O Príncipe Nu

[Palimage, 2002]




Uma certa quantidade de gente à procura

de gente à procura duma certa quantidade


Mário Cesariny




CHAMAMENTO


levanta-te do chão

morde as palavras soltas

prostra-te agora

e ajoelhado agarra toda a terra

até sentires a lama a causticar os ossos


pulveriza as máscaras de calcário impostas

e erguendo o rosto caminha em direcção

à silhueta de lume que pulsa

entre os ramos da árvore sibilina

CAIS


de volta ao cais

onde outro beber sobe

a colina de água e cal volátil


branca face do disfarce a desmantelar


de volta ao cais

onde gaivotas sortidas agitam

a maresia com lustre oco sob as palavras


o navio ao longe e o náufrago em terra


de volta ao cais

onde a névoa sanguinária precipita

o saudoso laranja estilhaçado


cravo em surdina recordando o beijo árido


de volta ao cais

onde o retorno monótono se repete

como uivo latinizado para recreio inócuo


a lepra paira ainda sobre o jazigo inconcluso

OBJECTIVA


ao António de Abreu Freire


sentado movo com o olhar

a fileira inquieta

cedendo na escrita a esmagadora opulência

e um misticismo paira nos camuflados âmagos

e tudo mais se corrompe

não havendo janela acesa no subúrbio sobrestimado

PARTO TÉRREO


ferve o tóxico da palavra

a morar morta na língua

o sono mutila o corpo

e as tropas da letargia

irrompem sombriamente


embriões ensanguentados

rasgam o ventre da terra


vampiros de bibe choram esfomeados

BANQUETE


o fétido aroma convoca-os


ao chegarem reúnem-se categoricamente

e palreiam altivos sobre futilidades


halo brusco após a incisão

onde deixar o berço das mágoas?


dúvidas e calafrios pendem na varanda

e as jovens morrem em cada ciclo


na boca oscilam dentes

a mortalha serve de guardanapo


óvulos para a sobremesa

convida honrado o castrado

em alienação controversa

PAPEL QUÍMICO EM MOVIMENTO


a folha dança sozinha ao vento

enquanto frágeis vampiros catalogados

bebem saliva com limão demolhado em sangue

e não se dignam a arranjar morada


traindo a gula da esfera em movimento

fecham-se portas pesadas que verticais hostilizam

com dilema acabrunhado

os cadáveres móveis em cada cerco


circo a lápis este ciclo

rendido a adjectivos falaciosos

mas a seiva corre viva a ferver

espumando nas margens do diálogo

SETE VACAS MAGRAS


ao Daniel

meu irmão


as caveiras plantadas no deserto

miserável espectro falacioso do muco cerebral

e a boca aduladora suja o lenço emprestado

com o carvão negro dos seios de cada dia


a cinza sacudida no beijo

e o sabor do sabão intoxica

quando na ebúrnea varanda

chora a esposa do operário


a balouçar no guindaste

percebo agora o orvalhar do betão

e asseguro que beberei essas lágrimas cínzeas

apenas para morrer à sede


a carne purpúrea apodrece

e alguém funga absorto com paredes

a limitarem-lhe o oxigénio

CENOTÁFIO DE ALCOVA


olho posto no sabre detido com assombro

de janela em janela o cansaço retirado da flanela

era suposto um acusa-pilatos sarapintado morrer

neste festim de hienas


a calvície da montanha entra pela janela aberta

o eco rouco intimida quem teme à luz do candeeiro


no sonolento corpo de palha mastigada

pelo sol de outros

vislumbram-se pequenas esferas visuais

e nos lábios morre um verso dum poeta empoeirado

há muito esquecido na mesa de cabeceira

ÓCIO


perdido neste ócio levanto-me enrascado

ergue-se sóbrio este mosteiro ridículo


um país de saliva na fronte

e o discurso dum fantasma

irrompe da madrugada


esse fantasma que é fantasma dum outro

não se dá conta do incêndio que dissipa lenta

e subtilmente

as suas vestes de linho


perdido neste ócio deito-me como fúria sem papel

e monto entretido com contas assimétricas

o rosário febril

À NOSSA


a pequena embarcação navega no pó

de nada ou tudo foge e nisto o semblante da maré

alterado por sufrágio ou acusação


o pólen deposita-se intacto

no nariz irregular do mostrengo anunciado


a bebida ainda na mesa

ranho de criança e escarro de adulto homogeneizados

luminosa bebida exposta na mesa


ao passado e ao futuro

diz um velho antes de tragar a bebida

SÁBADO


desenho um pé na agrura matinal dum colapso

auscultando tremores do piano biológico

e ritmicamente desbravo a rua

retrocedendo no plano debuxado da memória


o rente esvoaçar de pessoas ou pares variados

cicatriza por instantes a iminente ferida ressentida

com astúcia musical a perfilhar como luminoso baque


pessoa entre gente pessoa entre pessoas

ou

o brilho dum objecto pendendo simples na pessoa

ou

a pessoa pendendo sobre si transfigurando o espelho

natureza morta que ressuscita

morrendo novamente nos lábios inchados da pessoa


festeja-se o sábado sabujo

à noite florescem flores negras

e o choro lento sem lágrimas espessas reduz

a energia solar do abraço esboçado

com os olhos baços

MURAL


rompendo camadas da legião açucarada

regresso comprometido com a lâmina

metal ausente do ablaqueado senso

e do lado ferido exploro minerais adventícios

como passatempo que corrói o tempo de olhar

reinventando um outro tempo a tempo de recusar


deslizo e finco-me

ao mural

COMBOIO


«o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe

regressar. reduz os continentes a distâncias

mentais.»


Al Berto


um túnel de fumo como opção

mas à frente a passadeira móvel

reacendendo o enrubescimento do silêncio


o braço nu esticado em brasa

e em torno

a lacuna gélida pela acumulação de ar frio

do constante debulhar de espigas metálicas


ninhos de cobras afloram como cérebros despidos

ourejando todo o objecto aproximado

e da janela inventada a inevitável aragem que contrai

os músculos esqueléticos

reavendo a penúria do medo enquanto revolta


daqui ninguém antevê a insipiência lúgubre

da infinita gesticulação mental

saboreia-se antes a inocuidade da peste entranhada


o anfitrião recebe desdenhoso os convidados

com um banquete de gases funéreos


daqui ninguém houve ainda sem que inale

a presença do parasita da ausência

daqui assiste-se ao repentino jardim de lâmpadas

dum pálido amarelo de cansaço

e ao manso rebanho de lobos esbranquiçados


a ferida da cidade ainda exposta

dela os retalhos orgânicos globulares

crisálidas de feixes intermitentes

futuros brancos peixes de sal


não se regressa aonde não se esteve

VATICÍNIO


à Sandrine


imagina um ventre

obscuro por si só e dormente

em cada metade cíclica da ausência


imagina inúmeros planos transversais

iluminando os objectos de seda

que ardem ao contacto das mãos


imagina o incolor abraço

entre ádvenas carcaças

em contínua posse


imagina uma estranha paisagem de orquídeas

onde pulmões se dispersam

desflorando a caixa torácica


há-de chegar um ímpio de rosto assombrado

segurando cismático com a mão direita

uma fotografia amarelecida nos cantos

PRAIA


«Rouler aux blessures, par l’air lassant et la mer; aux supplices,

par le silence des eaux et de l’air meurtriers; aux tortures qui rient,

dans leur silence atrocement houleux.»


Arthur Rimbaud


retorno do mar

retorno sem adorno e choro

as dunas não o consolam

sagas revertidas com corações desviados

a pulsarem mortos


a seara longe ou o medo entorpecido

as espigas apodrecem devagar


é dum azul aleivoso este singelo manto limpo

uno em cada soluço oportuno

e a voz balança áspera

falando da eminente insígnia paterna

corrigindo glosas amacia horrores do mito


guardam-se salvas a amarinharem na garganta

com naufrágio lento da sombra dual


resta a palavra espuma nos lábios abrindo a boca

vê-se o mar diminuto

e percorrendo-o como baldio consagrado

nega-se o ramalhete do augúrio enfático


na praia o dia rompe-se

e a perniciosa saliva salgada invade o corpo

endurecendo os ossos


a onda

metal maleável com aura sinfónica

escultura viva que se declina tímida quando olhada

é vítima do suspiro congeminado como súmula

dos dias secos

CANDELÁRIA


ao Cristino Cortes

nada há a dormir no covil

senão o fingimento hipócrita

e a hora decalca o esmorecer pontual

que a real ganância há muito pontilhou


o dragão de asma azul acordou

e o centro pulsa fora cedendo

a sarcasmos no instante fulcral

da mordomia perversa do açor


renasce o dia e as rochas periféricas suam

à passagem da virgem vestida de branco

O PRÍNCIPE NU


o denegrido príncipe

alojado neste país de luxúria

onde o que contamina é prato principal

regressa ao cais cardinal traçado a carvão


crisálidas roçam-se comprometidas

com múltiplos silêncios diferenciados


por onde passa luminoso

este inferno tornado gente?


como pode o fedor humano causar saudade?


o fogo cruza-se removendo a água dos ossos

e a circe surge revestida de plumas

cuspindo o seu veneno embriagante

A GREAT MAN IN HIS PRIDE


“A great man in his pride

Confronting murderous men

Casts derision upon

Supersession of breath;

He knows death to the bone -

Man has created death.”


W. B. Yeats


a morte nasceu da visão petulante do homem

temor borbulhando na pele de hediondez gradual


inventor que não sabe o que inventa

é um subúrbio da natureza morta


há uma primorosa faca que como aragem ensina

o dever a educar por cortesia ou por tão pouco


a carne em putrefacção inicia o sono bajulado

e escamas amontoam-se mantendo a transparência


invento inventado por eventual invento falhado

assim se vê o homem afogado na sua altivez

ULISSES


à Natércia Oliveira


ao regressar ergue o rosto com júbilo

mas prostra-se à soberana eminência

e todo o relicário dos árduos anos

dissolve-se nos boatos antigos ainda vivos


a distância causa maior dor na memória

A ARTE DA FUGA


é admirável a arte da fuga que o homem

experimenta em si próprio

quantos labirintos de palavras?

quantos esconderijos fúteis?

à noite abandona a sua casa de cuspo e asnices

para depois viajar intermitentemente

na frágil bolha de sabão extraída dos sonhos


explode sorrindo

explode matando

explode abrindo o antro coronário

explode chorando

é estranho o que carrega nas veias

não importa nada importa no entanto dói

saber da porta

fechada

aparentemente encostada

fechada

aparentemente fácil de escancarar

fechada

e a chave ainda na mão

como frio enjoo metálico elementar


uma pirâmide cerâmica equilibrada na cabeça

a chave ainda numa das mãos

a outra pendendo morta

a roupa com singulares remendos


o homem visto ao espelho

ao espelho nunca visto embora sempre pressentido

numa paisagem num lugar num devaneio

na cama enquanto acidamente acordado


é estranho o que carrega nas veias:

talvez um amontoado de cadáveres esquisitos

toldando toda e qualquer visão próspera

FOLHA CAÍDA


ninguém visita os rostos desfigurados

estampados nas páginas inferiores

das folhas secas amontoadas

na sombra do velho castanheiro


ainda hoje vi na mesa cruzes feitas de flores

violentadas em círculo

e o pó de dedos de porcelana que por lá passaram


outra ala escolheste enquanto bebeste o arsénico

dissipado aquando a erupção do vulcão ocular


medusas infernais visitar-te-ão

e com seus chifres aguçados encurralar-te-ão

até confessares


ver-te-ei com os dentes atolados na lama

INCÊNDIO


à Carla Rodrigues


a cabeça arde

ouço o estrépito acelerado das abelhas mortas

neste outono de fungos letais


imundo delito regular tido

como supra-sumo código

e as mãos tão grandes sobre a cabeça

mas a rampa engole-me só de a olhar

com esperma áqueo a escorrer


a água apaga fogos menores

nunca a combustão do ser em dúvida


a cabeça arde

ardo

incendeio tudo o que toco


a cabeça suada derrete os dedos

o gladíolo esbranquiçado na jarra

bebe a única água disponível

vendo-me a arder no aquário de fogo


mas

a água apaga fogos menores

ZÉNITE


de nada em nada por nada

tensão imprecisa na rede anexa

o compromisso estendido sob o nó

submerso no roseiral baço

que ondula mecânico subjugado

pela cerca compacta de estiletes metálicos


em cada lenho em cada túmulo

a espinha inscreve-se em hélice

atordoando todos os corpos

e o som vibrante como vazio

enche o cálice soletrado

por cada boca por cada ser


enquanto a monotonia perfazer a soma

do estranho devolver cíclico das águas

separadas prematuramente

haverá unicidade na diferença


enquanto o ser se vir

como vassalo sistemático da sua própria angústia

haverá sempre um outono húmido reservado

ESTRANGEIRO ESTÓICO EM SUA CASA


orações de refugiados a caminho

na noite limpa dos eremitérios


sombrios círculos espelham o ar aguado

e no íntimo ressurgimento

o calado sopro luminoso da lua

a toupeira gulosa a surgir na terra lavrada

o pastor airoso contando o seu rebanho


a insígnia é consumida fria

para posterior alegoria sáfica dos cristais


intacta é a pele dos subúrbios

e a rir opõe-se o cardume

tomando posse da superfície movediça


esta é a agonia dita sublime

no fraco desnudado de sábia postura

A CERTEZA DUM NOME


o que se inventa

em dias de penumbra

tem a sua lógica marginal


assiste-se ao prelúdio raquítico

à dança dos sinos bélicos


a certeza dum nome?


vestes lançadas

ao vazio

os olhos possuídos

pelo ódio


solta-se a língua ladina


compra-me a boca

eu compro-te os ouvidos


recuso agora

o contágio sedutor da boca

ósculo omitido


recuso o aperto

o nó invisível

orientado para a asfixia


de

sin

te

gro-

-me ao abortares a fala


serve-me com o teu lado

neste sítio calafrio

morde-me as pálpebras

abre-me o rosto


sentes bater o coração?

FEIXE DE CONTRIÇÃO


o muro interpela a sombra das estepes

a descer o farfalhento caule de amianto

e um surro avança no corpo nu do dia


à queima-roupa

a geometria triangular da ave ferida

intersecta-me pensativo

e a labareda incha orvalhando no ápice


à tarde uma luz intensamente oblíqua

atinge a superfície da cómoda

reanimando os estiletes

de diversas flores que dissequei


cismático relembro a poeira de beijos

o suor imundo da noite em desatino

ATHENA


tríptico vento passeando entre as colunas

Athena regressou e a mesa abandonada morta

um caos amargo de apodrecimento vário:

o vinho azedado com aroma a desonra e dolo

o pão esventrado falecendo em cada cor do bolor


Athena derrotada e ninguém surge para seu consolo

INVERNO


vinco o peito no parapeito nu

esmurro a parede que me ampara

e o argumento ainda agarrado à língua


lá fora a geada tudo queima

os tons desta sala agonizante vestiram-se

de púrpura

e os sons do meu corpo já não têm cor


abandonaram-me pelo cinzento murmúrio

das palavras

ou talvez pelo eco do alumínio vibrante

que povoa estes dias brindo com o enxofre

arrecadado nas já longínquas chuvas


os répteis não me largam e agora

o quarto é um cubo de gelo

e nem mesmo os poemas o derretem

ACOLÁ DO QUE AQUI MORRE


acolá tanto se lhe deu como jamais lhe irá dar

é esta a glória subversiva dum jorro quente

paraíso minúsculo do albatroz construído peça a peça

com animalesca imaginação de risco a perpassar

o sonâmbulo pano que vai apagando arabescos

de pó e ícones fulcrais gravados a pólen de anjo


acolá algures nas profundezas dum rio raso

despovoado pela concreta animalidade bocal

que aboca os peixes desamparados em frases ocas

sombras irreais a subsistirem de medusas loucas


acolá nada se fez igual ao que se aparenta

e se desloca em perseguição pois é ignóbil

a razão que raia nos meatos por nós criados


acolá creio que acolá para lá do onde

acolá do que aqui morre

RESCALDO


o demo insólito no derrame

a curva na cama

e deste suplício carnívoro

sabe-se o que não sabe na boca


a seda pegajosa

com escamas do peixe fétido

lentamente mastigadas por dedos


o saibro imprimido em cada lábio

ao ecoar a oração entrecortada

no parto em ebulição


depois a hemorragia

reatando o lume

ao ponto de reluzirem crepúsculos

e da massa inerte informe

um tumulto cala o silêncio

ao separar o fogo do ouro


as mãos açambarcam o rosto

as pálpebras caem

mas a azia reanima

espectros da sangria objectal