à pressa a despensa amores-de-fogo

mal catalogados

de tão pura e limpa a crença


um fiozinho de geleia no pátio

e prosseguiram cuidando dos penhascos invisíveis


reescreveram a fronteira enlaçados nas escadas

recordaram um outro fuso horário para lá do espaço

telegramas em pétalas de magnólia

numa ilusão de armários abertos, verdadeiramente nus

e os rostos fecundados

repetidamente gastos de quadro em quadro na parede

parede fluida estampada naquela que encostados descem


as bocas como mais genuíno comburente

e um selo portentoso no elo

bem assente no vértice mais dócil

do andor


o romance começa onde as feridas se ressalvam







O FANTASMA DA GEOGRAFIA



atento ligado a

um emaranhado estéril de constelações estranhas

ligado à sede incompreensível

das pequenas superfícies o sentido rotular da imagem


ainda ontem robert altman deu-me um inverno para dormir com a

raposa do caminho-de-ferro

: o covil frágil

esboçado no açúcar da neve

o vislumbramento da morte acalentado

pela doce prostituta perdida no nevoeiro

do ópio


cai a frase no painel de transístores

pesada e dura

ensalivada no cais da língua


«o inverno come os ossos negros da prostituição»


sim, acima de tudo

o aborrecimento de estar circunscrito

numa arquitectura nodal das sombras

nas circunvoluções assintomáticas do cérebro:

o fantasma da geografia


nasce dum escorregar simpático nos pisos

progressivamente escavados por detergentes militantes

resume-se na força do líquido

sobre todas as superfícies

amplitude da ambição do eu recolocado no espaço

estrategicamente


a angústia do veneno ● o amar corroendo


certo de querer morar na imagem

habitá-la no que é mais profundo

fruir desprendidamente os veios da polpa

do que se vê

fruto esculpido por lâminas

de todos os órgãos


o homem baleado chuta elipticamente a neve


a pupila concerta a janela entre dois folhos cárneos reflexos


o duplo prepara-se para morrer silenciosamente







A CONCHA DO SONO



um silêncio acabado em orquídea

luz para amar inteira uma almofada de pedra


afinal o real endurece

a cabeça doa peso

conserva sonhos em amoníaco cristaliza

no repouso


[a flor de granito]


o outro dança com a sombra imaterial

aguça intentos no rosto

desmascara a falsa dormência do substantivo

quer no fundo desvirginar a cascata

rasgar brancura ao algodão profundo

lágrima irmã da água tecidular


um peito nu insinua-se ao gume da esferográfica

e eis que um anzol fortuito trai

numa vergonha de palco os músculos

para lá do corpo amplificados


ele apressa-se a escancarar a concha

impede a cabeça de estrangular-lhe o antebraço

refaz o mundo com tesouras nas pálpebras

levanta o braço bem alto e

consente chuva pesada quer ouvir o sangue

uma última vez na cascata onde escondeu

o menino com tinta azul nos lábios e nos dentes


a esferográfica assinala-lhe uma cruz na cabeça




CORAÇÃO ALFANDEGÁRIO

SONETO DO CARPINTEIRO EM DÍVIDA



o que talvez importa ao coração alfandegário

não é a chave,

quando muito o real valor de importar


[um sentido de porta a esquecer o jugo directo da cor]


não importa se a porta faz de porta ou não

se os olhos que a vêem estão fechados

nem sequer a cifra da migração

porque os vultos sobressaltam

a multidão, no seu todo


embora se tenha como fixo esse vértice multifuncional

traduzido pelo sentido que a porta

na sua presumível realidade comporta

o que realmente importa é a cópula

no movimento aportado pelo serviço de alfândega







SONETO DA REBELIÃO CIGANA



os ciganos abençoam a noite


trilham caminho com incandescência orquestrada

brincam no breu as

espáduas comunicantes


exibem à lua as faces esculpidas a ferro quente

exumando dor trabalhadas

a plaina

no meio do calor


agitados que nem peixes em escura água

os ciganos manejam estranho artefacto:

archote num extremo

trejeitos de pá no outro


vão ou vêm?

só o caminho interessa







SONETO À VOLTA DUM DEUS DE BARRO



ali de novo o grosso coro do gentio

a mão cheia de povo


uma rede nervosa de papilas

espigões cárneos expansivos


marchetam, marchetam sem parar

e magoa dentro o respirar


saberá a língua esse gume doentio?


porque nunca imóvel o aglomerado

esse coro encurvado do gentio

desde já solta aquela ou aqueloutra articulação


a seiva do mal ● tenso cordão universal


de cima o grande coração

o tentacular plasmódio populacional

pronto a esboroar o açúcar das estátuas







SONETO DO OPERÁRIO VINDIMADOR



sombras chinesas ● vou beber


não importuno o cálice

ele descansa na mesa

de pés moles


num dos muitos combros deixei esquecido

um cacho de uvas gordo


um copo de culpa ● vazio


porque vagueiam perdidas na parede

estas duas máscaras de outono

livres de maleita no dúbio escuro

perdidas duas vagas sem sono?


à dupla passagem entre as sombras, minha sede

cairá a seringa no súbito despegar dos lábios


sombras chinesas ● vou rever vindimas







SONETO A DON QUIJOTE DE LA MANCHA



ainda houve quem guardasse

do já extinto abominável pesadelo

as unhas estragadas do gigante

que por luminosa vez se revelou


guardadas em cerrados punhos

porque em altura certa irá moê-las

descurando o moinho que é humano

para cobri-lo de seda noutro sonho


num tempo que se crê de espera

quer ressurrecto o grito do gigante

à sombra dum moinho cadáver


é neste encontro de cama lavada

que alguém ensina a receita

da sopa para o dia comum







SONETO DA TORRE SUBMERSÍVEL



um braço por cima ● envolto de cabelos


[uma estaca no coração]


obedeço à pele

à lírica do sangue

bebo alergias


: ao chão


num reflexo de estrela os amantes vão autopsiar

o branco da noite antiga do mundo


indeciso entre duas espadas um

anjo sobressalente amordaçado


[a ladainha dos fósforos em fundo]


o quarto trancado das muitas estradas colho

asfalto para dormir


: hei-de um dia cumprir pena com almofadas







SONETO PARA QUANDO FORES EMBORA



quando fores ver-me-ás fingir

entre tépido anjo receoso de sangrar

e macabro exterminador de querubins


se fores quando eu sentir-te a ficares

no meio da tralha pelos confins

deste planeta estupidamente benemérito


uma vez mais ferido de morte a catalogar

borra milenar das armas do exército

tudo outra vez e suja muito suja a farda


mil vezes fora o nada foi então

uma ilha que esboçaste na barriga


armadilha as dobradiças de antemão

para o caso de bateres a porta e quereres

que algum estilhaço de mim te persiga




EXÍLIO GASOSO

A SEGUIR À CHUVA



a seguir à chuva sobeja irremediavelmente a beleza

a finura lamacenta dos gestos aliada às gotas laminadas


dedilhar as pedras ● de cócoras para o olhar dos outros


e porque intacta se afigura a imagem de ontem em mim

narro-a sobre a impressionante bondade deste retábulo:

três tomates maduros a competirem tamanho entre si

espetados no terceiro dente da forquilha, um e os outros

a sangrarem água por desprendimento ao ciclo vindouro


a beleza vertida pelas temíveis e ferozes mandíbulas:

pão e antídoto quando cuidadosamente administrada

sugere inconstância violenta dos espinhos que a pele

aglutina, na medida em que o cérebro pastoral os semeia

sem nunca antever a força nodal das sombras que

autenticam o telúrico poder do retábulo em vivência


[mágico ceptro crescido inteiro na palma da mão]


os olhos lacrados ● autorização para rebolar na cama


esperar que termine a santa trovoada debaixo dos lençóis

retocar o retábulo antes de ele mesmo acontecer


a seguir à chuva recuperar os olhos bem secos

para que se mantenha fresco o óleo das imagens na retina

no dia depois dos dias, hoje depois do ontem e anteontem


enaltecer o retábulo ● caminhar limpo entre a tomatada







MEMENTO PARA UM LÁPIS



tardes passadas a desenhar

a sombra muscular do cata-vento


ninguém gasta os olhos no clarão do lápis

ninguém ouve súplicas a monstros por reanimar


talvez um subúrbio justifique a carne

ou signifique nuvem

[sépalas da viagem]

nunca o denegrir da mordaça que a tempo

se incorpora


o vento dispersa a vontade, suaviza o traço


aquele que acordar no esboço avesso à grafite

jamais existirá na memória daqueles que o vêem







ESQUELETO CAPITAL



é favor introduzir moedas nesse esqueleto abissal

ponham uma moeda em cada vértebra

uma moeda em cada friso de costela

vêde como pesa o acordeão humano, olha eu

um eu parado de espanto

medindo febres do metal em contemplação e ócio


isso

coloquem mais uma moeda em cada falange

ah espero ouvir a surdez capital

abrir o peso do metal que engorda os olhos

um metal cada vez mais ósseo, reluzindo menos

embarcar na dança baça de encanto em homenagem

às cartilagens aqui está, um pobre tolo de rico

bem pesado e dourado

pleno na vergonha de lavrar o mal

de hora em hora mais calcificado, relembra

ossificação sacralizada na imundice

um podre tolo pobre na inteireza de ser rico


ah é preciso louvar a dimensão porca de todas as coisas

sacudir-lhe os ossos e ouvir cair todas as moedas

fazê-lo dançar um pouco mais na roda do dinheiro

para depois sair na ressaca da ebulição do cálcio

correndo desalmadamente como quem traz à cintura

um simpático e rechonchudo porco mealheiro







FORJA PARA UMA FALA



arderam-se-me as sandálias


persegue-me esta centopeia cleptomaníaca

com um baralho de cartas nos apêndices


[o horror das visões]


dir-lhe-ia peça por fragmento farejada

hoje firme e adensa-se o estreito carbonífero


amorfo cromossoma pelo toque

relembrada cinza nas sementeiras


ao pó ● pólen das magias


de aborrecer-me no deslumbre dir-lhe-ia

: quero mais do que penso lume







PÁRA-PEITO



o parapeito é uma planície enorme

digo-o atestado de penas

porque meço a todo instante o pulso à brisa

por ela me balanço

e me debruço

com um espasmo de vertigem e de espanto

a forçar a maldita chave ganha no feitiço

como dádiva incompleta


mais do que um querer voar

mandíbulas aos olhos por coisa nenhuma

um desejo de afrontar certos pássaros

aqueles que apenas ocupam espaço

aqueles que azedam o ar e me ferem em movimento

que têm betão nas asas

hediondo cimento

aqueles que não sabem porque voam

nem para onde voam

porque num amplo e desconhecido universo

há sempre um pequeno perímetro para bússolas

e astrolábios

um perímetro para humedecer com beijos

para amadornar entre a penugem


por esta extensa planície

tenho aberta esta janela à espera do mundo

por ela inspiro loucura sobejada na brisa

e plano no sorriso

de mais tarde ir plantá-la no epicentro

do peito







POETA MORTO



disse-me como se encobrisse o frio de não dizer

um hálito nobre para aconchego junto à nascente


disse-me a distância num talvez inquietante e avassalador

a falta do tacto superada por um gasoso ter

olhos despertos a sintonizarem espelhos acesos na maré


o livro sim, bem sei, tal como os deuses

os poetas pernoitam no interior das árvores


as páginas confessam um rosto, para uns oculto

para outros apagado; por mais que se leia

bem rente à mão do escriba fictício

tudo permanece indizível no amansar das águas

longe do corpo vulcânico, enredado na sua corja fecunda

fora e dentro da pele


porém à baila a morte perpétua domestica as pálpebras

e concede um selo automático para o abandono







UM PÉ NO PAPEL



sob a hora translúcida

no ar um dia

a flor revelará a animalidade do sonho

nos seus órgãos, na sua escabrosa essência

amedrontando o ser de espuma

a fugir da saliva


uma nuvem amarela nesta hora o ar intacto

ar que o pânico meridional enrijeceu

avesso aos brônquios duma manhã crepuscular

uma nuvem como longa-metragem ionizada


se um homem decide clarificar a sangria do sol

experimentando visões do grande incêndio

sabe à partida que deverá amar o escuro

e libertar-se nele incondicionalmente


«uma floresta resplandecente sobre o cinzeiro»


ao vê-la desdobra-se na ascensão rápida da ideia

músculo do sonho e corola da flor

também o fumo se criva pelo crepúsculo


um pé no papel ● a página pelos joelhos


designa «floresta» o que vê este homem

de vento os gestos e o porquê das mãos

experimenta o exílio gasoso da palavra

o pé soluça e verbaliza a vontade

o corpo cai e instrumentaliza o sonho


porque a palavra trará nova seiva

e essa seiva invadirá velhas raízes

porque essas raízes irrigarão outras vontades

que se acenderão no mesmo bolbo


ele veste o silêncio ● a flor abre-se no escuro







PRISMA LUMINAR



tão ver que é o sol


hoje vou dormir a sul ● alimentar a cama à frente do papão


vejo com as unhas

diz a mão

ao lavar um olho azul

que ama


tão cega a lua nisto tudo ● um norte por detrás azedo


e a boca pede mar com medo

de lábio a lábio pressente morte no veludo


o longe feito em salsabe a saudade e ao céu


diz o sábio na demolha

[assim nós os dois a solo]


tão outro ver o meu quando me olha uma criança ao colo







OVO MÁGICO



acordar no verde

descer o ontem

contado à montanha

à espera que ela desboque

a sabedoria natural

das árvores


mágica maneira de aprender

a traduzir em sinais

o cruzamento dos troncos

a dimensão variável

dos triângulos quase rostos

recipientes falsos de vento

doado na veleidade do cuspo


venho das duras lições

de trigonometria

procuro sonhar com

a perna defeituosa do bronze

regressar esta noite

à espuma sufocante

dos frutos perdidos no chá

prostrar-me aos pés da imperatriz

do grande carrossel

mãe-de-pedra adormecida

na floresta


reapareceu o ovo

junto à palmeira de lume







ENCANTATÓRIA DO OSSO



buscar-te até ao osso

: mentira

porque a carne

só a tua carne me alimenta

o osso é uma desculpa

e quando digo

«amar-te até ao osso»

é porque tenho redondel na garganta seca

farto de te procurar no falso espectro da carcaça


enlouquecem as gengivas enroscadas na tua carne

quero-te num beber triunfal

quero enunciar múltiplos afogamentos no sangue esplêndido

esquadrinhar anatomias

irritar sílabas do corpo

[nossos corpos]

domesticar a boca na planície

o mais selvagem possível

convidar sonos e adormecer na sangria dócil

da natureza


mas também ouvir-te falar do osso filosofal que perfuma

a mais vermelha das muitas carnes

e aí sim

recupero sentidos da limpidez mineral do osso

e procuro-o como coisa última que levo para a cama

com os dentes já enxutos

da tua linfa







QUE FALA LAVRAVA A SENHORA LAVA?



uma mulher através dos lábios

dá a língua à criança e sorri

penando armistício antes de fêmea

mulher de chorar nas palavras

a quem lhe dê coroação


uma mulher resvalando a mulher

sobre si própria falando

mente desmente sobre si própria

em transgressão


ora diz que sim ● ora diz que não


o discurso cavalga a natureza

a mesma mulher perdida no cavalgar

falou-me do que lavrava

calou-me e ainda fala

no ar


: bem a escuto senhora lava


mulher de corpo inteiro no vibrátil estribo saem-lhe

libélulas repentinas da grande boca

fala segurando as quatro paredes que nos assistem


eu pregado ao semblante descaído na fúria

ela resistindo a uma espécie de sono interdito

câmara após câmara cansada de habitar

ocos exosqueletos de palavras em salva


que fala lavrava a senhora lava?

não soube e ainda não sei

é branco o fantasma em que se tornou esta estética

uma fala perfurante, bala repetitiva

de hora em hora polida

e disparada a mesma bala doméstica







NOITE IMOLADA



as copas das árvores incendeiam escura

a lua quer-se digno

quem entre poucos escreva o sangue

sem esquecer a essência da água

porque é difícil respirar debaixo dele

chega-se a bramir com um lobo morto

ao colo

porque eles estragam o choro

amontoando rasgados risos peçonhentos

frágeis irrompem nas vésperas do sonho

que se quer limpo

sobre a folha que trespassa

a madrugada

virão no último tracejado do halo lunar

para sujar a água

da boca à hemoglobina


não esqueçamos a tinta preta

com que se escreve a palavra «morte»

a entusiasmante vida do lobo cinzento

ainda no declive a sangrar tinta

façamos homenagem

aos seus caninos apagados

instante áureo acima dos que o desrespeitam

porque o ruído é a faca

sem gume visível

é um ardor de dentro por explorar

nas mais assombrosas vertentes

pelo contrafogo possível da folha perfurante

sombra aureolar do icebergue indecifrável a lua

escura afoga as inocentes copas das árvores







ESTUDO PARA UM PERÍMETRO



na pressa de falar

paria rosas pela boca

falou aquele homem

quis repor intacta

a fragrante rosa na mesa

mas brincaram fundo

as pétalas na sua boca

ao falar quis repor

intacta a rosa vibrátil

e bem fundo brincaram

na boca tantas pétalas

aquele homem ao falar

ousou repor inteira a rosa

e na boca em profundidade

brincaram loucas as pétalas

do belo disse esse homem

mas ao querer devolvida

a rosa intacta na mesa

explodiram-lhe pétalas

nos alicerces da boca

disse do belo aquele homem

querendo repor intacta

na mesa a farta rosa

e brincaram flagrantes

pétalas no fundo da boca

falou o homem do belo

querendo repetir a rosa

repondo-a intacta na mesa

e na boca dele brincaram

bem fundo as pétalas

a falar do belo pensou

na mesa a intacta rosa

impossível sentiu o homem

mas iludido arriscou

desertando bruscas as

pétalas do desassossego

e de vazia a boca fez-se pútrida

perdido no belo o homem

tentou dizer a rosa

e ao dizê-la mastigou-a




IN EXTREMIS

FEBRE TIPÓIDE



alguém anda enganado neste mundo

tipo eu ou um outro talvez não sei

sinto-me mal tipo vou-me embora

apanhem-me as sandálias e por favor

mergulhem as bolachas no leite fresco

e dêem-nas ao gatinho a miar desalmadamente

perdido da mãe tipo na extremidade do carril

agora percebo o brilho da madeira no livro

viajar tipo correr as páginas até à exaustão

e miar feito gato à espera das bolachas

com medo dos cães tipo polícias do futuro

alguém enganado? todos tipo humanidade inteira

agora compreendo céline e a sua inquietação

azedume tipo ácido sulfúrico aspergido

venham julgar-me neste estado debilitado

estou doente tipo quarenta e dois graus de febre







ELOGIO À TURBULÊNCIA



as horas serpentiformes pesam na herança do caruncho bebedor

flashes libidinosos a inflamarem o círculo que contráctil

demora a disseminação cancerígena de palpitações petrolíferas


[o sifão escondido na espinhenta areia]


amadurecem os sons no armário enxuto

ouro possível na frágil desidratação da memória

mal-empregado metal se no borrão encontrasse o seu cofre

assim o gatafunhar da vida

pois as alforrecas ainda se movimentam por estas bandas

espampanantes de bar em bar no imenso reduto

[o que quer que isso seja]

à procura dum acender perto da gota a trabalhar

como objectiva circunstancial

da vastidão


como é bem-vinda esta turbulência de estilos no armário

retorna o mar ao mistério da concepção

indubitavelmente azul em todos os seus tecidos

em todas as faces imprevisíveis da solitária gota


e n i s t o

a f e n d a

a f r i c ç ã o

e n i s t o

a f r a c t u r a

a o n d u l a ç ã o


tristes os peixes na penúria oxidativa

na vagabundagem programática do pensamento

não se conformam com a recente ordem de despejo

decretada por um sósia de neptuno

obsessivamente lunático

[entre as marés que o afligem]

determinado em aplicar a louca mas estrutural ideia

de povoar os oceanos

com cavacos


esta turbulência não dá azo à arquitectura ou explicação

fica-se pela gratuidade das escamas

um senso emergente da fúria pela vermelhidão dos aspectos

crendo amadurecer massas gravitacionais comunicantes

contra o castigo do vácuo mudo


[gestação: o grande silêncio]


uma carraça a explorar os nós

feieza

que de minúscula

se torna bela


há um humor cáustico a revitalizar a vista

uma praga na vitrina giratória

doença decerto, não a escolhi

arrasta

comichão manifesta na irresponsabilidade dos braços

intróito comestível pela benevolência craniana

posse inconfessa de irreversível atrocidade


no olhar pequenino

enfim, há bondade

partilhar uma técnica na arte maior

que é beijar

e na periferia dos nós a carraça prossegue com a sua labuta

escarafuncha um equilíbrio que estremece um outro

não a escolhi, no entanto

sublima-se a vontade de renegar a sensibilidade

vontade de desatar os fios às cegas

cortá-los até, de flagrante

em última estância


um homem medita e é porca a sua insubordinação à tarde

com flagrante desordem copulada no espelho

calcorreia a espuma amarelecida do mar

sob a guarda do alcatraz, pobre druida


ele avista a pena na quadrangulação da duna

apanha-a e empunha-a como arma branca

[luz dada para o voo]

vê o mar como velho proxeneta que se masturba a seus pés

hilariante isto de tão subcutâneo húmus: amolecer

o belo ramalhete de esporângios


cabisbaixo o homem olha para o chão com medo do satélite

é a alma desta turbulência sem preliminares

é o armário esquecido num qualquer canto do planeta

é-lhe reservada a podridão dos víveres

entrelaçados num som ainda não audível

e o mar à volta

a sua nostalgia longínqua

abjecta aos peixes negligenciados

também eles a braços com a pouca sorte


há sempre a promessa de se construir uma estufa

onde se remodele o grito

para que caiba em qualquer faringe do ecossistema

[imenso reduto]

uma chave-mestra para o futuro







CELEBRAÇÃO DO MOSAICO FLUIDO



bom fémur me traz

o paladar

começou no rio

e libertou a

fêmea


procuro predilecta ossada

paralisada no tempo inaudível

senha fotogénica entre as possíveis

para me rir baixinho

noutros dias


quero eu ver-me

chover

por uma vez ultrapassar

o frame

olhar-me por fora a

rasgar transversalmente

uma etiqueta

cartonada a muitos olhos







ÚLTIMA VONTADE



quando morrer

não quero ter cara de morto

porque os mortos são

muito aborrecidos

chateia-lhes o facto de estarem mortos

e por isso

fazem as caras mais tristes nas fotografias

abandonadas nos cemitérios

muito por culpa dos vivos

ao improvisarem alimento nos aniversários

em catadupa como

somatório dum ciclo exponencialmente rebuscado

uma forma de

alienação da pirâmide universal

contagiando repercussões da mesma imagem

que acabam por esterilizar os olhos no

vácuo laboratorial

da solidão


é urgente aprender a arte de ressuscitar vitrais

em dimensão vívida e translúcida

retocar às escondidas

as fotografias das campas

compreender a milagrosa dança dos nenúfares desertores

e transplantá-los da imagem para os baldios do cérebro

lubrificar os vasos e vistoriar

vez sim vez não

o coração







ÁRIA



o anjo ajoelhado protege o filho a dormir no outro lado

visível pelo óleo

milagre da partitura celestial pingado

no que é mundano


resignado parte à aventura em território entorpecido

e é quando se defronta com o borrão musical

da rádio o turbilhão electromagnético

aliado a preocupações sustentadas

pelo remorso

soa a melodia e cintila


o anjo despede-se do filho e da mecânica global

ascende continuamente ajoelhado o óleo

superlativo áurico da jornada encomendada

apresenta-o ao mundo







IN EXTREMIS



quanto ao arlequim, pouco mais há a consentir


rodar-lhe, porque não, as pupilas inchadas de música

dois pratos contrabalançados neste festim milenar


corroer-lhe recordações sabotando as luzes


tingir-lhe irremediavelmente as roupas

que é boa maneira de fazer sangrar a plateia


fechá-lo dentro de si próprio dar-lhe luz baça






PSICOCLAUSTROFONIA




espreitar o universo e vê-lo obscuro

intensamente desfocado os habitantes dos planetas defecam

atmosferas de gás, gritam pequenez

cada um vê-se como um asteróide negro desabitado

: o processo de desertificação é interior

e fruto do olho humano


ângulo vermelho

: entra a rainha do submundo

uma labareda de cabelos ruivos

um vestido de pólipos folhosos e fumegantes

[rubro contra púrpura]

momentos antes da prédica no púlpito do sacrário venal


intensifica-se o desfile, o crepitar da coroa

a assembleia inicia a descompressão da pepita

alguma poeira cósmica, dialectos absurdos


ângulo intersectado a linha fúnebre, bastarda

a luz azul, um rosto frio


visão de cima: um palácio de tijolo sanguíneo

velado por mutantes da palavra obscura

suplício dos guerreiros infelizes


no interior

em câmara resguardada de festejos mundanos

e diálogos triviais

a laranja velha repousa no luxuoso caixão do mundo

seus horrendos poros tossem vermes gordos

embriões da desgraça, outrora vísceras em papa

lembrança da perpendicularidade

a todos os olhos nua

fria

e inalterável


comecemos então

o novíssimo estratagema da criação: células

prestes a asfixiarem

num quarto de vidro gravemente embaciado

vapor de melaço

saído das entranhas do cientista


escapando à anatomia do vergonhoso cérebro

rasga-se

com a maior unha do corpo

o útero do pensamento mais escondido

dito recalcado espera-se muco

e algum sangue podre


esporadicamente a ciência visita o campo da adivinhação

quando o cientista, um pouco bruxo, aguça a lente

para destrinçar emaranhados colossais da massa a analisar

entra num fino véu

mesclado de nácar e fel

consumando-se o milagre das sete abóbadas


contentem-se os artesãos da ciência

com aspectos elementares da laranja morta

[velha rainha]

pois nunca desvendarão trilhos que

alguma vez

os cavalos do ácido traçaram





ponto a ponto o espaço é desvendado pelo clarão

aquilo que é iluminado e curvo

porque a luz resguarda órbitas fenomenais

e os corpos alcançam significados pelo toque da iluminação

unos e tremendamente sós no santuário

as velas choram um leite puro

quente, inocentemente amamentam

os seres que se movimentam na escuridão


ângulo verde

: o baile funesto de saprófitas, crescente miséria dos povos

ejaculação política num colorido envenenado


terreno inóspito, sem dúvida, e anda o indivíduo

a treinar as mãos na saca de grãos vinda do desespero

pobre coitado ainda se aleija no veneno


o pão que a sociedade reveste de cívico no falar humano

cheio de pústulas e de magnetismo perturbador

simboliza a sucessão ininterrupta de blocos

imprevisíveis no âmago

mas capazes de gerarem um buraco negro

e criarem a falsa ilusão de consumarem nobre ofício:

o de esculpirem identidades


procura e oferta, hierarquias no esvair da matéria

e um amor de cinza acabado nuns lábios por arder

somente um incorruptível prodígio na visão da criança

num êxtase raro

e talvez irrepetível na sua vida


uma família numerosa reunida à mesa

empenhada a comer frutos secos no epílogo da consoada:

nozes, avelãs, amêndoas

maxilares, mandíbulas, dentes

ranger de cascas

o ruir dos tecidos

vultos compenetrados

a música orgânica

ritual de dentro

o silêncio do arvoredo linguístico





vectores do sangue lardeados pelo som da constrição

de paredes

partículas arrancadas ao domínio obscuro

a força inerte

beleza do betão enquanto paisagem


ângulo violeta

: a mulher desconstruída em triângulos

desolada atravessa oblíquas dimensões do horror

chão em pesadelo

abismo de porta em porta

o som bastante sujo


a mulher desdobrada no que de seu perde

em truculentos rearranjos

figurações hediondas do amianto

sempre hesitante em qualquer maçaneta-chifre à sua frente

uma casa desarmada em flor bebe o arco-íris

pela aorta

engole fraccionadamente a mulher

que contrariada respira ar de brita


nariz contra o espelho foz errada

beijar inverso

: planos côncavos deterioram outros convexos


frivolidade das arestas, a mulher invertida

a alienar uma epiderme mais espessa

que de estranha deixa corroê-la

pela borrasca intestinal

febre do stress

anjo-reflexo


faminta regressão hipnótica

: a máscara consubstancia-se

tal a fúria calcária

e incha, incha até subsequente fractura


o grito a mulher reconstrói-se

ergue-se no nervo óptico

sai da agrura do humor vítreo para o alívio do cristalino

insinua-se na pupila

floresce na íris

alumia o humor aquoso

desarma a córnea





a alma reposiciona-se na qualidade de diafragma

espera víveres do holofote


ângulo amarelo

: os mortos reconhecem-se na difusa luz

[centelha do suspiro]

unem os ossos no descampado

dão as mãos

[súplica do húmus tenro]

circundam os que vivem, cotejam poder a cânticos

cadáveres à solta na garganta dos vivos


da ceifa ficaram esqueletos para herdeiros instrumentarem

à terra o fundo da circuncisão maior

dádiva completa de passagem em passagem

um diálogo com a legítima mãe

um forno húmido de crispações


suplantado pela piscina do ódio, lago de sombras

o ermo alimenta-se de episódios de amor mal resolvido


um horto de flores a haver

: girassóis transfigurados

tulipas descomunais albergando sanguessugas nas corolas

glicínias produtoras de minúsculos dardos venenosos

magnólias com ventosas musculadas

dálias carnívoras


o reinado da reestruturada dinâmica de fluxos

: sangue a subir o xilema

vómito a descer o floema


plantas com grandes olhos

o pesadelo, endereço dos mortos

rótulas vegetais impulsionam canos

caules grossos

ligados ao contentor de açúcar

pólen saturado que as veias pingam


caroços químicos invasores

vírgulas no genoma a alma dorme, consente

a derradeira posição do holofote


dentro da raiva que rege a estratificação do solo

a consciência do petróleo

o cheiro nauseabundo da abundância caótica

convertido em suor na espécie molestada


e os mortos brincam às marionetas com as plantas mutantes

ensimesmados no azar que lhes convêm

cumprem na entropia o teatro do ódio, a crueldade cénica

uma vida já extinta





o coração sobrevém embriagado sob o tronco do qual sairá

uma guitarra que arrematando as cordas

o aprisionará


ângulo roxo

: a cobra enrodilhada no lagar

pariu treze filhas

e na expectativa da forquilha próxima

revê a superfície luzidia de todos os bagos de uva

janelas dum ciclo a confessar efemeridade

carisma do vinho a cair no copo, o descerrar

das escamas


os frutos falam de amor, delírios de quem

os come o tempo diz do néctar que neles habita


tingidas pela chuva as sedas

desmaiam nas imagens, enfraquecem o vinho

o afago

aos glóbulos vivos em ânsia despropositada


porque há arte em acender polpas

e muito se aprenderia se possível fosse

auscultar os mortos

na loucura de cada gomo eterna espera

sedutora glicose escondida nas abóbadas do fruto

pulsar dos vértices, arquitectura do palato

atento

morrer e ressuscitar num segundo

brincadeira de língua


e quando a guitarra eleva o etanol

a voz tropeça na alegria aninhada nas veias

nesse encanto

o miocárdio entende porque

cantam as maçãs, as peras, as laranjas

nos pomares

pulmões inundados pelo sumo

jorro feliz


basta uma garganta no platinado das sombras

uma fogueira que arda o mosto

[descuidado pela cobra subtraída ao lagar]

basta uma garganta que se implante numa tarde visionária

mordida pela embriaguez da saudade


e assim se estanca a solidão na cratera aberta

pela volatilidade das cordas, pelo casamento da voz

com a música





dorsal versus ventral

[desconforto]

dúvida irascível na escolha do posicionamento

estrebuchar no solo frio da cerâmica

superfície vertical individualizada

irregularmente cilíndrica, ideal para abandonar bifurcações

e dar azo a vontades de pé

comprometendo caprichosamente directivas do pensamento

um refúgio tridimensional, os pés no caminho frágil


ângulo negro

: de lambidela em lambidela

uma família de gatos negros subjugada pela ampulheta

testemunha o êxtase do tacto num abrir de telhas o tecto

desabrocha na noite

as madeiras rangem recados

códigos sobressaltados do relâmpago


um único feixe vindo do berço perpetua-se

pelo contínuo estilhaçar de flashes

génese dum monólogo invariavelmente audível


os gatos agridem a radiação na explosão dos nós

rosnam enfraquecidos pela luz que lhes fere os olhos

exaustos adormecem no gás da almofada


no centro da espiral de fumo

dança a trança de pêlos negros

[oferenda dos bruxos]

hoje é sexta-feira treze

cumprem-se os votos da sacerdotisa virgem


a lua entregue ao bel-prazer dos gatos virtuais

garras a escavarem um ecrã

procurar no berço a ponta do feixe

onde residem significados do arbítrio

camuflados pela cor electromagnética dos sons


a ampulheta tosse

[rio de pânico subindo a tristeza refractada na cor]

uma mão divina colhe miados no labirinto impaciente

una pulsação da família em coro desprotegida

e o tempo escorre ainda mais frenético


os gatos petrificam-se um a um

despedem-se do rosto frio e branco da lua

que aperta, entre lágrimas, o seu xaile





um alfabeto de saliva escorre para um mar inconfessável

[um beijo demorado]

nebulosas encabeçam ruínas de corpos

letras feridas nos membros em sobressalto


ângulo azul

: pregadas à frieza dos acontecimentos

as mãos suam

embevecidas no volante

tão terrenas que irrepreensíveis estrangulam a estrada


água a pecar na renúncia

página a página a culpa e a traição

: esgrima entre as duas faces

[espelhos]

outras duas faces

choros repetidos

borrão nos rostos

pneus a pisarem o traço contínuo

[a paixão]

uma condução perigosa

à distância um esgar delicado, oca feição da água

adentro uma amálgama febricitante de impressões

relâmpagos cínicos

ou

ilegibilidade das bocas


haverá quem encadeie soluços, sobras líquidas da memória

brindando a uma maresia citadina

e a salvo

os últimos fragmentos irredutíveis da precipitação

espermatozóides electrocutados na vulva

sempiternamente suspensos na matriz coloidal

: um crânio estéril


vivências estrondeiam quilómetro a quilómetro

e a maresia é desmascarada

ascendem à consciência os prejuízos

intenso encontro com a circe poluente

unhas aguçadas lavram a pele

toda a fisionomia chora como uma ilha

adiando a colisão no aquário

remorso


ainda de dor uns olhos transfigurados

[fonte carnívora]

cobram esperma e sangue, último almoço





mergulho aprumado, a heroicidade

branca inocência em não justificar diademas do sacrifício

em não perfilhar as várias transmutações da carne

no intuito de mais tarde dissecá-las

em ângulos gordos a emurchecerem

à passagem do brilho indeciso do ponteiro


ângulo púrpura

: a arena

lar de afectos animalescos

recinto do mais trabalhado instinto

onde irrompe um fulgor de sangue em transição

que borbota do carvão ancestral

e tilinta fome


submissos ao pulsar da areia amarelada

os amantes ocupam hesitantes os seus lugares

um mirabolante tabuleiro de xadrez

[chamariz sexual]

um jogo de regras quebradas


colunas frágeis conexas à miríade de poros

nevroticamente tensas

estudam no mapa epidérmico a cíclica migração dos fluidos

sombras que ameaçam subterfúgios protegidos


os amantes aprenderam a burlar a púrpura condescendente

emanada da carga mitológica que alumia a história

passado reforçado por arestas de exausta verosimilitude


na arena

[expansível palco da libido]

hienas escarvam enlouquecidas pelo amor

encenam sete minutos de sucção

sublimando expoentes limítrofes da carne

planeiam ao pormenor

a geometria única de lanhos a infligir à jugular


assim o desespero das criaturas

o mais alto sacrifício na desonra da dignidade

mescladas as várias tonalidades do sangue

que elas ainda não compreendem


ao de leve o vento na areia manchada

brisa dúbia da sentimentalidade

turbilhão de tubos ao redor da cama no subterfúgio

covil à mercê da união mordaz de cateteres

corpo trémulo ciente da sua cumplicidade

na ignóbil cilada


ao espectador

desdobra-se sanguinário o origami poligonal

porque o medo escurece a carnalidade

e os infames amantes acabam por se desencontrarem

nos corredores





a biologia conserva o segredo insondável

[nuvens densamente armadilhadas]

o líquido espesso que ressalva o erro, a vida

no planeta que a amnésia sustenta

mãos atadas, adesivo na boca, narinas irritadas

e ainda a surdez indissolúvel, a cegueira impermeável

a memória dum povo em contínuo reset


ângulo branco

: meninos brincam na poeira que lhes é ditada

amplificam o ventre preocupado das mães

chutam a orelha

há pouco atirada aos cães


triste infinitamente triste

o poderio podre dos senhores da guerra

a mama seca

verdade sobre o azul, asfixia do ouro

em plástico doentio


«ah, a baioneta»

fica sempre bem com a farda

«guerra é coragem, honra e bravura»

suor, sangue e ranho para limpar no lado b da bandeira nacional


«ah, o soldado desconhecido

ainda a apanhar frio nalguma rotunda»

carne para canhão

«mas um canhão come carne?»

sim, e da boa

ouvi dizer na corola machucada dum sonho

em que vi bailar a baioneta no campo de batalha

vestida de noiva dançava com os órfãos

e com as viúvas


dentro de momentos virá a boa sirene inquietar os corações

os seios da sereníssima mãe pingam na bainha do tempo

lágrimas umbilicais


a carta mais triste do mundo, última canção

: louca sirene

diz-me quem enxugará as lágrimas

ao soluçante farol das pequenas praias

esse menino uivante no raiar da escadaria

diz-me senhora mãe

tantos filhos como gemidos

e como magoa este torpor

madre soror

venha o espaço num balbucio dissolver o que de nós sobejou

dor e mais dor a fervilhar em bica

ó madre dolor que me escutas

de nós sobejou o enigma, o umbigo a roçar

a noção de lugar esta gólgota ardente

esta gólgota morrente