Januellarium
[Palimage, 2009]
JANUELLARIUM
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente
Luiza Neto Jorge
COORDENADAS
] - ● - [
começar no pequenino ponto controverso
: é um princípio do movimento
mais do que isso
é O PRINCÍPIO
O MOVIMENTO ― sim, o único princípio
e razão única da pulsação
A VIAGEM, camuflado interesse do ser movente
nos dirá que
a única vicissitude do movimento
é a energia,
verdadeiro mistério de qualquer órbita ontológica
e O TRÂNSITO
assombroso milagre aspirante a precipício
que o ser intermitentemente o lê como abismo
ou fascínio (nas suas férias
estendidas a todas as partículas)
A CINÉTICA, portanto
fúria visível dos átomos em delírio
[energia viva]
pressuposto máximo de transacção
dança infernal ou futuroscopia pirotécnica
falemos de espasmos cintilantes
O CÂMBIO ― ecossistema convulsionante
espantosamente colorido
mais colorido que o próprio conceito de cor
que o efeito infinitesimal de toda a gama de cores
em todas as suas frequências ― colorido de espanto
melhor dito
✫
A ÁRVORE DO BEM E DO MAL
esgueirando-se entre as sebes do conhecimento
a criatura plural ascende ao fruto
ascende sem que lhe conheça o nome
contando como seus todos os gomos
e a árvore é um grande livro à espera de ser aberto
namora-o belicosamente com a boca
inscreve instrumentos de sabor na casca
amacia aromas com a saliva
segreda-lhe regras do enfeitiçado dominó espinal
segreda-lhe, sem cair do degrau
um longo pescoço ● mãos para esbofetear
um a um
os inimigos de lamarck
a criatura habita a luz húmida
plural circunscreve a moral do degrau
vê-lhe na pleura o tambor pelo qual sempre quis falar
a dentição rodopia louca pelo fruto redondo
quer acender dentro as sementes negras
― um dia falarão das trevas e da sua colheita
✫
ENCONTRO COM A CORUJA
brilham o sete as pedras
espalhadas na incerteza nocturna
o segredo encontrado, algum
frio sanguíneo
― brindo ao desespero
e não me preocupa a lenta mastigação do tempo
antes recuar como ecoam repetidos
os gumes
a esburacarem o saco
esferas numa brincadeira interplanetária
cegas sempre
no saco ― o bico perturba
a gravidade no impasse:
o beijo na sombra
à saída da tenda uma enorme
vontade de comer o céu à colherada
✫
AURORA II
voltemos ao gato, meu amor
aonde o deixámos
a guardar o candeeiro que ilumina a rústica
artéria da cidade ― é este o gato que amplia
teu olho de peluche
[castanho mágico]
no espelho
queda-te que és agora objecto para engrandecer
e lamber
como o gato lambe as suas patas
à procura de pólen nocturno
que lhe extasie o corpo e lhe adormeça a alma
canto-te em surdina fina ó minha doce peregrina
eu sou o teu espelho
e tu o
ressonar sobressaltado dum cadáver
a chorar mil formas do lírio
um acordar de agosto em redor do gato
desviando o pêlo ― fogoso estorvo
à entrada dos sonhos
escorrega-me o corpo no foco desse farol prenhe
[castanho mágico]
que de tamanha luz e candura estilhaça
todo o
espelho
bebamos desta artéria, meu amor, voltemos ao gato
aonde o deixámos
✫
RESET
e quem trai a memória da ignorância primeira
esconde-se medonhamente
refastelado entre as pétalas da cidade
alisando o silvado à borda
como se contasse no esquadrão celestial
e irrita-lhe a culpa
[prurido de instante]
toma antibióticos com muita fome de ser doente mas
e não há mas e isso irrita-o ainda mais
tanto como aquela roupa a secar por cima dum emaranhado de cabelo
e tinta ― a lembrança do filho por nascer
a confusão das tarefas metamorfoseada em murro
e não percebe a escrita do céu
a linhagem estelar irritantemente brilhante
a lendária memória da galáxia dita às cambalhotas
fia-se na (con)tradição oral, numa tradução
porcamente bocal e com cheirinho a fuligem
também fruto da visualização de documentários
de diminutivo televisivo, respeitando sempre
o conteúdo programático standard
e é obrigado a ser feliz neste spot
✫
NA CAMA
noite viúva ― chamo-te
num último deitar de amparo
com um perigoso mastro de outubro
à boca do covil
um tigre parado no cobertor
ou um nariz tenro sobre o vermelho futuro
lanço-te o preguiçoso roncar das cordas
― elas roçam-se febris como cobras
ao primeiro som repercutido
passeio pelos dentes brancos
macios e dolorosos de tão afiados
as janelas do crânio cansadas de colorir
os tendões estendidos ao infinito
múltiplos esfíncteres viscerais corroídos
e os pulmões a embebedarem-se
com o último líquido amniótico
chamo-te sangrando tecido pela boca
assino o teu nome com um suspiro
um minuto para a meia-noite
✫
A CAIXA
quem lhe conta o peso da caixa?
ele sonha-lhe o ar primaveril
alguma seiva transbordante de hortelã desmaiada
faz disso um chá que lhe fortalece o olhar
continua a olhá-la num deslumbre crescente
percorre uma a uma suas finas arestas de cartão
depois os ouvidos vertem nos olhos um rumor
e agora pesa cada palavra na boca de quem diz
sem se aperceber das gomas sortidas que essa saliva
indiferentemente contradiz, mede-lhe os tiques
articula o boato rasando a caixa
sendo cada vez maior o desejo de lhe tocar
quer-lhe passar os dedos, cortá-los
na ânsia longitudinal de querer abri-la
e descobrir as muitas franjas de ar posto
sonha-lhe pesos indiscretos, índias empacotadas
senta-se no chão cruzando as pernas
lambe outra perspectiva
move frescas águas dentro dos olhos
como que à espera que ela o fite
ajoelha-se e quadrúpede ensombra-lhe a quadratura
pinga saliva na planície da caixa, mancha-a
e logo retrai com vergonha de lhe ter desferido desonra
acabrunha-se por um momento
até que a mola venosa encha de vermelho os olhos
que o catapultarão ao golpe de misericórdia
então ele pega na caixa, sacode-a violentamente
amarrota-lhe os lados, esbate-os com os punhos fechados
esquece-se de ouvi-la em profundo silêncio
inebriado pelo suor de renúncias e talismãs inquisitórios
pára, respira ofegante ― abre a caixa e é engolido
✫
SUPERNOVA
há sangue a queimar ● entra depressa no quarto
sacode a estrela vizinha (ela brilha nos cortinados)
estreia-a na noite como quem solta as aranhas trepadeiras
põe-lhe a vermelhidão mortal com que inauguras os dias
poderás sorrir no flanco empoeirado das estações
a repetirem-se vezes sem conta no pestanejo rápido
junto aos livros libertados dos caprichos do calendário
cumprindo pena exilados, excluídos do carrossel sazonal
a mesa ferve madeira ● doa carbono
ressoa silhuetas libertinas, esquissos difusos
a lembrarem rostos que amealham faíscas
por um bocejar noctívago do líquen a pairar no hall
poderás identificar fantasmas e comer com eles
talvez até perscrutar vozes obscuras no mofo dos móveis
embarcar no torvelinho torrencial dalguma memória
a gazear no tecto agora picotado e permeável
a muralha nos intestinos ● a miríade vibrátil
espera algures qualquer coisa lá fora para amar
num trecho de mundo a beijar atrapalhadamente
para que reinventes passo a passo o perto em aperto
sem fechar definitivamente esse vórtice surpreendente
e salvaguardes o berço dos cometas; com sorte, talvez
aches lá fora quem de honesto conte frios os minutos
presos aos dedos ― patronos do medo, abençoados na perda
pergunto-te, até quando jejuarei nas entrelinhas?
✫
O APARENTE IRMÃO GÉMEO
onde haveria de te encontrar, tempestuoso pirata
com argênteo tolde cobrindo um azul assassino
delonga de alguém insinuante no canto sobre
os buracos da flauta
onde haveria de te encontrar
arredado dos problemas do mundo
e porque a prata atrai os que se escondem nas
tufas de cabelo branco
saberei sempre onde te encontrar enquanto
souber interpretar o mínimo pavio reflexo dessa luz
tão brumosa e peculiar
nesta constante difamação contráctil do espaço
ouço a música contorcionista do teu corpo
[um claustro para a ocupação dos sons]
à distância uma simples carcaça sem nome e dignidade
arrefecida, esquecida e roída pelo som
ali à mercê dos chacais que os decibéis pariram
confessando-me as coordenadas
✫
PLÁTANO
vejamos a grossura da linguagem oculta
esse velho soldado vegetal
petrificado na pequena praça
um estandarte de anéis expeditos
cravado no rodapé da história
um marco bélico de insígnias benignas
saudemos com ele a fúria protocolar das estações
mordamos em sua honra
as milimétricas peças do grande relógio
porque a nossa robustez está no equilíbrio dos sentidos
no complexo sistema de vagões celulares
a sintonia carbónica lambe a efemeridade do futuro
cintila nas sílabas que o tempo trauteia
assim se engrossa esta linguagem a nós oculta
num primeiro olhar
(premonitória herança do dilúvio)
a linguagem ao sabor da folia de espectros inesperados
armadilhas arquitectadas aqui e ali
pelos anões que descansam por turnos
nas ramagens mais gordas das árvores
celebremos este lugar
que o plátano há tantos anos come
há tantos anos digere sem perder firmeza
tonificando resplandecente
as folhas os ramos
os nós da camisa implacável
há tantos anos preso à cinérea jovialidade
celebremos esta praceta
atentemos na côncava alegria vinda dos espectros
― um gigantesco olho de mosca granítico
apontado ao céu
✫
A BRINCADEIRA
um dedo molhado ao vento
inferir ― é muito provável que alguém
deite culpas para cima do menino, dele andar por aí
a dar uso à natureza
de manter quentes no bolso os planetas que lhe convém
porque os berlindes
inócuos frutos de vidro no bolso da criança
são bolas de cristal dos bruxos crescidos
adivinham as quatrocentas e noventa parábolas a viver
as algibeiras do menino são fundas
e os adultos sabem disso, como sabem
na verdade qualquer criança é algibeira funda
daqueles que por miopia do olho espiritual
irrompem maioridade
por vezes tão funda
a ponto de por momentos encobrir toda a farsa
não há tribunal que apure esta causa
um pouco de natureza por estas paragens
igual à do menino que
de cova em cova
anda a puxar sorte aos berlindes
✫
A LIÇÃO
ela olha as mãos do mestre
é capaz de respeitar o mais ínfimo
grão de areia ― não se atreve
a olhar-lhe o rosto
sabe-lhe a voz de encontro às coisas
ela bebe das mãos
o semblante que procura
confia no pássaro cítrico da lição
revê suor no pano
distingue brilhos da natureza
queda-se atenta e
não arreda pé da torre de cinza
cresce nas mãos uma tulipa roxa
espelho da viuvez espiritual
uma tulipa-cofre
para guardar cabelos brancos
✫
EPISTEMOLOGIA DO ROMANCE
chegaram a casa entusiasmados
arrumaram à pressa a despensa ― amores-de-fogo
mal catalogados
de tão pura e limpa a crença
um fiozinho de geleia no pátio
e prosseguiram cuidando dos penhascos invisíveis
reescreveram a fronteira enlaçados nas escadas
recordaram um outro fuso horário para lá do espaço
telegramas em pétalas de magnólia
numa ilusão de armários abertos, verdadeiramente nus
e os rostos fecundados
repetidamente gastos de quadro em quadro na parede
parede fluida estampada naquela que encostados descem
as bocas como mais genuíno comburente
e um selo portentoso no elo
bem assente no vértice mais dócil
do andor
― o romance começa onde as feridas se ressalvam
✫
O FANTASMA DA GEOGRAFIA
atento ― ligado a
um emaranhado estéril de constelações estranhas
ligado à sede incompreensível
das pequenas superfícies ― o sentido rotular da imagem
ainda ontem robert altman deu-me um inverno para dormir com a
raposa do caminho-de-ferro
: o covil frágil
esboçado no açúcar da neve
o vislumbramento da morte acalentado
pela doce prostituta perdida no nevoeiro
do ópio
cai a frase no painel de transístores
pesada e dura
ensalivada no cais da língua
«o inverno come os ossos negros da prostituição»
sim, acima de tudo
o aborrecimento de estar circunscrito
numa arquitectura nodal das sombras
nas circunvoluções assintomáticas do cérebro:
o fantasma da geografia
nasce dum escorregar simpático nos pisos
progressivamente escavados por detergentes militantes
resume-se na força do líquido
sobre todas as superfícies
amplitude da ambição do eu recolocado no espaço
estrategicamente
a angústia do veneno ● o amar corroendo
certo de querer morar na imagem
habitá-la no que é mais profundo
fruir desprendidamente os veios da polpa
do que se vê
fruto esculpido por lâminas
de todos os órgãos
o homem baleado chuta elipticamente a neve
a pupila concerta a janela entre dois folhos cárneos reflexos
o duplo prepara-se para morrer silenciosamente
✫
A CONCHA DO SONO
um silêncio acabado em orquídea
luz para amar inteira uma almofada de pedra
afinal o real endurece
a cabeça doa peso
conserva sonhos em amoníaco ― cristaliza
no repouso
[a flor de granito]
o outro dança com a sombra imaterial
aguça intentos no rosto
desmascara a falsa dormência do substantivo
quer no fundo desvirginar a cascata
rasgar brancura ao algodão profundo
lágrima irmã da água tecidular
um peito nu insinua-se ao gume da esferográfica
e eis que um anzol fortuito trai
numa vergonha de palco os músculos
para lá do corpo amplificados
ele apressa-se a escancarar a concha
impede a cabeça de estrangular-lhe o antebraço
refaz o mundo com tesouras nas pálpebras
levanta o braço bem alto e
consente chuva pesada ― quer ouvir o sangue
uma última vez na cascata onde escondeu
o menino com tinta azul nos lábios e nos dentes
a esferográfica assinala-lhe uma cruz na cabeça
CORAÇÃO ALFANDEGÁRIO
SONETO DO CARPINTEIRO EM DÍVIDA
o que talvez importa ao coração alfandegário
não é a chave,
quando muito o real valor de importar
[um sentido de porta a esquecer o jugo directo da cor]
não importa se a porta faz de porta ou não
se os olhos que a vêem estão fechados
nem sequer a cifra da migração
porque os vultos sobressaltam
a multidão, no seu todo
embora se tenha como fixo esse vértice multifuncional
traduzido pelo sentido que a porta
na sua presumível realidade comporta
o que realmente importa é a cópula
no movimento aportado pelo serviço de alfândega
✫
SONETO DA REBELIÃO CIGANA
os ciganos abençoam a noite
trilham caminho com incandescência orquestrada
brincam no breu as
espáduas comunicantes
exibem à lua as faces esculpidas a ferro quente
exumando dor trabalhadas
a plaina
no meio do calor
agitados que nem peixes em escura água
os ciganos manejam estranho artefacto:
archote num extremo
trejeitos de pá no outro
vão ou vêm?
só o caminho interessa
✫
SONETO À VOLTA DUM DEUS DE BARRO
ali de novo o grosso coro do gentio
a mão cheia de povo
uma rede nervosa de papilas
espigões cárneos expansivos
marchetam, marchetam sem parar
e magoa dentro o respirar
saberá a língua esse gume doentio?
porque nunca imóvel o aglomerado
esse coro encurvado do gentio
desde já solta aquela ou aqueloutra articulação
a seiva do mal ● tenso cordão universal
de cima o grande coração
o tentacular plasmódio populacional
pronto a esboroar o açúcar das estátuas
✫
SONETO DO OPERÁRIO VINDIMADOR
sombras chinesas ● vou beber
não importuno o cálice
― ele descansa na mesa
de pés moles
num dos muitos combros deixei esquecido
um cacho de uvas gordo
um copo de culpa ● vazio
porque vagueiam perdidas na parede
estas duas máscaras de outono
livres de maleita no dúbio escuro
perdidas duas vagas sem sono?
à dupla passagem entre as sombras, minha sede
cairá a seringa no súbito despegar dos lábios
sombras chinesas ● vou rever vindimas
✫
SONETO A DON QUIJOTE DE LA MANCHA
ainda houve quem guardasse
do já extinto abominável pesadelo
as unhas estragadas do gigante
que por luminosa vez se revelou
guardadas em cerrados punhos
porque em altura certa irá moê-las
descurando o moinho que é humano
para cobri-lo de seda noutro sonho
num tempo que se crê de espera
quer ressurrecto o grito do gigante
à sombra dum moinho cadáver
é neste encontro de cama lavada
que alguém ensina a receita
da sopa para o dia comum
✫
SONETO DA TORRE SUBMERSÍVEL
um braço por cima ● envolto de cabelos
[uma estaca no coração]
obedeço à pele
à lírica do sangue
bebo alergias
: ao chão
num reflexo de estrela os amantes vão autopsiar
o branco da noite antiga do mundo
indeciso entre duas espadas um
anjo sobressalente amordaçado
[a ladainha dos fósforos em fundo]
o quarto trancado ― das muitas estradas colho
asfalto para dormir
: hei-de um dia cumprir pena com almofadas
✫
SONETO PARA QUANDO FORES EMBORA
quando fores ver-me-ás fingir
entre tépido anjo receoso de sangrar
e macabro exterminador de querubins
se fores quando eu sentir-te a ficares
no meio da tralha pelos confins
deste planeta estupidamente benemérito
uma vez mais ferido de morte a catalogar
borra milenar das armas do exército
tudo outra vez e suja muito suja a farda
mil vezes fora o nada ― foi então
uma ilha que esboçaste na barriga
armadilha as dobradiças de antemão
para o caso de bateres a porta e quereres
que algum estilhaço de mim te persiga
EXÍLIO GASOSO
A SEGUIR À CHUVA
a seguir à chuva sobeja irremediavelmente a beleza
a finura lamacenta dos gestos aliada às gotas laminadas
dedilhar as pedras ● de cócoras para o olhar dos outros
e porque intacta se afigura a imagem de ontem em mim
narro-a sobre a impressionante bondade deste retábulo:
três tomates maduros a competirem tamanho entre si
espetados no terceiro dente da forquilha, um e os outros
a sangrarem água por desprendimento ao ciclo vindouro
a beleza vertida pelas temíveis e ferozes mandíbulas:
pão e antídoto ― quando cuidadosamente administrada
sugere inconstância violenta dos espinhos que a pele
aglutina, na medida em que o cérebro pastoral os semeia
sem nunca antever a força nodal das sombras que
autenticam o telúrico poder do retábulo em vivência
[mágico ceptro crescido inteiro na palma da mão]
os olhos lacrados ● autorização para rebolar na cama
esperar que termine a santa trovoada debaixo dos lençóis
retocar o retábulo antes de ele mesmo acontecer
a seguir à chuva recuperar os olhos bem secos
para que se mantenha fresco o óleo das imagens na retina
no dia depois dos dias, hoje depois do ontem e anteontem
enaltecer o retábulo ● caminhar limpo entre a tomatada
✫
MEMENTO PARA UM LÁPIS
tardes passadas a desenhar
a sombra muscular do cata-vento
ninguém gasta os olhos no clarão do lápis
ninguém ouve súplicas a monstros por reanimar
talvez um subúrbio justifique a carne
ou signifique nuvem
[sépalas da viagem]
nunca o denegrir da mordaça que a tempo
se incorpora
o vento dispersa a vontade, suaviza o traço
― aquele que acordar no esboço avesso à grafite
jamais existirá na memória daqueles que o vêem
✫
ESQUELETO CAPITAL
é favor introduzir moedas nesse esqueleto abissal
vá
ponham uma moeda em cada vértebra
uma moeda em cada friso de costela
vêde como pesa o acordeão humano, olha eu
um eu parado de espanto
medindo febres do metal em contemplação e ócio
isso
coloquem mais uma moeda em cada falange
ah espero ouvir a surdez capital
abrir o peso do metal que engorda os olhos
um metal cada vez mais ósseo, reluzindo menos
embarcar na dança baça de encanto em homenagem
às cartilagens ― aqui está, um pobre tolo de rico
bem pesado e dourado
pleno na vergonha de lavrar o mal
de hora em hora mais calcificado, relembra
ossificação sacralizada na imundice
um podre tolo pobre na inteireza de ser rico
ah é preciso louvar a dimensão porca de todas as coisas
sacudir-lhe os ossos e ouvir cair todas as moedas
fazê-lo dançar um pouco mais na roda do dinheiro
para depois sair na ressaca da ebulição do cálcio
correndo desalmadamente como quem traz à cintura
um simpático e rechonchudo porco mealheiro
✫
FORJA PARA UMA FALA
arderam-se-me as sandálias
persegue-me esta centopeia cleptomaníaca
com um baralho de cartas nos apêndices
[o horror das visões]
dir-lhe-ia peça por fragmento farejada
hoje firme e adensa-se o estreito carbonífero
amorfo cromossoma pelo toque
relembrada cinza nas sementeiras
ao pó ● pólen das magias
de aborrecer-me no deslumbre dir-lhe-ia
: quero mais do que penso lume
✫
PÁRA-PEITO
o parapeito é uma planície enorme
digo-o atestado de penas
porque meço a todo instante o pulso à brisa
por ela me balanço
e me debruço
com um espasmo de vertigem e de espanto
a forçar a maldita chave ganha no feitiço
como dádiva incompleta
mais do que um querer voar
mandíbulas aos olhos por coisa nenhuma
um desejo de afrontar certos pássaros
aqueles que apenas ocupam espaço
aqueles que azedam o ar e me ferem em movimento
que têm betão nas asas
hediondo cimento
aqueles que não sabem porque voam
nem para onde voam
porque num amplo e desconhecido universo
há sempre um pequeno perímetro para bússolas
e astrolábios
um perímetro para humedecer com beijos
para amadornar entre a penugem
por esta extensa planície
tenho aberta esta janela à espera do mundo
por ela inspiro loucura sobejada na brisa
e plano no sorriso
de mais tarde ir plantá-la no epicentro
do peito
✫
POETA MORTO
disse-me como se encobrisse o frio de não dizer
um hálito nobre para aconchego junto à nascente
disse-me a distância num talvez inquietante e avassalador
a falta do tacto superada por um gasoso ter
olhos despertos a sintonizarem espelhos acesos na maré
o livro ― sim, bem sei, tal como os deuses
os poetas pernoitam no interior das árvores
as páginas confessam um rosto, para uns oculto
para outros apagado; por mais que se leia
bem rente à mão do escriba fictício
tudo permanece indizível no amansar das águas
longe do corpo vulcânico, enredado na sua corja fecunda
fora e dentro da pele
porém à baila a morte perpétua domestica as pálpebras
e concede um selo automático para o abandono
✫
UM PÉ NO PAPEL
sob a hora translúcida
no ar um dia
a flor revelará a animalidade do sonho
nos seus órgãos, na sua escabrosa essência
amedrontando o ser de espuma
a fugir da saliva
uma nuvem amarela nesta hora o ar intacto
ar que o pânico meridional enrijeceu
avesso aos brônquios duma manhã crepuscular
uma nuvem como longa-metragem ionizada
se um homem decide clarificar a sangria do sol
experimentando visões do grande incêndio
sabe à partida que deverá amar o escuro
e libertar-se nele incondicionalmente
«uma floresta resplandecente sobre o cinzeiro»
ao vê-la desdobra-se na ascensão rápida da ideia
músculo do sonho e corola da flor
também o fumo se criva pelo crepúsculo
um pé no papel ● a página pelos joelhos
designa «floresta» o que vê este homem
de vento os gestos e o porquê das mãos
experimenta o exílio gasoso da palavra
o pé soluça e verbaliza a vontade
o corpo cai e instrumentaliza o sonho
porque a palavra trará nova seiva
e essa seiva invadirá velhas raízes
porque essas raízes irrigarão outras vontades
que se acenderão no mesmo bolbo
ele veste o silêncio ● a flor abre-se no escuro
✫
PRISMA LUMINAR
tão ver que é o sol
hoje vou dormir a sul ● alimentar a cama à frente do papão
vejo com as unhas
diz a mão
ao lavar um olho azul
que ama
tão cega a lua nisto tudo ● um norte por detrás azedo
e a boca pede mar com medo
de lábio a lábio pressente morte no veludo
o longe feito em sal ● sabe a saudade e ao céu
diz o sábio na demolha
[assim nós os dois a solo]
tão outro ver o meu quando me olha uma criança ao colo
✫
OVO MÁGICO
acordar no verde
descer o ontem
contado à montanha
à espera que ela desboque
a sabedoria natural
das árvores
mágica maneira de aprender
a traduzir em sinais
o cruzamento dos troncos
a dimensão variável
dos triângulos quase rostos
recipientes falsos de vento
doado na veleidade do cuspo
venho das duras lições
de trigonometria
procuro sonhar com
a perna defeituosa do bronze
regressar esta noite
à espuma sufocante
dos frutos perdidos no chá
prostrar-me aos pés da imperatriz
do grande carrossel
mãe-de-pedra adormecida
na floresta
― reapareceu o ovo
junto à palmeira de lume
✫
ENCANTATÓRIA DO OSSO
buscar-te até ao osso
: mentira
porque a carne
só a tua carne me alimenta
o osso é uma desculpa
e quando digo
«amar-te até ao osso»
é porque tenho redondel na garganta seca
farto de te procurar no falso espectro da carcaça
enlouquecem as gengivas enroscadas na tua carne
quero-te num beber triunfal
quero enunciar múltiplos afogamentos no sangue esplêndido
esquadrinhar anatomias
irritar sílabas do corpo
[nossos corpos]
domesticar a boca na planície
o mais selvagem possível
convidar sonos e adormecer na sangria dócil
da natureza
mas também ouvir-te falar do osso filosofal que perfuma
a mais vermelha das muitas carnes
e aí sim
recupero sentidos da limpidez mineral do osso
e procuro-o como coisa última que levo para a cama
com os dentes já enxutos
da tua linfa
✫
QUE FALA LAVRAVA A SENHORA LAVA?
uma mulher através dos lábios
dá a língua à criança e sorri
penando armistício antes de fêmea
mulher de chorar nas palavras
a quem lhe dê coroação
uma mulher resvalando a mulher
sobre si própria falando
mente desmente sobre si própria
em transgressão
ora diz que sim ● ora diz que não
o discurso cavalga a natureza
a mesma mulher perdida no cavalgar
falou-me do que lavrava
calou-me e ainda fala
no ar
: bem a escuto senhora lava
mulher de corpo inteiro no vibrátil estribo ― saem-lhe
libélulas repentinas da grande boca
fala segurando as quatro paredes que nos assistem
eu pregado ao semblante descaído na fúria
ela resistindo a uma espécie de sono interdito
câmara após câmara cansada de habitar
ocos exosqueletos de palavras em salva
que fala lavrava a senhora lava?
não soube e ainda não sei
é branco o fantasma em que se tornou esta estética
uma fala perfurante, bala repetitiva
de hora em hora polida
e disparada ― a mesma bala doméstica
✫
NOITE IMOLADA
as copas das árvores incendeiam escura
a lua ― quer-se digno
quem entre poucos escreva o sangue
sem esquecer a essência da água
porque é difícil respirar debaixo dele
chega-se a bramir com um lobo morto
ao colo
porque eles estragam o choro
amontoando rasgados risos peçonhentos
frágeis irrompem nas vésperas do sonho
que se quer limpo
sobre a folha que trespassa
a madrugada
virão no último tracejado do halo lunar
para sujar a água
da boca à hemoglobina
não esqueçamos a tinta preta
com que se escreve a palavra «morte»
a entusiasmante vida do lobo cinzento
ainda no declive a sangrar tinta
façamos homenagem
aos seus caninos apagados
instante áureo acima dos que o desrespeitam
porque o ruído é a faca
sem gume visível
é um ardor de dentro por explorar
nas mais assombrosas vertentes
pelo contrafogo possível da folha perfurante
sombra aureolar do icebergue indecifrável ― a lua
escura afoga as inocentes copas das árvores
✫
ESTUDO PARA UM PERÍMETRO
na pressa de falar
paria rosas pela boca
falou aquele homem
quis repor intacta
a fragrante rosa na mesa
mas brincaram fundo
as pétalas na sua boca
ao falar quis repor
intacta a rosa vibrátil
e bem fundo brincaram
na boca tantas pétalas
aquele homem ao falar
ousou repor inteira a rosa
e na boca em profundidade
brincaram loucas as pétalas
do belo disse esse homem
mas ao querer devolvida
a rosa intacta na mesa
explodiram-lhe pétalas
nos alicerces da boca
disse do belo aquele homem
querendo repor intacta
na mesa a farta rosa
e brincaram flagrantes
pétalas no fundo da boca
falou o homem do belo
querendo repetir a rosa
repondo-a intacta na mesa
e na boca dele brincaram
bem fundo as pétalas
a falar do belo pensou
na mesa a intacta rosa
impossível sentiu o homem
mas iludido arriscou
desertando bruscas as
pétalas do desassossego
e de vazia a boca fez-se pútrida
perdido no belo o homem
tentou dizer a rosa
e ao dizê-la mastigou-a
IN EXTREMIS
FEBRE TIPÓIDE
alguém anda enganado neste mundo
tipo eu ou um outro talvez não sei
sinto-me mal tipo vou-me embora
apanhem-me as sandálias e por favor
mergulhem as bolachas no leite fresco
e dêem-nas ao gatinho a miar desalmadamente
perdido da mãe tipo na extremidade do carril
agora percebo o brilho da madeira no livro
viajar tipo correr as páginas até à exaustão
e miar feito gato à espera das bolachas
com medo dos cães tipo polícias do futuro
alguém enganado? todos tipo humanidade inteira
agora compreendo céline e a sua inquietação
azedume tipo ácido sulfúrico aspergido
venham julgar-me neste estado debilitado
estou doente tipo quarenta e dois graus de febre
✫
ELOGIO À TURBULÊNCIA
as horas serpentiformes pesam na herança do caruncho bebedor
flashes libidinosos a inflamarem o círculo que contráctil
demora a disseminação cancerígena de palpitações petrolíferas
[o sifão escondido na espinhenta areia]
amadurecem os sons no armário enxuto
ouro possível na frágil desidratação da memória
mal-empregado metal se no borrão encontrasse o seu cofre
assim o gatafunhar da vida
pois as alforrecas ainda se movimentam por estas bandas
espampanantes de bar em bar no imenso reduto
[o que quer que isso seja]
à procura dum acender perto da gota a trabalhar
como objectiva circunstancial
da vastidão
como é bem-vinda esta turbulência de estilos no armário
retorna o mar ao mistério da concepção
indubitavelmente azul em todos os seus tecidos
em todas as faces imprevisíveis da solitária gota
e n i s t o
a f e n d a
a f r i c ç ã o
e n i s t o
a f r a c t u r a
a o n d u l a ç ã o
tristes os peixes na penúria oxidativa
na vagabundagem programática do pensamento
não se conformam com a recente ordem de despejo
decretada por um sósia de neptuno
obsessivamente lunático
[entre as marés que o afligem]
determinado em aplicar a louca mas estrutural ideia
de povoar os oceanos
com cavacos
esta turbulência não dá azo à arquitectura ou explicação
fica-se pela gratuidade das escamas
um senso emergente da fúria pela vermelhidão dos aspectos
crendo amadurecer massas gravitacionais comunicantes
contra o castigo do vácuo mudo
[gestação: o grande silêncio]
uma carraça a explorar os nós
― feieza
que de minúscula
se torna bela
há um humor cáustico a revitalizar a vista
uma praga na vitrina giratória
doença decerto, não a escolhi
arrasta
comichão manifesta na irresponsabilidade dos braços
intróito comestível pela benevolência craniana
posse inconfessa de irreversível atrocidade
no olhar pequenino
enfim, há bondade
partilhar uma técnica na arte maior
que é beijar
e na periferia dos nós a carraça prossegue com a sua labuta
escarafuncha um equilíbrio que estremece um outro
não a escolhi, no entanto
sublima-se a vontade de renegar a sensibilidade
vontade de desatar os fios às cegas
cortá-los até, de flagrante
em última estância
um homem medita e é porca a sua insubordinação à tarde
com flagrante desordem copulada no espelho
calcorreia a espuma amarelecida do mar
sob a guarda do alcatraz, pobre druida
ele avista a pena na quadrangulação da duna
apanha-a e empunha-a como arma branca
[luz dada para o voo]
vê o mar como velho proxeneta que se masturba a seus pés
― hilariante isto de tão subcutâneo húmus: amolecer
o belo ramalhete de esporângios
cabisbaixo o homem olha para o chão com medo do satélite
é a alma desta turbulência sem preliminares
é o armário esquecido num qualquer canto do planeta
é-lhe reservada a podridão dos víveres
entrelaçados num som ainda não audível
e o mar à volta
a sua nostalgia longínqua
abjecta aos peixes negligenciados
também eles a braços com a pouca sorte
há sempre a promessa de se construir uma estufa
onde se remodele o grito
para que caiba em qualquer faringe do ecossistema
[imenso reduto]
uma chave-mestra para o futuro
✫
CELEBRAÇÃO DO MOSAICO FLUIDO
bom fémur me traz
o paladar
― começou no rio
e libertou a
fêmea
procuro predilecta ossada
paralisada no tempo inaudível
senha fotogénica entre as possíveis
para me rir baixinho
noutros dias
quero eu ver-me
chover
por uma vez ultrapassar
o frame
olhar-me por fora a
rasgar transversalmente
uma etiqueta
cartonada a muitos olhos
✫
ÚLTIMA VONTADE
quando morrer
não quero ter cara de morto
porque os mortos são
muito aborrecidos
chateia-lhes o facto de estarem mortos
e por isso
fazem as caras mais tristes nas fotografias
abandonadas nos cemitérios
muito por culpa dos vivos
ao improvisarem alimento nos aniversários
em catadupa como
somatório dum ciclo exponencialmente rebuscado
uma forma de
alienação da pirâmide universal
contagiando repercussões da mesma imagem
que acabam por esterilizar os olhos no
vácuo laboratorial
da solidão
é urgente aprender a arte de ressuscitar vitrais
em dimensão vívida e translúcida
retocar às escondidas
as fotografias das campas
compreender a milagrosa dança dos nenúfares desertores
e transplantá-los da imagem para os baldios do cérebro
lubrificar os vasos e vistoriar
vez sim vez não
o coração
✫
ÁRIA
o anjo ajoelhado protege o filho a dormir no outro lado
― visível pelo óleo
milagre da partitura celestial pingado
no que é mundano
resignado parte à aventura em território entorpecido
e é quando se defronta com o borrão musical
da rádio ― o turbilhão electromagnético
aliado a preocupações sustentadas
pelo remorso
soa a melodia e cintila
o anjo despede-se do filho e da mecânica global
ascende continuamente ajoelhado ― o óleo
superlativo áurico da jornada encomendada
apresenta-o ao mundo
✫
IN EXTREMIS
quanto ao arlequim, pouco mais há a consentir
rodar-lhe, porque não, as pupilas inchadas de música
dois pratos contrabalançados neste festim milenar
corroer-lhe recordações sabotando as luzes
tingir-lhe irremediavelmente as roupas
que é boa maneira de fazer sangrar a plateia
fechá-lo dentro de si próprio ― dar-lhe luz baça
PSICOCLAUSTROFONIA
espreitar o universo e vê-lo obscuro
intensamente desfocado ― os habitantes dos planetas defecam
atmosferas de gás, gritam pequenez
cada um vê-se como um asteróide negro desabitado
: o processo de desertificação é interior
e fruto do olho humano
ângulo vermelho
: entra a rainha do submundo
uma labareda de cabelos ruivos
um vestido de pólipos folhosos e fumegantes
[rubro contra púrpura]
momentos antes da prédica no púlpito do sacrário venal
intensifica-se o desfile, o crepitar da coroa
― a assembleia inicia a descompressão da pepita
alguma poeira cósmica, dialectos absurdos
ângulo intersectado ― a linha fúnebre, bastarda
a luz azul, um rosto frio
visão de cima: um palácio de tijolo sanguíneo
velado por mutantes da palavra obscura
suplício dos guerreiros infelizes
no interior
em câmara resguardada de festejos mundanos
e diálogos triviais
a laranja velha repousa no luxuoso caixão do mundo
seus horrendos poros tossem vermes gordos
embriões da desgraça, outrora vísceras em papa
lembrança da perpendicularidade
a todos os olhos nua
fria
e inalterável
comecemos então
o novíssimo estratagema da criação: células
prestes a asfixiarem
num quarto de vidro gravemente embaciado
― vapor de melaço
saído das entranhas do cientista
escapando à anatomia do vergonhoso cérebro
rasga-se
com a maior unha do corpo
o útero do pensamento mais escondido
dito recalcado ― espera-se muco
e algum sangue podre
esporadicamente a ciência visita o campo da adivinhação
― quando o cientista, um pouco bruxo, aguça a lente
para destrinçar emaranhados colossais da massa a analisar
entra num fino véu
mesclado de nácar e fel
consumando-se o milagre das sete abóbadas
contentem-se os artesãos da ciência
com aspectos elementares da laranja morta
[velha rainha]
pois nunca desvendarão trilhos que
alguma vez
os cavalos do ácido traçaram
✫
ponto a ponto o espaço é desvendado pelo clarão
aquilo que é iluminado e curvo
porque a luz resguarda órbitas fenomenais
e os corpos alcançam significados pelo toque da iluminação
unos e tremendamente sós ― no santuário
as velas choram um leite puro
quente, inocentemente amamentam
os seres que se movimentam na escuridão
ângulo verde
: o baile funesto de saprófitas, crescente miséria dos povos
ejaculação política num colorido envenenado
terreno inóspito, sem dúvida, e anda o indivíduo
a treinar as mãos na saca de grãos vinda do desespero
pobre coitado ― ainda se aleija no veneno
o pão que a sociedade reveste de cívico no falar humano
cheio de pústulas e de magnetismo perturbador
simboliza a sucessão ininterrupta de blocos
imprevisíveis no âmago
mas capazes de gerarem um buraco negro
e criarem a falsa ilusão de consumarem nobre ofício:
o de esculpirem identidades
procura e oferta, hierarquias no esvair da matéria
e um amor de cinza acabado nuns lábios por arder
somente um incorruptível prodígio na visão da criança
num êxtase raro
e talvez irrepetível na sua vida
uma família numerosa reunida à mesa
empenhada a comer frutos secos no epílogo da consoada:
nozes, avelãs, amêndoas
maxilares, mandíbulas, dentes
ranger de cascas
o ruir dos tecidos
vultos compenetrados
a música orgânica
ritual de dentro
― o silêncio do arvoredo linguístico
✫
vectores do sangue lardeados pelo som da constrição
de paredes
partículas arrancadas ao domínio obscuro
― a força inerte
beleza do betão enquanto paisagem
ângulo violeta
: a mulher desconstruída em triângulos
desolada atravessa oblíquas dimensões do horror
chão em pesadelo
abismo de porta em porta
o som bastante sujo
a mulher desdobrada no que de seu perde
em truculentos rearranjos
figurações hediondas do amianto
sempre hesitante em qualquer maçaneta-chifre à sua frente
uma casa desarmada em flor bebe o arco-íris
pela aorta
engole fraccionadamente a mulher
que contrariada respira ar de brita
nariz contra o espelho ― foz errada
beijar inverso
: planos côncavos deterioram outros convexos
frivolidade das arestas, a mulher invertida
a alienar uma epiderme mais espessa
que de estranha deixa corroê-la
pela borrasca intestinal
febre do stress
anjo-reflexo
faminta regressão hipnótica
: a máscara consubstancia-se
tal a fúria calcária
e incha, incha até subsequente fractura
o grito ― a mulher reconstrói-se
ergue-se no nervo óptico
sai da agrura do humor vítreo para o alívio do cristalino
insinua-se na pupila
floresce na íris
alumia o humor aquoso
desarma a córnea
vê
✫
a alma reposiciona-se na qualidade de diafragma
espera víveres do holofote
ângulo amarelo
: os mortos reconhecem-se na difusa luz
[centelha do suspiro]
unem os ossos no descampado
dão as mãos
[súplica do húmus tenro]
circundam os que vivem, cotejam poder a cânticos
― cadáveres à solta na garganta dos vivos
da ceifa ficaram esqueletos para herdeiros instrumentarem
à terra o fundo da circuncisão maior
dádiva completa de passagem em passagem
um diálogo com a legítima mãe
um forno húmido de crispações
suplantado pela piscina do ódio, lago de sombras
o ermo alimenta-se de episódios de amor mal resolvido
um horto de flores a haver
: girassóis transfigurados
tulipas descomunais albergando sanguessugas nas corolas
glicínias produtoras de minúsculos dardos venenosos
magnólias com ventosas musculadas
dálias carnívoras
o reinado da reestruturada dinâmica de fluxos
: sangue a subir o xilema
vómito a descer o floema
plantas com grandes olhos
o pesadelo, endereço dos mortos
― rótulas vegetais impulsionam canos
caules grossos
ligados ao contentor de açúcar
pólen saturado que as veias pingam
caroços químicos invasores
vírgulas no genoma ― a alma dorme, consente
a derradeira posição do holofote
dentro da raiva que rege a estratificação do solo
a consciência do petróleo
o cheiro nauseabundo da abundância caótica
convertido em suor na espécie molestada
e os mortos brincam às marionetas com as plantas mutantes
ensimesmados no azar que lhes convêm
cumprem na entropia o teatro do ódio, a crueldade cénica
uma vida já extinta
✫
o coração sobrevém embriagado sob o tronco do qual sairá
uma guitarra que arrematando as cordas
o aprisionará
ângulo roxo
: a cobra enrodilhada no lagar
pariu treze filhas
e na expectativa da forquilha próxima
revê a superfície luzidia de todos os bagos de uva
janelas dum ciclo a confessar efemeridade
carisma do vinho a cair no copo, o descerrar
das escamas
os frutos falam de amor, delírios de quem
os come ― o tempo diz do néctar que neles habita
tingidas pela chuva as sedas
desmaiam nas imagens, enfraquecem o vinho
o afago
aos glóbulos vivos em ânsia despropositada
porque há arte em acender polpas
e muito se aprenderia se possível fosse
auscultar os mortos
na loucura de cada gomo ― eterna espera
sedutora glicose escondida nas abóbadas do fruto
pulsar dos vértices, arquitectura do palato
atento
morrer e ressuscitar num segundo
brincadeira de língua
e quando a guitarra eleva o etanol
a voz tropeça na alegria aninhada nas veias
nesse encanto
o miocárdio entende porque
cantam as maçãs, as peras, as laranjas
nos pomares
― pulmões inundados pelo sumo
jorro feliz
basta uma garganta no platinado das sombras
uma fogueira que arda o mosto
[descuidado pela cobra subtraída ao lagar]
basta uma garganta que se implante numa tarde visionária
mordida pela embriaguez da saudade
e assim se estanca a solidão na cratera aberta
pela volatilidade das cordas, pelo casamento da voz
com a música
✫
dorsal versus ventral
[desconforto]
dúvida irascível na escolha do posicionamento
estrebuchar no solo frio da cerâmica
superfície vertical individualizada
irregularmente cilíndrica, ideal para abandonar bifurcações
e dar azo a vontades de pé
comprometendo caprichosamente directivas do pensamento
― um refúgio tridimensional, os pés no caminho frágil
ângulo negro
: de lambidela em lambidela
uma família de gatos negros subjugada pela ampulheta
testemunha o êxtase do tacto num abrir de telhas ― o tecto
desabrocha na noite
as madeiras rangem recados
códigos sobressaltados do relâmpago
um único feixe vindo do berço perpetua-se
pelo contínuo estilhaçar de flashes
génese dum monólogo invariavelmente audível
os gatos agridem a radiação na explosão dos nós
rosnam enfraquecidos pela luz que lhes fere os olhos
exaustos adormecem no gás da almofada
no centro da espiral de fumo
dança a trança de pêlos negros
[oferenda dos bruxos]
hoje é sexta-feira treze
cumprem-se os votos da sacerdotisa virgem
a lua entregue ao bel-prazer dos gatos virtuais
garras a escavarem um ecrã
― procurar no berço a ponta do feixe
onde residem significados do arbítrio
camuflados pela cor electromagnética dos sons
a ampulheta tosse
[rio de pânico subindo a tristeza refractada na cor]
uma mão divina colhe miados no labirinto impaciente
una pulsação da família em coro desprotegida
e o tempo escorre ainda mais frenético
os gatos petrificam-se um a um
― despedem-se do rosto frio e branco da lua
que aperta, entre lágrimas, o seu xaile
✫
um alfabeto de saliva escorre para um mar inconfessável
[um beijo demorado]
nebulosas encabeçam ruínas de corpos
letras feridas nos membros em sobressalto
ângulo azul
: pregadas à frieza dos acontecimentos
as mãos suam
embevecidas no volante
tão terrenas que irrepreensíveis estrangulam a estrada
água a pecar na renúncia
página a página a culpa e a traição
: esgrima entre as duas faces
[espelhos]
outras duas faces
choros repetidos
borrão nos rostos
― pneus a pisarem o traço contínuo
[a paixão]
uma condução perigosa
à distância um esgar delicado, oca feição da água
adentro uma amálgama febricitante de impressões
relâmpagos cínicos
ou
ilegibilidade das bocas
haverá quem encadeie soluços, sobras líquidas da memória
brindando a uma maresia citadina
e a salvo
os últimos fragmentos irredutíveis da precipitação
espermatozóides electrocutados na vulva
sempiternamente suspensos na matriz coloidal
: um crânio estéril
vivências estrondeiam quilómetro a quilómetro
e a maresia é desmascarada
ascendem à consciência os prejuízos
intenso encontro com a circe poluente
― unhas aguçadas lavram a pele
toda a fisionomia chora como uma ilha
adiando a colisão no aquário
remorso
ainda de dor uns olhos transfigurados
[fonte carnívora]
cobram esperma e sangue, último almoço
✫
mergulho aprumado, a heroicidade
branca inocência em não justificar diademas do sacrifício
em não perfilhar as várias transmutações da carne
no intuito de mais tarde dissecá-las
em ângulos gordos a emurchecerem
à passagem do brilho indeciso do ponteiro
ângulo púrpura
: a arena
lar de afectos animalescos
recinto do mais trabalhado instinto
onde irrompe um fulgor de sangue em transição
que borbota do carvão ancestral
e tilinta fome
submissos ao pulsar da areia amarelada
os amantes ocupam hesitantes os seus lugares
― um mirabolante tabuleiro de xadrez
[chamariz sexual]
um jogo de regras quebradas
colunas frágeis conexas à miríade de poros
nevroticamente tensas
estudam no mapa epidérmico a cíclica migração dos fluidos
sombras que ameaçam subterfúgios protegidos
os amantes aprenderam a burlar a púrpura condescendente
emanada da carga mitológica que alumia a história
passado reforçado por arestas de exausta verosimilitude
na arena
[expansível palco da libido]
hienas escarvam enlouquecidas pelo amor
encenam sete minutos de sucção
sublimando expoentes limítrofes da carne
planeiam ao pormenor
a geometria única de lanhos a infligir à jugular
assim o desespero das criaturas
o mais alto sacrifício na desonra da dignidade
mescladas as várias tonalidades do sangue
que elas ainda não compreendem
ao de leve o vento na areia manchada
brisa dúbia da sentimentalidade
turbilhão de tubos ao redor da cama no subterfúgio
covil à mercê da união mordaz de cateteres
corpo trémulo ciente da sua cumplicidade
na ignóbil cilada
ao espectador
desdobra-se sanguinário o origami poligonal
porque o medo escurece a carnalidade
e os infames amantes acabam por se desencontrarem
nos corredores
✫
a biologia conserva o segredo insondável
[nuvens densamente armadilhadas]
o líquido espesso que ressalva o erro, a vida
no planeta que a amnésia sustenta
mãos atadas, adesivo na boca, narinas irritadas
e ainda a surdez indissolúvel, a cegueira impermeável
― a memória dum povo em contínuo reset
ângulo branco
: meninos brincam na poeira que lhes é ditada
amplificam o ventre preocupado das mães
― chutam a orelha
há pouco atirada aos cães
triste infinitamente triste
o poderio podre dos senhores da guerra
a mama seca
verdade sobre o azul, asfixia do ouro
em plástico doentio
«ah, a baioneta»
fica sempre bem com a farda
«guerra é coragem, honra e bravura»
suor, sangue e ranho para limpar no lado b da bandeira nacional
«ah, o soldado desconhecido
ainda a apanhar frio nalguma rotunda»
carne para canhão
«mas um canhão come carne?»
sim, e da boa
ouvi dizer na corola machucada dum sonho
em que vi bailar a baioneta no campo de batalha
― vestida de noiva dançava com os órfãos
e com as viúvas
dentro de momentos virá a boa sirene inquietar os corações
os seios da sereníssima mãe pingam na bainha do tempo
― lágrimas umbilicais
a carta mais triste do mundo, última canção
: louca sirene
diz-me quem enxugará as lágrimas
ao soluçante farol das pequenas praias
esse menino uivante no raiar da escadaria
diz-me senhora mãe
tantos filhos como gemidos
e como magoa este torpor
madre soror
venha o espaço num balbucio dissolver o que de nós sobejou
dor e mais dor a fervilhar em bica
ó madre dolor que me escutas
de nós sobejou o enigma, o umbigo a roçar
a noção de lugar ― esta gólgota ardente
esta gólgota morrente