O Livro Pulmonado

[Edições Esgotadas, 2018]




[sonambulismo : uma tetralogia]




O Livro Pulmonado






acolhe-me. sou um grito

um ovo desdito com

ovos estranhos dentro.

quero fossilizar-me

no texto ― não sei

que pétalas sanguíneas

poderei oferecer em pedra

e silêncio.

quero falar-te entre

a fissura de luz

num barco digno da sombra

pulmonar, medindo

o escuro na antecâmara

duma alma sem força

nem razão.

amputado de filosofia

com crua cruz de tinta na testa

venho aqui

gorgolejar solidão.

sobrevive-se à solidão

habitando a solidão dos outros

mastiguei a partir dos livros

e da insónia, embora

tal pensamento habite

um mundo de cartão.

seja esta voz vértebra

dum esqueleto de escrita novo

à procura do abismo que

acorde os fetos

e lhes dê de comer.

sei-te livro

pairando na tolhida

toalha da noite

casulo próprio, saliva azul

e liberdade; sei-te

em todos os ângulos

nos meus órgãos e fluidos

sem te folhear.

deixei de acreditar

nas páginas; a escrita é o ardil

por excelência ―

acredito nos livros como lugares

transeuntes no sangue

enquanto legente atento

de vidas, biografias interrompidas

por sílabas de espaço e erosão.

busco o cristal-d'água puro

dado no som brusco

de palavras emudecidas

corporais, intransmissíveis.

não se abandona a natureza

nunca, o código permanece intacto

numa espiral sóbria da girândola

que se quer flor-de-carne

de cor incerta, intermitente, dúbia

não se abandona nunca a natureza.

ver é oxigénio

mesmo sem imagem

ou condição ou fisiologia porque

ver e olhar poderão ter mil formas

tatuadas no lençol do escuro

centenas de fórmulas rebuscadas

mas sempre oxigénio

para voar no vitral

para mergulhar e nadar no aquário;

alimentos dos seres

de ar e água

terra viva escrita em cada dia.






chove dentro do livro

uma chuva benigna

a cortar o calor extremo, alegria

torrencialidade de frases longas

que as mais curtas somente remendam

e consolidam o esqueleto verbal.

a água emocional hidrata a humanidade

é, em princípio, o sangue do livro.

acontecimentos anotados, acidentes

vida que se apresenta a cada pessoa

desde o primeiro momento.

ovo, gota de orvalho ou resina

casulo ― nave experimental

fome de conhecimento dita curiosidade

caminho para o feixe energético

que rege a biodiversidade

a diferença salpicadora do mundo.

e então a nervura mostra a passagem

o rio todo ele vidrado na memória

cristalizado no curso loquaz da ideia

floreada em cada capítulo

conjuntando o passado e o futuro

o presente.






pode um pulmão eclodir

da nuvem mais longínqua

quão inocente

prece e vontade

na amplitude honesta

pulmão miudinho a crescer lentamente

esperança subtil no arcaboiço

respiração fértil

quasi ampulheta de midas

pulmão inconcluso na lagoa paradisíaca

um oásis alquímico ―

espero há muito

por esse pulmão-semente

que do ar caísse no livro e pegasse

por instinto de sobrevivência.

sinto ou pressinto, suspeito feliz

que talvez tenha já acontecido

por entre o barulho destas páginas.

um processo calado de membranas

em que o rosto é síncope

e foge da semântica para o fogo

irmão da água no compêndio do musgo

para o som tribal da pele

que contagia a voz do livro

disseminando em cada legente

enquanto corpo inteiro das esferas

num delírio de folheamento intimista

com folhagem de floresta inteira

num bago de espaço.

enxotar os livros em clausura

nas bibliotecas ― nobre profissão ―

precipitá-los para a liberdade física.

lembro-me da primeira vez

em que olhei o livro

como sendo um organismo vivo;

o mais fascinante é o modo como ele

se comporta nas mãos

como reage a estímulos do leitor

o ser esperante

inquieto na folha de dedos

a caminhar nas sobras de papel

dos que murmuram biografias

esperando a esperança

metamorfoseada em pessoa

a conhecer pelo espelho vivo, o livro

estrebuchando sempre nas mãos

do esperante.

o lugar assoma ao princípio das eras

edifícios de lombadas erigidos

no grande intestino ― vê o esperante

o seu próprio interior

ampliado na ânsia de sorver

os sucos do mundo.

por mais cartas que a lua escreva ao sol

os dias passam

selos solares no passaporte do sonhador

esperante a braços

com a literatura em catadupa

ouvindo a canção hipnotizante, nocturna

envoltório do cristal-d'água

mas as sombras envelhecem com a carne

e sobretudo, com a pele.

a pele integra o livro aberto

das comunidades, o texto escrito

tatuado ― em movimento.

pequenos ossos as palavras

estalos de boca, estalos de corpo

assumpção reiterada da linguagem

estropiada linguagem

de civilização em civilização

pequenas moedas as palavras

mercantilismo verbal da famigerada

solidão ― não sobram

adjectivos elogiosos na farsa

que é a linguagem

dança oculta de hiatos emocionais

cena a cena, página a página

construindo o pseudolivro

dos profetas que se encostam

a árvores sem copa, inférteis.

a magia dos significados

é nenhuma; o ruído é que significa

enquanto antónimo e significante

dicotomia clássica a ajudar

esta perfídia. o toque ― mágico ―

a audácia do prolongamento

de ser e estar

ainda dentro do cristal-d'água

única premissa interessante na génese

do que é ser livro

acidente fortuito das esferas, biológico

por extravasamento cerebral na fantasia

tornada real, um real a desconstruir

para o ver realmente

pela primeira vez, ficticiamente.







como desviar a dor-a-sós com o livro?

é vital a dor orgânica

característica do ser vivente.

se concentramo-nos numa gota de tempo

minuto curvilíneo, minuto de âmbar

vemos a multíplice teia de arteríolas

autêntico globo de contar

como diria maria gabriela llansol.

nessa gota de tempo está espelhada

toda a dor do mundo

porque ela se repete como

a gota de orvalho na planta

existe uma ligação com os processos

da morte, a morte sublime da lentidão.

a dor datada ainda tem mais força

variável repercutida na coloração da gota

pendendo nos olhares dos viventes.

um intrincado jogo de silêncios frágeis

para quem arrisca poesia numa cura.

a dor, incurável porque vida.

pela dor se mede a intensidade

de relações pessoais, interpessoais

e objectais. medimos ensimesmados

entre o atrito do mundo.

como então desviar a dor-a-sós

com o livro? simples,

impregnando-a no livro.






corro e percorro o pavilhão auditivo

branco e vermelho, centro expansivo

e a folha violácea flutua

transparente quilha do amor

[confuso esterno calcado]

sim, a folha violácea que

é a página de febre

dum livro perdido ― magoam,

as frases magoam

espectros compostos de cavalo e espada

rasgando a névoa dócil da esperança

pisando os juncos ao sono dos amantes

magoam porque precisam de magoar.

a haver um antídoto para a maldade

entre especiarias abundarão

lágrimas de dentro

vítreo cárneo fundo guardado

por unicórnios.

falar é uma ilha, não tenhamos

ilusões; e viver, um processo

físico-químico

cheio de trincheiras e labirintos.

o amor, quando existe, só ideia

espasmos de flor efémera

cor, muita cor, também húmus

nunca justificado

por mais livros que escrevesse

raúl brandão ― falar é uma ilha

ou colónia autónoma

coberta de favores.

surpreso, o dente-de-leão

vagueia branco na aragem vizinha

dum mundo de lampejos estranhos;

a sua memória é refeita

a cada segundo

o que equivale a não ter memória

nem regresso. escrever é não regressar

ferindo caminhos que abrem

novos prismas do horizonte

novíssimos mundos

de memórias refeitas, quando

aldous huxley desponta canibalizado

na hipocrisia literária das bocas.

o barulho dói

nas palavras e nos gestos ―

constitui texto agressivo.

nem sempre encontramos

o trilho das magnólias ― jejum

de perfume,

assente na paciência estilística

das aparências.

o entrecruzar dos ramos

de qualquer árvore

[écran]

dá o mote, plano imersível

por reflexão ligeira, natural;

aparelho de escrita epifânica

do alberto caeiro.

tremeliques de respiração ―

a humanidade na

gigantesca teia de carbono

ameaças ingénuas no relicário do fogo.

a humanidade raramente se afina

a ela própria, comummente

configuro-a carrossel repleto de truques;

a metáfora ― uma linha ténue

entre verniz e estrume ― suja

irremediavelmente

a alma às florestas.

o vírus, por mais natural

que seja, invade artificialmente

a espinha; um acrílico calafrio

a destoar imagens verdejantes

no cérebro deposto.






e numa rua

acendem-se aromas no silêncio

distante do coração alcatroado

é preciso sair

conferir cervicais à comunidade

aprendizagem do contacto

cubo a cubo

o mapa tridimensional da cidade

alisando a penugem sentimental

dum peito recolhido

magoado ainda;

sair

feira das agulhas sintonizadoras

sempre bom arranjar

algumas mais, dá descanso

à desenvoltura da alma.

o eu, um tu dizível.

a literatura desenrola-se das imagens

da loucura do algodão do outro

encontrado na respiração

de quem a sonha livro indesmentível.

o eu, estranho absoluto fragmentado

espelho irregular

eu-outro se convidado ou invasor

consoante a hora ― detenho-o

no meu globo de contar

entre o sangue : xenobiótico desafiante.

a identificação transfigura-se pelo ópio

da comparação. é agressiva

a adição na transferência identitária

porque omissão

por falta de claridade intelectual

na tensa biografia.







o grande penedo ensina-me a dormir.

gomos de pedra os sonhos

e pareço refugiar-me no cansaço

da perseguição

porque os sonhos são adiados folhetins

dum futuro que não começa.

contra o medo tenho o grande penedo

contra a cedilha dos pesadelos

embrião dos males subestimados

lírio engasgado de sóis contrafeitos.

o perfume arenoso dos gestos

avança no escuro da paciência do tecto.

convulsões graníticas nos músculos

frequentemente confundidas

com anjos do mal ― antes

movimentações oníricas retardadas

a operarem transformações sensitivas

num corpo que por autodefesa

imita a rocha.

diz do tempo o musgo, escreve

sem olhar prolifera

tacteando a perplexidade

enxofre tenso no inferno de cá estar

sentença de paragem nos vocábulos.

o silêncio é o maior instrumento.

a morte é um ensaio de silêncio.

os humanos atrapalham-se muito.







abraço-te

livro ou pessoa

aqui

junto à cúpula do desentendimento

do mundo e das coisas, de mim próprio

jangada humana

sépala irmanada na orfandade universal

no que se refere à primeira origem.

redemoinho de bruscas emoções

pontuadas pelo significado das flores

encantando os ouvidos

e os poros da pele.

abraço-te

como que a pedir-te desculpa

por ousadias de ser que ultrapassam

fronteiras do entendimento

a um milímetro de papel ―

pesadas as insígnias do ser humano

cansam as arestas do pensamento

para depois se espumarem em nada.

espero o sono de desabitar tudo isto

recorro às vezes ao círio de pascoaes

aos conselhos das árvores de poe

para me esgueirar da insónia

e visitar a brancura paciente do descanso

levando comigo duplos

de inspiração lírica e vivencial

variações de espasmos

experiências corporais

bordadas no linho da sonolência.

o monte azul, as balas de prata

o propósito risível da cruzada

entre moinhos impossíveis que obscuros

permitem trabalhar o cinzento

dando mais cor ao arco-íris

a irromper no dia seguinte.

é importante realçar a mesa voadora

onde pousa o bule

que magicamente animado

porá sem mãos o chá fluorescente

na chávena.

tentam homens, mulheres

e outros géneros

acompanhar a mesa

ela voa sobre os continentes

não poderia ser de outra maneira

o chá dos poetas ― os livros são baldio

os poemas não pertencem a ninguém

e as estórias são de quem as aumentar

1, 2, 3 que palavra transformar

em biscoito?

não servem para mais nada as palavras

senão para comer a cada momento

calorias vazias de tão inúteis

à comunicabilidade sincera

não a comunicabilidade aérea

de circunstância, inúteis

à comunicabilidade cardíaca.

a linguagem é a eterna

brincadeira sonora das espécies

a atrair o malabarismo semântico

dos convivas à mesa

na hora do chá e da poesia.

palavras semi-mordidas no branco

da toalha, inebriando visualmente

os poetas à beira da congestão ―

recorrentemente fatigados

sobretudo quando se propicia

a esgrima de citações.

oscilações no sonho

coisas do metabolismo ―

sobem paralelamente a perna

em ângulo

aliviando o pulmão;

o céu e a mesa e os poetas

dissipam-se ― um pequeno barco

ferido por mantos de uma princesa

de cabelo cor-de-fogo que

fitando o horizonte

não sabe das libélulas

no núcleo dos seus versos.

o arvoredo adentro

o rio, o seu próprio interior, denso

que quem a espera não esperando

na realidade da ficção magoante

não a espera, contempla-a

uma crueldade.

a princesa de cabelo cor-de-fogo

luminescente

no espírito da coragem voluntária

instrui os amieiros e outros seres do rio

avança de pé e sem remos

vestida de branco

com mantos brasonados a ferir

continuamente o barco

nos flancos ― o amor impele

à mais pura entrega

libélulas impacientam

o poema preso na garganta

a água esverdeada marulha

do sonho para a cama

toda ela já barco e eu a afogar-me

ferido de oxigénio balbuciante

detendo-me no rosto determinado

da princesa

até acordar com um

soluço vagueante de elizabeth siddal

love floated on the mists of morn

and rested on the sunset's rays;

he calmed the thunder of the storm

and lighted all my ways.

uma barriga de vidro

com moluscos delirantes, a rota

fixada pútrida no texto imperceptível

das manchas terrenas

a consubstanciar diademas reflexivos

possíveis chaves para abrir

retábulos intimistas

que corroboram

o propósito da existência.

pergunto-te, livro companheiro

que nuvens são aquelas a ladear

as escrituras e os cantos do quarto?

serão pétalas sanguíneas de outrem

húmidas ainda

no vapor ósseo do discurso

ou uma conglomeração residual

dos clássicos

flor-de-voz estrangeira

a assombrar-me?

as imagens sobrepõem-se

para respirar

uma a uma cosem-se apaixonadamente

instinto de conservação ―

encaixam-se originando algo de

diáfano e respirante

quase holograma, quase organismo

uma espécie de fantasmagoria vírica

quase fábrica poética auto-sustentada

a planar junto ao vértice frágil do poeta

amiúde tida como língua-de-fogo

pelos românticos.






convenhamos que o planeta dos livros

é transparente,

cosido em voo por insectos e morcegos

sacudidos das fábulas

e que trazem brilho único

à inércia humanizada

um planeta adaptável a cada visão

por mais estapafúrdia que seja

e por isso, não palpável e inadaptável

a capitalismos

e a convencionais negócios.

a flor-de-ler, alheada, cresce

na solidão do pulmão.

entre a flor-de-ler e a flor-de-carne

uma dança que não convém ignorar;

porém, só não dando atenção

se poderá sentir o vento, a brisa

a aragem dos movimentos

dessa dança ― ver pelo frio doce

a sussurrar na pele

suavidade tensa na abertura dos poros

e de outros sentidos.

o salão craniano da dispensa feliz

envernizamento natural, limpo

espaço de si próprio a escutar

outras dimensões pelos espelhos

de outros, também limpos

e seguros na partilha ―

página par, página ímpar

verso e reverso.







quem espreita és tu, legente

e apenas tu interessas

o teu rosto

uma casa para o livro

que seguras inquieto ainda

vamos viajar ser esperante

globo aglutinante este preceito

reentrando essência a essência

na natureza; passo a passo e

o cérebro desarmado.

a chuva de erva perfumada

na falaciosa ideia dum beijo

surgido do nevoeiro abrupto

da escrita anónima ― e os

aromas externos entorpecem

o pulmão ao livro;

um entorpecimento a concorrer

com o oxigénio congénito

entorpecimento bom e necessário

na desaceleração do que é

racional obsessivo.

entre legente e livro um canal cúmplice

lugar de transferências; a partilha

ilumina a leitura livre, sem grilhão

e só assim respira o livro

normalmente, sem ser abafado

e confundindo-se com legentes

abandonando a condição de objecto

exibindo sanguíneo o seu pulmão.

caem pessoas para dentro do livro

inevitável, caem para dentro do poema

são o poema ― o prisma

de tão encontrada luz que inaugura o dia.

as pessoas, paleta da aurora.

queiram creditar-se leitores

aumentando fantasia à plataforma

o que resta, encenação do tempo

e a espera. confinadas pessoas

a vestirem objectos

entrando e saindo dos objectos

e por um instante consentido

tornarem-se objectos.

quem espreita sou eu, legente

e folheio, estou nu. baixinho,

dizer baixinho o meu nome

entalá-lo num golpe entre as páginas

arredondando o grito

castelos de areia numa praia

de papel e amor ― amor de estar

sozinho, entre o calor das memórias.

porque as memórias dos outros

acendem memórias íntimas

cristalizadas em livro;

viver também é isto, adiar a vida

celebrando o ontem e o anteontem

o passeio dos clones na cabeceira

à luz do candeeiro.






a voz insurge-se

folículo a folículo

assustando os pardais do texto

mas o livro respira

não é importante o que diz

mas como o diz

sobre o rosto das páginas.

o rio

de lombada a lombada

um mistério ―

sob a bússola da noite

o rio da infância exalta-se

quadros e fotografias

mudam de lugar

o chão efervesce

a cama toda ouvidos

na ausência.

ausência plena [oásis]

dificilmente alcançável

ausência idílica de suspiros futuros

uma utopia.

foge a linha na sombra

do cavalo que a inspira

esquisso de caminho

breve, eloquente ― assim

os lábios de alguém na memória

e outros adereços de

desassossego nocturno

fonte de calafrios e suores

guardados em livro.

a biblioteca é um catálogo de sombras.

uma solução para a insónia

passaria pela prescrição de uma sombra

consoante o caso ― vinda do

sonambulismo literário.







estás aí? restas-me

tu dizível,

não percebo.

uma palavra roxa

que rasgue tinta no papel

se houver romance.

ovo cru ― abóbada.

agora tudo oco, admirável

lance sobre a casa,

o quarto. não estás.

onde começa o deserto?

solidão em espelho de

frutos maduros

para nunca mais?

à memória regressa

uma sessão branca ― lírica.

leitura curva, que

a carne do poema está lá fora.

vácuo, cadeiras-vértebras

[ossos carbónicos]

entre corpos os nossos

a olharem-se lexicalmente

e creio ― a não

se verem corpos entre

outros. a sessão:

que luz imprópria. e falar,

estragar pele aos pianos

às mãos que se tocam

e folheiam livros.

flashes, flashes agudos

de luz podre, areia. e há

escadas num

telefonema ― que o

telemóvel possibilita o vórtice.

como é incrível acontecer;

a criação imaginada

abismos luzentes,

renovadores.

a espiral começa

os dois búzios apresentam-se,

originalmente agrestes

e totais, sem saberem

o amarelo tóxico das pautas

que salga

intervalos cerebrais

do solipsismo próprio da identidade.

a terra engana a

calçada ― o frio metálico

se a verdade resolve

a respiração na

diáspora contínua do romance.

como rectificar egos contra

o tempo? esvaziá-los da

mediocridade a firmar

suposta sobrevivência

e auto-satisfação, porque não?

biografia : biologia social.

dúvidas, livros, tempo narrado

à procura de formato.

então um café, sim

células de partilha

o que somos; falemos então

desse desígnio ou dos

trabalhos de harpa histriónica

que forçam no interior

o dizer : a fractura

por maxilares do poema

ainda dentro ― desconhecido

animal-de-folhas

nódulo rubro toante do ver

se língua inebriante

em gestação numa suada

barriga de pedra

sobrada das fábulas à fogueira.

rascunhar vidas a um eu

entre os ferros de alvorada musical

rasurar um eu

embrenhado nas máscaras de cuspo

dum carrossel apodrecido

na memória.

hora-de-gelo a expectativa

e quando resolvo

falar-te, espreitar-te

eu desapareço desmentido

na minha própria boca

ressoante ― dos dias vazios.

afinal, a ausência

assustado o livro musculado

e o branco lençol borbota

água e fel

linha a linha confundindo

o poeta pescador.

aqueronte ― o verso

como um rio, tantas vezes cama

na noite adiada

clepsidra escondida na almofada

coração azul do sonho

que liquefaz as mãos ao texto

sussurrado a um tu indistinto

cruel quase sempre mas

abismo de adrenalina libertador

a rasurar vitalmente o eu.

cortinas, cidades, páginas

o real em fotografia e

lábios a deturparem reflexos

numa inocência repentina

em mente adulta, adúltera

beijar à pressa

epíteto recorrente e preocupante

dito já noutra novena de escrita.

porque repensar, reescrever

a improvável profundidade concreta

de senhas de sangue entre amantes?

decerto ficará no pó, agrada pensar

um pó ― talvez terra vermelha

em velocidade descendente

quase rosto, quase luz

e em certas luas transparecendo

cicatrizes azuis.

que os olhos se esfumam

de ler a noite, de a caminhar

com exposições, teatro, ideias

feridas de alimentos no estômago

tardando a capital tesoura

ao redor do álcool e do perigo.

avançar contra o exagerado

alabastro da agenda ― o riso dela

meu dia, minha noite

[screensaver]

na verdade pedra de luz-e-corda.



NAVA ou o Sonâmbulo do Ontosurreal



In Memoriam LMN

p r ó l o g o



venho deixar-vos aos ouvidos estes meus joelhos de água

que tão de pânico

explodem para as ruas

cristais enriquecidos funcionando novembro nas mãos

e os astros continuamente órfãos


maravilham-se os muros

floresce doença ácida nos lábios


[a linguagem equívoca]


algum menino-crime maravilhado no carrossel

todo ele feito da luz rebentada de espelhos

efemeridade dos prismas rápidos da água


o rapaz chora os nós da erosão nas imediações foliculares

chuta a pedra e cospe para o chão

esperma da língua que evangelizará

os campos depois acorda com os punhos atados

às coxas duma rapariga


junto ao que o crepúsculo um dia transformará em tanque

pela inquinação das noites

assisto à nudez crescida do leite

atolado no sangue precário é terra

amarrotado incêndio-leite doutro corpo

mínimo poço de relâmpagos que contagia os olhos


as imagens regressam

amaciam irredutivelmente as vísceras

e há sempre alguém a coleccionar

miniaturas verdes entre o sangue


são manhãs avolumadas

árdua página

e por dentro

ondas eclodidas do leite desamparado

um poço a guardar na água podre as mãos

embrulhadas com o amor envelhecido das folhas

onde o outono permanece cárneo


intestinos iluminam-se

: o poema caído

[leão maduro ensonado]

ventre onde os últimos cães do arco-íris

estilhaçam de contemplação

reluzindo a fruta

encarcerada na brancura funda do arbusto

: o lenço caído

[touro hiperbólico interiorizado]

nua

cruelmente nua

a paisagem que os tigres abandonaram


uma imagem estancada na manhã

dita impossível

deflagra câmaras no falar

e os fios do poema apodrecem um a um


a revoada de mãos no meu corpo morto

ressuscitado agora

trovoadas de ausência imprecisa

veias amarradas ao vermelho


a alba precipita-se mordendo redonda a página

com a revisão dos incêndios

outrora confundidos nos cabelos dos jovens astros


de longe

essa revoada de luz ateia-me

cíclica e elíptica é-me dada

como abóbada virginal


venho resgatar os raios solares escondidos na vossa pele

perspectiva em tensão alinhavada na nudez

irritar-vos os rins na descarga volúvel

até abrirdes os poros ao pormenor branco

janelas que aceleram despenteadas antigas ecografias

ondas cárneas do poema enquanto animal


venho deixar-vos à boca raízes incarnadas

focos da folhagem permanecida púbere

bebei nelas

a confluência atroz do silêncio






o e s p e l h o d a m e m ó r i a



tumultuosamente

ouço a árvore na mesa

sou eu e a minha linguagem

uma língua com as suas zonas negras

onde as entranhas ascendem


sonho raízes à memória das papilas

folhagem interna a ser penetrada

minha seiva

: visões em ebulição

assim prisioneiro dum contrafeito horizonte

imiscuindo-me na vara do rosto

vergada convulsivamente


abri-lhe infecção

sublevação das fezes no fascínio

ofícios mil rente à matéria

fragmentos paisagísticos ou trabalhados calhaus

sou um lenço negro embaraçado no húmus

os joelhos cobertos

: epifania e assombro no matadouro

projectada concha do mal

do muro que de humano cobra dedos travessia transversal

ombros sobredentro costas

um mergulhar vermelho

ante o périplo preto e branco da face


[a febre seca no peitoril]


rendo-me à ficção do espelho

cabe o mar inaudito na memória

sinto mais podre o coração estilhaço-me

digo-me senão à conta da nudez dos

mais íntimos subúrbios


quisera eu descrever a fundura dos poços no ruído

comparando-a à profundidade das minhas vísceras

perseguisse eu as interrupções do pulso urbano

contrastando-as com os espaçamentos do sangue


avanço ignoro o labirinto

aliás

nem o concebo

entrelinhas no caminho são

furos extraviados da consciência

: o rasgão

poema sublinhado a todo o comprimento


temerei a ventania em que me escrevo

[porta subentendida]

reviverei assaltando a desordem

uma entropia no encalço do riso

e das falanges


ao mais pequeno arrepio na nuca

as trevas recuam

alerta necessário quando o poema-carne e a porta-ciência

digladiam entre si


baús

[o sopro]

cada pulmão uma pedreira

difícil atar-lhes oxigénio

os baús

a grande ressaca


de viagem em viagem a minha fome

: poro a poro

a colheita dos relâmpagos


tudo persiste-me nos sentidos

tacteiam a ondulação minuto a minuto

alçam espíritos na paisagem

propiciam a cópula das pontes


a um tempo a carne do texto

prossigo apanhando-lhe as folhas

as que azedam estranguladas nas brechas do cérebro


olhar cinema mudo personagens-luz num vagão

principal entre quarenta o valete de ouros


sonhei como fazer com toda a saliva possível

uma casa

lamber telha a telha

das entranhas construí-la incessantemente

a casa


perdi-me a colher num patamar

os frutos crescidos pela azia solar


avariei irremediavelmente mecanismos sagrados

sou uma clarabóia em desordem


regresso para arejar-vos a memória

fecundar-vos eu com a minha se preciso

não percebo muito bem

nem aspiro perceber


extravio-me na praia da infância

releio tremores nas ondas

um filme visionado

relâmpago a relâmpago


é bom deambular por dentro da imagem

chegar a perscrutar-lhe os passos

[paisagem legítima]

moldar em transe cristas e vilosidades na gravura


baptizo o horizonte pancreático

com este cuspo que

ainda sentindo-o meu

é-me estranho sim

está no cuspir certeiramente

o esculpir abstracto da imagem

seguindo-se um incerto escorrer

[um abreviar do coração]

no espectador


abro a respiração aos que têm as mãos esfoladas

interpelo-lhes sorrisos

o simples fundo dos poros


encapelada memória adiantar-lhe uma mãe?

estilhaços nada mais

embora se salve o bruxedo que há no arco dos olhos

porque a memória arqueia em espelho

com o ouvido a cronometrar dinamite tensa nos rins

: sombra ou manhã


[uma consciência replicada]


as águas rebentam a crista da infância

banham de nevoeiro as pedreiras

um esverdeado campo bilioso divide-se

pelo impuro atravessar dos dedos


muito difícil lavrar a memória

é preciso cuidar dos poços

sendo irreparável o encosto à solidão

quem nela se senta entrega-se à humidade

olhando retratos apedrejados nos degraus

à espera de recuperar um rastro

até ao intestino depois são os ossos

uma névoa muito verde


encontro na inércia o quarto

onde o mais fértil ruído tranquiliza a pele e

não há senão o descanso

pesada movimentação tectónica

ou um querer desovar no outro lado

as vagas do espelho


: desertar






e n t r e o c o r a ç ã o e a p e l e



regresso à carne viva

multiplicada no crepúsculo

falemos então das tempestades

da casa debaixo da língua

íngreme falésia do fogo


[passos]


sabor à boca recorro à memória

poder-me-ão diagnosticar solidão

aguardo ainda a janela onde


o sol é um cancro enorme que aleija de tão diáfano

assim ao que não posso rogo ao voo da pele


formasse eu um outro coração que fosse

clarão dos ombros no itinerário

uma coroa rasgada ao horizonte


rebentação da mesmíssima pele

alcantilado idioma cardíaco

e as mãos livres para destrinçarem as ondas


falo pelo desconforto

são fortíssimas as cumplicidades

conjugadas com a terra

mãe dos fungos albergados nos joelhos


o basalto desembaraça-se-me do peito

quer beber céu com a natureza

espalha negrumes no cego coser das ervas

assoa os esporos circundantes

lava-se depois no silêncio

que alma? que espírito? que corpo?


assombros num pobre sangue desfraldado

os lençóis exaltados

sobra sempre pele e mais pele

uma colher para remexer

resíduos no coração


a saliva carrega sulcos

vai subterrânea meter-se com os brônquios


problema de amar à tona

espectro inquietante dos destroços

pelo que as mãos lograriam xistos

se escavassem rente às gengivas

dalguém insidioso defronte

da palavra-prédio


[passos]


desde o berço que

a estranha e violenta intensidade dos órgãos

desmente clarividência às imagens






h á q u e m o s t r a r a s v í s c e r a s



[projectores]

encharcado

vinho de água-sangue

até à cintura

declina-me

a asfixia amante


isto ou o este

poisando espesso


[fotografia urdida

pela ligadura

oxidada]


: o lance das entranhas


permutar de roldão

frequências ou cristas

vitrinas de deus

tabuleiros magnéticos

a carne estrebucha

estrebucha excitada


[desnível da saliva]


vómito urgente

uma tão bomba-sol

supõe quente

o pénis

azul vertiginoso

sujo nas palavras

o céu incide

se o sol

se põe entre

protuberâncias caligráficas

o esperma rebenta-me

no texto fálico

[um abarrotar ocre]

leio pálpebras nos joelhos

um xadrez derivativo

por baixo de mãos

de dedos

ossos amontoados

selva orgânica à mercê de

escavações cíclicas

[abismos à lupa]

falésias torcidas no muco

despenhadeiros intestinais


roçam-se músculos

mergulham agredidos


: a feira ida

dos caprichos


vidros uvuliformes

ressurgem na pele

o extremo prenúncio

do mar

os olhos agasalham

como tantas quantas persianas

a entreolharem-se

[espinha]

fervura endémica

mucosas-refinarias

a mesma nervura enferma

da cabotagem






u m p a n o i m e r s o n a a g o n i a



afastem de mim o ouro azedo das árvores

estou farto

este cão negro persegue-me

e gastei toda a clorofila em sonhos de segunda categoria


[corvos em debandada]


ouço agora a purulência de intempéries constrangidas

os cotovelos livres na angústia

o mamilo de ferro na tábua

por passatempo esvaziar as pombas vezes sem conta

recortar a cidade o céu o mundo


o amor é uma transferência invectivada

mesmo que tardia a esferográfica sabe disso lesse

o condenado

cristalizando-se na redacção

onde aflorar ou desnudar é estranheza


a substância que delego em mim

corrosiva a fases de beber fisionomias

sem a nitidez do sexo

difere no tempo pelo grau de apodrecimento


o esqueleto apodera-se do absurdo

como de carne se tratasse é a fome

dum espírito descarnado


: limpo os ossos

sopro as vértebras fulgurantes no domínio soterrado


a pele empedrada exerce impensável bandeira no que digo

bêbado de esquecimento

um deserto solitário mas não diminuído

antes um terraço

coroa da penetração dos instantes neste meu sangue novo

joelhos de água nos vossos ouvidos


simule ou não o céu com ruínas das abóbadas coronárias

medindo as correias

e a publicidade cega doutros tecidos

há um cofre e um poço um poço metido dentro dum cofre

em vez dum cofre mergulhado no poço há raízes

escuridão húmida onde medram as entranhas

noutra dimensão


homogeneizar luz é veneno

anula círculos desavindos por motor natural da porosidade

ruídos da linha férrea nos diálogos, desprende

inversões que levam a um aposentamento progressivo


antes o rugido longínquo das trevas que é meu pai

expandir os sentidos para além da estratificação dos pesadelos

ir à cópula do inimaginável ou fingir sentir o advir do devir

expressão da carne mastigada pelos vermes

auspiciosos inquilinos do matadouro


escrevo esperando a reverberação óssea das metáforas

a serem excretadas pela enigmática abstracção

escrevo como se recuperasse eu o vermelho do sangue

como se espumejassem renascidas as vísceras em palpitação

escrevo espacejando os órgãos transmutados

contando com cicatrizes na via-láctea

cinzas de folhas assassinadas


[âmago zoológico]


concreto o fosso intransponível da linguagem

contra o tronco ideológico do polvo

porque a alegoria é das feras despidas de sua verdadeira carne

esfomeadas por remendarem-se a si mesmas

com carnes de herbívoros e moluscos


procuro um hiato onde caiba sem adjectivos

onde possa alinhar minhas raízes vertebrais

configurar consciência no húmus que sou

com toda a aridez possível

e agrafos na língua


por vezes parece que tenho banhistas no palato

apesar da secura e da vulnerabilidade com que falo

faz-me lembrar as praias onde medi o tesão das ondas

esquecendo-me da vegetação do texto


mas também a areia apodrece como as palavras

à luz da candeia pela qual dançam as aparências


: o túmulo é um quarto para roubar ar

escasso

uma passagem onde se escorraça o passado


[retracção carburante]


aqui os espelhos são insuportáveis

impregnam a identidade

compelem à repulsa perante a duplicidade da plataforma

porque no rebordo do principal mecanismo

rir é doença


só os túneis resistem à realidade frigorífica

neles sacudo as membranas ilegíveis

filio-me ao obscurantismo doloroso da escrita


[borrasca]


vejo com as mucosas um jeito intransmissível

de regar o torso dos contextos o muco

traz luz quando pinga no que

nem ouso tocar


apesar de me assoar a um pano que tresanda a agonia

peço-vos

não tenham medo da carne musical

toda a palavra é

uma glândula na iminência dos sentidos






m a n h ã s a n f r a c t u o s a s



ARS






CHAVE



«como chegar pelo sangue à pétala de sal?»


estranho enredo de asas e de vento

comichosamente no pescoço


uma folhagem ardente

de dedos, uma

voragem inquieta sem perceber

o girar pesado da bengala manejada pelo velho

sentado na sua solidão


a mudez e o deserto tipologia de lâminas

de linfas, as

tintas vulcânicas do rugir visceral

fata morgana para um naipe de fotografias

com a feminilidade da areia


neste continente esgrimindo um lado de sangue

longe do sal, que

em pétala o sopro condensa


[flutuante texto colado aos lábios]


«como extrair pela pele o sal da pétala?»






MEIA HORA À ESPERA COM JORGE MOLDER



é da grafite no canto, de violentamente

raspar de profundis

uma linhagem parece normal

as impressões digitais gastam-se no trabalho

por um conjunto de coisas contaminadas

que se entrelaçam na alteridade


ou um vínculo com a luz no rasgo

sublinhada impaciência esfíngica : desfocar

a palma ao papel na palma da mão

transversal neste mundo tenso e omisso


[caixa negra ≠ jaula ocre ≠ máscara mortuária]


entre o escuro-de-cama e o mito do espelho

uma hesitação limpa da vontade

colarinho submerso de encontro à psicanálise

para veludo dum gato-pantera suspenso

na água da mão fotografada


e o hiato de tesoura ambígua desagrega a nuca

por onde entra o sabotador que procurará

o “pairar da toalha” na câmara escura






CRASTO



[estrada de maçã, crepúsculo de laranja]


a leitura enjeitada entre lágrimas de resina

vibráteis na luz coalhada peregrinamente

tal olhar ardente nutrido de fruta e solitude


[orto do esposo]


no monte sentado rente ao plátano respirante

tenho por esquecido um umbigo de pedra


«tudo é de todos»






O ATELIER DE VICTOR WILLING



descobriu que o seu atelier era lá fora e

pôs-se logo a encenar interstícios celulares

pelo posicionamento estratégico de

despojos vivos, calibrando-lhes temperaturas

impregnando-os de suor

e cheiros-de-estar


«pelo ínfimo o íntimo meu» de facto,

pela célula tudo é mais claro e imediato


lembrou-se de construir um postal tridimensional

com sons armadilhados, um

atelier-tela com uma constelação de silêncios

cúmplices do êxtase


cuidadosamente transportou

paisagens geométricas da sua geografia biográfica

árvores gordas de oxigénio e água

a sacola, a cadeira-miradouro


[sentou-se]


«o meu trabalho

é isto, um

lugar» depois partiu






GLOBO


«Principiáveis o ciclo do vai e vem

contínuos entre a casa e a floresta»


Maria Gabriela Llansol


pelo que dão a revelar, o truque

consistirá em habitar “interiores”


arvoredo esfolado na fábula contada num

outono muito frio, o

piano uivante e bastante tristes as cegonhas


nas mãos a tábua dos nós a ler

pressentindo-se uma reinação alquímica

onde convivas picotados pela cinza regozijam-se

numa ceia de alfabetos contrafeitos


alguém diz e esbraceja um telhado

de ouvir-se faz sua casa

querendo que outros a vejam, a leiam

façam outras casas


porém todos esbracejam apenas

explica a “fome” e os

istmos na humanidade inconclusa


são gélidos e cadavéricos os dedos que tocam

a sonata, última noite do globo






RETRATO SEGUNDO LUCIAN FREUD



o mármore cárneo crescente febres de

proteína branca e amarela

à mercê de músculos tectónicos






A MESA MAIS PEQUENA DO CAFÉ MÜLLER



um rectângulo de madeira intenso

dissolve-se no ácido da oralidade, porque

ver arcos-de-violência é outra coisa

uma meia sombra, assim às cadeiras a

tremura devolvida de pernas e braços

em trovão-de-esforço na dança


atenta, no jardim de caules magoados e fixando

às cegas a lente pela sufocação dos ruídos na

raiz comum dos maxilares, pina bausch desconstrói

elipticamente essa linguagem

desfragmentando-lhe a violência sonora em busca

do não-diálogo, crua essência do mundo






CHÃO-DANÇANTE



aprendi com as formigas

o chão-dançante

do pão e da arte






M. D. E A ARTE DA CONFISSÃO



as urtigas do sexo tomai-as

e não apenas o venéreo culto da delambida

câmara lenta que exorciza imundícies à retórica


saberão a rio dos meus quinze anos e meio

que desaguou no ofício pelo qual

consubstancio rupturas

outrora papel químico do prazer

agora compleição física da memória


uma possível barragem

[forçada teia de fotografias]

tendo o álcool como linfa do tédio


humidamente lenhificados nas páginas

cheiros, olhares, esboços carnais

intumescidos de adrenalina

escritos pela pele e pelo perigo

que a verdade das palavras pouco me interessa






ROCHA-TIMBRE



terra em alimento o silêncio

entre mim com os

reflexos do vagão falcifoliado

uma brasa lábil rente à boca

fechada. vil a ideia da

comunhão de amarguras

como pão ávido silente

às frases, ampola miserável

dos arrastados no entanto

há a rocha-timbre

[aglomerado fílmico precioso]

a atravessar os veios áqueos






FONTELO



[entrada] depois meio passo

minuto de antevisão

¿estarei a pisar uns olhos à floresta?


força da resina no coração. que:


não vim pelo bafo incendiário dos insectos

nem por esgares de pavões que ludibriam crianças


eu, e usando a eu-pele e não um tu residual

casca do meio no caminho, parece dito

vim ler com os pés metades da pauta

possíveis preâmbulos fora-do-trilho

como quem ausculta relógios às raízes para

explicação de vacuidades do carbono nos troncos


¿a escrita túrgida dos gatafunhos vegetais?


aquele quê d’humano treme-me como astral

quando o braço nu ensina ao braço vestido


«vou contar-te uma rocha», aragem sem frase


um microclima de sílaba órfã dado à criança

que sorri feliz de ser enganada por um pavão






TESTAMENTO DE ANA MENDIETA



de cair digo

nua, o

tronco é-me queimado

adentro


por exterior

estática silhueta olhando o brilhante formigueiro

da cal escurecida

cuspida à pressa nas discussões, quente


[uma vida contada entre as ervas e o espelho]


debaixo da mesa deixo um eu com

múltiplos epitáfios de pólvora, mulher evoluída

em pássaro [o sal, as penas] no friso da testa

simulando estados de água gelada e cingida

por uma arte do sangue, contra o

vidro escutando


fosse minimalista a verdadeira sinceridade

sem a verborreia da confissão

ou antes corda de

líquidos vazando algo corajoso para o incêndio

dos ossos






ENCONTRO DE FIAMA COM WITTGENSTEIN


«Canto o coral do a, o som ritual.»


Fiama Hasse Pais Brandão


a voz é o expoente, gomo

de opinião que enverdece todas as manhãs

de sentar-se na laje fria numa zanga com o sol

as vozes o pano de pássaro calado

à linha das fúcsias; porque elas falam e

também a cor é um conceito numérico

bradante por enquanto as proposições da lógica

são murchas como as folhas de outono

[os nossos mortos, estrume preocupante]

que o enigma existe, só não se dá a conhecer

com maquilhagem lógico-filosófica

não suspira por dedução, antes respira por

devoção oculta no esquecimento limpo

da natureza. bem, isto é ser-se místico no

interior das palavras, sendo às vezes possível

pressentir a nascente do eco; o coral esmaece

com sorrisos de ocasião, revigora-se pelo

inexprimível revelado : o silêncio, som ritual






AGULHA



raramente a flecha mineral dum estímulo

viaja no poro sem aleijá-lo há um branco vazio

inerte na escolha do icebergue quase invisível

mas que pesa inelutavelmente sobre os ombros

quando se hipoteca a força memorial das imagens


qualquer tentativa de reconhecimento é perigosa

pelo emaranhamento de nervuras que encalacra o

bolbo raquidiano, qualquer devaneio libertino

por cansaço jogado às grades vítreas poderá fundir

o poro, isto é, inutilizá-lo irremediavelmente


a flecha mineral é uma agulha sintonizadora

abrindo expressão a mucosas e órgãos, o visco

de notícia estrangeira no colchão da identidade

as feridas e o paradoxo, fricção ousada no poro






TRÊS RECADOS PARA VIRGINIA WOOLF



vestiste papel com

dor escrevente, és

o caroço no texto


|


o enredo e a temperatura : das fibras

entrelaçadas no engano, estiradas na

nau. periferia inversa ao afogamento


|


não faz mal afinal

para quem ser mãe

do lótus cerebral?






FRANCESCA



o que dizes? fixo, o

transparente rasgo-ventre

de que reabrem voz por dentro


a consciência suja a nudez

o húmus canta na planta


a luz tem-te magoado?


é um pudor atento à mão que treme

ao texto por fora

ou sombra nominal

: o lenço, o prato, a cadeira


[algo mais reescreve a alma sentada]


e o duende aleija-se, nudez empolgante

de espalhar o rosto pela parede

de ver a morte crucificada na ombreira






ENSAIO OU O BLUFF DE PAULA REGO



porque o sótão, essa barriga

d’arte adiada, guarda

segredos engelhados que

escorregam na pupila vigilante

de quem assina à margem


nele o armário, a barca dos deslocados

bonecos sexuados de categorias diversas

uns empoleirados, outros

rastejantes a mulher das

faces escavadas pela insónia e pelo papão

agrupou-os por aspecto e

afinidade temporal, por famílias


o que calado dito seja

entre barulhos de chave na fechadura

uma vez mais resiliência do pano contra

a paralisia macambúzia

nessa barriga redonda que é

o sótão, cebola velha das estórias

de intrepidez nocturna






O QUARTO DE LOUISE BOURGEOIS



este é o álbum dos líquidos

prova de sanidade brotada da qualidade

do silêncio : positivar a agressividade na arte

denunciar amontoamentos de almofadas

torcer e distorcer o corpo da obra no corpo que

a faz e envelhece, discurso

torcendo os líquidos

enrodilhados na água de lavagem, pressentíveis

em roupas seguradas por ossos


[inversões de tangerina sob a abóboda aracnídea]


rir com e não rir de, episódio de infância a vingar

la mesure du temps

estranhar ruas do corpo, pobres enxertos

le temps des blessés

vermelho-sangue-dor como centopeia-nostálgica

l’itinéraire unique

destruir o pai, uma manhã diferente


[mãos-em-rede para um arco de histeria]


a noite sombras na parede o medo do caos, de

ferir as pessoas [passagem perigosa] de

humanizar a amputação






PASTICHE



real, com a

hibridez dos palanques mais impróprios à

língua interior, a narrativa entrega-se

como alimento côncavo e convexo

solevando-se depois numa opacidade promíscua

com mãos lavadas e falsos sobrolhos

franzidos único erro, talvez, será

não valorizar tal falsidade pelo acúmulo

de cirúrgicos lapsos e

mutações-de-luz no texto já bravio

enxerto desconcertante ao

leitor latente, irreal






UMA VELA NA ÁGUA PARA TARKOVSKI


«Lê sem livro. Lê e esquece.»

Álvaro Lapa


ressoa a chuva

[música dura e flores velhas]

porque o sono é feito de incêndios, livros

com águas que emprenham o vidro

de lavarem erradamente

o reflexo : substância inominável

do lar resvalado


à terceira tentativa chegará

cumpridora a chama, com tremura dada

a santa catarina a zona muda

de manto e figura, marca a testa pensante

numa peregrinação de fazer

sangrar o nariz e

tresler biografias a uma carta antiga


pelo nojo o verme venenoso desce

do sono através do sonho

e abandonando de vez os cabelos sob a

ruminante insistência da chuva

o clarão da gasolina nas estátuas

transparece uma patética frigidez

nos manuais de história






PÊNDULO



sob o peso

do que a palavra faz ao corpo

balanço num angulómetro enferrujado


[injúrias de saliva mole e mortal]


desço balançando não sei onde

terei de, entre os

martelos vertebrais, destruir

o relógio






Rua dos Sonâmbulos






falaram-me de uma rua para sonâmbulos


e começa a folha branca de sol


, como se lembrasse a repetição e o consumismo

tempo apenas de arrumar a bola de cristal,

sofisticada caverna de literatura; o de sempre é

registo, algo doméstico como um cão


. a rua é um esqueleto limpo


quem anda passeia e vê

(relembra e foge) o futuro estranhando

quem-habitante do nunca







, uma calma de entrever diferenças no suar e soar

o som do líquido-corpo de entrever uma

reflexão da miséria, mas miséria imaterial

e não outra


os sonâmbulos alegres esquecem-se de comer

(isso aparentemente visto

a partir da nave provisória do espelho)

mas comem, comem com avidez amnésica

não sabem é bem o quê


: erram na rua desenhando pão, escrevem

ininterruptamente no diário [folha branca de sol]


a manhã é dum sorriso devorador

[estrela falsa]

rumo ao casulo espreitando a meteorologia

essa circunstância cartomante


manoel descobriu a comodidade no lixo

e desde então mora na inutilidade das coisas

como pão-não para a boca; também assim

bartleby







os sonâmbulos descobrem

e as descobertas passam pelos hiatos

massagem do ar, vida como luz instintiva


. um sistema de moscas abertas


a caneta falha por vezes a esfinge desloca-se

confunde o tempo dos transeuntes

e conversa com os visitantes da livraria


ocupação, o paradoxo a assombrar clientes

que fazem pé-coxinho com acordo ortográfico

«ideia escusada d’ervas literárias» pensou a esfinge







entra na livraria um espantalho d’almas morno

cordial (boca que lê) inspecciona

no aperto de mão o tendão da escrita

tremura nua da noite anterior ou réplica sísmica

de papel : o mercantilismo simpático


[encenação urticante]


vive-se a rua mesmo em casa, na terra

dos comos (colmo bruto do fazer) vejamos, um

recipiente de plástico num alpinismo gravítico

de pensar à volta dos talheres


. a casa é o ovo


outra cor e sem a casca pois

clarice trabalhou-lhe o foco subtraindo toda a luz

num raiar de distâncias

cansou a palavra e os olhos até o ovo

aumentar a mesa


«o ovo é a chave sem pressupor uma porta»

diz clarice tentando não o ver

por um desaparecimento tornado parto

saco vitelino do achar-perdendo


, um subtexto da língua a gerar

plaquetas de leitura







o jovem sonâmbulo amealha na camisa

choros de fruta, último dos quais

o da intrépida maçã


visita um eremitério pousado na languidez

procura discernir véus num céu decalcado

[arvoredo a refluir o azul movente] sob o riso

de aves velhas que escondem a hipotenusa


o jovem sonâmbulo ainda não compreende

mecanismos que envolvam cofres de pólen

embora os tenha debaixo da pele por todo o corpo


, esforça-se por decifrar a linha ziguezagueante

da fractura, o que nos olhos magoa a pedra

obrigada a convenções de cariz documental

: gelatinosamente entra inteiro (com as sombras)


na rua os trompetes recuperam o fôlego a passo

esvaziando saliva aos humanos; luiza diz que

pingam infelicidade quotidiana

(utiliza portanto a nave provisória do espelho)

bonito de se ver na tarde quente quando ritmado

uma feira encenada de vaidades







quando a fábula se exalta

a torre caminha o passarão assiste aos

avanços da complexa máscara

do medo, ao

enredo de sangues ecoados

na aorta


[um dragão e texto]


ilha que é sapato fora do tapete

e ao lado da cama, impossibilidade

de espelho a fábula é um ouriço

bicudo por dentro


[fórmula do pensar]


desfeita a torre o passarão vive

uma ideia de terra, impressões

de madrepérola







o assobiador de ruínas afasta os lémures


atrás do mundo, na ânsia devastadora da noite

tropeça nos pares de sapatos instalados no bosque

dispostos segundo a reologia dos arbustos


apesar de tudo é ele o guardador de fantasmas

um nome enganado com uma missão


e sopra a antífona do sono nas cidades

influenciado pelo ponteiro de sólido ardil


[bússola errante a perder dias]


de animal o feio no museu que a mão surpreende

colocada no ventre oblíquo para o dia-futuro







assim que o umbigo inflama

e os pés tomam posse da alergia ao mundo

há um querer correr

transviado nas artérias da cidade-abóbada

por cima da rua, ainda


ao correr o sonâmbulo incorre num

exercício de desmaterializar margens

(maria gabriela acalenta-o, algo que

o seu útero de papel pode fazer)

(in)raciocina no esforço

tão longe de compreender

miríades de junções textuais e celulares


porque julga apagar o rasto aos dias

o sonâmbulo enfrenta desmemoriado o

fundo do copo; aprenderá no casulo

a tábua de monólogos do vento


¿dissolução do tempo ou miragem do icebergue?


. mas as noites engrossam







a mãe enevoada corta

o riso-mármore


[retrato a sépia]


o rio vê

o lago sufoca


[dança oculta]


junto ao branco cego da estátua


atilada a mãe de bruços tenta

ver a falha, a meada no toque


[memória em cartas]


: madeira-perfume, sangue

a ir-se embora no texto







ontem lesionei-me a ouvir mahler

(lado esquerdo) junção de trevo musical

pouco adágio e um beijo na tesoura lenta

dos violinos feliz cesura íntima

de cama e coração


, isto para sujar o fígado no minuto seguinte

na estrada misógina do giz branco


«a poeira não é nevoeiro» apetece-me dizer

ao presumível semeador de florestas

semeador de balcão, de alvenaria atrapalhada


: concordo que a cidade começa no esgoto

ainda algo inorgânico [o estrume em alicerces]

mas os livros não pegam na água

nem seguram betão aos edifícios


a dádiva é a dúvida e não a dívida entre

pombos e gaivotas, parasitas da comiseração


. porque a frugalidade encenada não é frugal


a que propósito estilhaçar vidro, pisá-lo e varrê-lo

para a mesoderme da alma?


antes a microfilia do caos







anfiteatro nicho e paradigma


, a dança antes da dança

regada a cabeça que

por luz domando o negro vidrado de

covas e triângulos

não desce ao escrutínio outro do descanso


cabeça [cogumelo movente]

problema dançante no meio da peça onde

a falsa caveira toca envenenada o falso nenúfar

noites brancas, lady macbeth aos berros

sombras-sobras de esculpir o remorso


hamlet hamleteia febrilmente a solidão


«não encontro na boca a minha língua

tenho para te dizer um peixe vermelho»







roda aros | nervos olho

um fio condutor liga o ver

de povoar sombras à imagem


órbita de parque a bicicleta explica-a

subtraindo à memória o banco de jardim


alguém agradece ao vento e senta-se


, o que da forma se sabe

(ar livre ou matéria negra)

não vinga línguas na teia de morfemas


o sideral olho observa observadores

antes inconsciência [labareda funérea]

ilusão miscigenada de átomos e pulmões no

grande fole universal


sim sagan, desde o azul (pálido ponto) que agonia


subtil e aparentemente parada a imagem

porque se povoa o silêncio com signos

alienígenas, artefactos da doença







quando o candeeiro público bifurca

quer dizer duas coisas

reabrindo discussão a quatro ou cinco assuntos

e o que realmente fica por dizer sobre os dois

objectos falantes em botão

é uma imagem o gigante mudo e anti-social

encripta no seu retiro a solidão

único detentor do dicionário dos peixes

único morador da porta número três


os sonâmbulos, nómadas internos de qualquer

texto ou suposto discurso, calculam haver

viagem por fazer; provavelmente ao oriente


. o olfacto aguça o cérebro


de milhas e de sonhos

a substância alquímica assemelha-se à

cera dos ouvidos o gigante dorme







nadir bruxuleia cores à cidade

com um compasso riscador dentro da retina

e findo o corpo no organismo sem fundo

(mais espacejado enquanto ensaio)

ele crê desenhada em elipses a sua autobiografia


«bacon beijou acidamente a fisionomia

do trabalho, enquanto eu dormia

como desculpa da velhice chamei-lhe casal

ao que tinha, pouco feliz»


[migração do calor]


aves exiladas no ouro vermelho exasperante

zaratustra esquecido


«nunca viste o mar no avesso do corpo?»


que o esqueleto queixa-se da sua não-condição

e também o diabo tem tentações

amantes no real e irreal

sombras na terra, óculos no inferno


: o bordel queima amarelo «as valquírias, onde estão?

como haver água neste lugar?

quero valquírias limpas, um azul escuro de estar»


, e nadir adormece na juventude da interrogação







so long as I get somewhere

down, down, down

I know something interesting is sure to happen


quartos escuros, portas fechadas

nenhum corredor o que é?


[curiouser and curiouser]


. frase-febre


, chaves desaparecidas

uma maçaneta distante à família


I can’t explain myself, I’m afraid

it was much pleasanter at home

and what is the use of a book?


eu-onde defronte tu-quando

a brincar aos abismos


shall I never get any older that I am know?







a minha mão no ombro-árvore avô


tenho um corvo a voar dentro do corpo

sem peso sem cor sem nome

da pele longínquo grasna


ando a ver se engano o ecossistema

de rasgar trilhos vejo pedras, folhas, perdas

que os galhos tramam-me altura

a ponto de chorar


tudo, tudo tudo vivo mas morrente, tudo


quem tem um ombro-árvore

não precisa de fazer atenção ao caminho

e pode cumprimentar os pequenos seres

não é avô? e agora,


quem alimentará à noite o penedo fundido?







penso (tu e o inverno) algumas cartas

dão chuva, o trevo na espiral

com a insistência meteórica da linha errática


[telemóvel no coldre]


trincheira íntima ou

um quê de forma crescente por joelhos maduros

ou folhas de sol várias, vidas com

chuva no fim


os olhos guardados num pião

(subtil coração) tanta tinta seca

risos linha verbal abaixo e

amor baixinho num hospital


cada carta traz mais alto sentidos

apagados na escrita







e quem-habitante cose o som à miragem urbana

adivinha no nunca atrocidades, linha torta do edifício

falado entre pares (irmanados desiguais)

porque nada de humano o liga ao contrato que

de humano nada há se não a ideia animalidade

descontrolada e desdita, selvagem e sonâmbula

[antes dogma, antes pedra angular] só e a errar







«se por uma vez me visses como sou»


ainda jovem o sonâmbulo rodopia no carrossel

de verniz e açúcares

nu denuncia podridão a sangues de família

[ringue e pocilga]

irá morrer limpo, outro

pensa


o banquete, ou memória dele a bater

num sangue poluído

quadro expressionista colossalmente dentro

minutos em gesso e tinta que de tão vibráteis enxovalham

o cérebro


[revólver emergente]


dor moderna sozinho, a sociedade não cabe

a lama mais saudável que o creme dos bolos


spinoza ilumina o matadouro, afinal uma igreja

para o outramento asseado na imundície

corpos exteriores à alma

com outros de almas outras magoantes de mantos

da coisa pensante, mas deus muito distante







luz azul de umbigo à terra, noite-abóbada


ouvintes e teclas alternam

que ver é ouvir a escrita do som

raspar tactos à imagem


a assembleia um

pulmão atento ao esteio lucifónico


porque instrumentista fecha os olhos


o engano afunda de abismo o real

os dedos cingem de lama a música que a pele beija


som-de-fúria por véu onde borboletas se ionizam

tão pouco o láudano para as sombras no claustro







sonâmbulo há que inverter a cabeça

pintar feridas de terra na pele


, coisas de céu escuro e medo líquido

angústias de tinta no café


uma fome de ler no linho estragado

dias a milho e aveia


cabeça, fonte de tremura [raiz perversa]

que é carne mastigada e a vida ruim







idoso e sem barco o marinheiro procura o cão

(paisagem-desenho por lobo onde ancorar)

que lhe traga sorte e vinque vértices familiares


sabe de cães porque plantou fábulas no mar

a linhagem perdida no jogo das ausências

como meia metade funda envolta de lodo


o marinheiro traz um búzio de conversas

falaram-lhe sobre a distância e o suor

sobre a faca-mineral e a sílaba de sal


; o que se perde de mar entre o lobo e o barco?

o ar, a água, o som? um espectro da verdade?


[a solidão, o tempo, as vozes, a solidão]


que a estrada dá-lhe a berma e o sonho

conquanto a verdade consome e mata






Nota do Autor:


As passagens em inglês, usadas e conjugadas

livremente no poema

so long as I get somewhere,

integram a obra

Alice's Adventures in Wonderland

da autoria de Lewis Carroll.