Pleura de Plumas
[Edição de Autor, 2022]
de escutar a água entre o real e as palavras
esperando o sono
a lentidão atendida, uma água na simplificação
da saliva e do orvalho
[memorando do escriba à sede]
assim se ouve falar de uma esgrima tentacular
sensaboria líquida
incomum na paráfrase dos movimentos
o som-sangue que é seiva sucedânea
do momento em que se escala a cor em dor
assim se ouve falar
e a água vibra bêbada nas plantas e nos animais
vibra no orvalho e no olhar
na saliva dançante
que une de energia os amantes
✫
, e depois a noite
dois olhos de gelo
a negarem excessos da boca solar
sobre um diário
― nunca linhas tão duras navegaram assim
sofregamente na cabeça
anémico surge o tigre branco
numa selva demasiado escura
[dois olhos de gelo]
✫
. o que penso morre mais à frente
alguém armadilha-me
o ouvido
não posso confiar nos sons que se me apresentam
vivos e loquazes; são a morte
de antemão
o que penso morre
porque morro instante a instante
como pão com bolor negro
, é isto o peso em dor de esforço e desalento
é isto, o vento que apaga nomes que não chegarei a ter
de voz em voz, de pele em pele
não posso confiar mais nos sons
nem no peso do vento quando penso naquilo que morre
mais à frente
✫
: um nó precipitado de vida como reduto de fuga
, a questão nem sequer existe como acontecimento
porque ser não pressupõe pressupostos nem análises
, a questão de manchar um linho por si só abstruso
estará tão longe ainda do líquido amniótico ―
e que nó de rodeios nervosos num gargalo tumular?
que nó de freios e veios apertando tendões e válvulas
à construção do ser que trabalha já a sua própria morte?
✫
quando vires o trabalho das mandíbulas naquele rosto
que te escuta
[kabuki]
foge, foge para bem longe
evita as pessoas com esse som de areia
nos músculos faciais
[kabuki]
este é um aviso à miserável sátira humana
há uma fome inextricável na rotina dos cumprimentos
um óleo na pele cujo reflexo
poderá ser fatalmente venenoso
[kabuki]
foge, foge da ladainha circunstancial do convívio
qualquer boca vira aquário
dum peixe asquerosamente só
[kabuki]
e sim, sei que este poema parece padecer
dum misantropismo desenfreado
mas trata-se da constatação cruel da natureza
ou não
[kabuki]
✫
a árvore no horizonte quase recorte
súmula de solidão
as mãos afogadas
misturadas com o vazio
das horas
linha do azul transpirante das marés
atendendo a circunvoluções tardias
do cérebro
linha que recorta as ausências
e faz falar a árvore
na sua insignificante significância genealógica
agora
subida a transparência das entranhas
[por introspecção invertida talvez]
que territórios indagar no baldio dos olhos
quando a intermitência do humor
fractura qualquer possibilidade radicular
à árvore?
✫
este poema acontece nu
entre o asco do mundo
nenhuma roupa substitui qualquer dizer de pele
sonante entre células avulsas
gritos perdidos nos becos da cidade
lábios gretados de dúvida
num qualquer frio sombrio de aura civilizacional
um corpo nu em equilíbrio alheio
ao mundo
descarnado de pseudocantos da hora adversa
um corpo despido de sons metálicos e outros
ruídos tóxicos
a tentar ser natural consigo pela neutralidade racional
a tentar não ser mais uma máquina num jardim de betão
este poema é corpo
de encontro a um branco fulgente
natural e irascível face a solavancos nebulosos da psique
este corpo é poema saído das margens da locução
saído do desenho mais basilar feito a lápis-lazúli ou a carvão
uma folha tremente de sentidos entre veias e artérias
em contracorrente ―
✫
os olhos do passado cristalizam-se de mentira
baços no pensamento representam
o vurmo incognoscível do presente
, a mentira
a cinza de corpos traídos na memória
] nomes | sombras | espectros [
cinza movente de paisagens oníricas magoadas
mentira movente
dentro da verdade inextinguível, feia
a verdade esquadrinhada pelo sílex fervoroso da retina
ou o passado vindimado pelos olhos
. um sopro azul
✫
a dança oculta estranhos rostos em borrão
montanhas que se abrem como deuses
assuntos menores de dízimo e cinza
moedas de pedra
lançadas na sorte púrpura dos dias
, moedas como
línguas mordidas de desespero na ignorância última
do universo
até como brincadeira pós-moderna de amputar teorias
ao entretenimento da ciência
enquanto se espera por uma súmula geológica reveladora
ou pela grande amnésia que apagará um a um os continentes
ao mapa-múndi
✫
nem que do iodo perfumado surja de repente
a rapariga entre as mimosas
errante em encruzilhadas de fantasia
fuga ao real ou mesmo sonho
nem que falhe a mão
outrora gato agora pássaro
[ideia de cheiro]
a fêmea incendiária num cerco de marfim
― de rever madrugadas na sombra alagada duma cama
promessas de especiarias das mil e uma noites ―
nem que da anfractuosa noite
apareça da água sobrada a mulher das fábulas
nem mesmo que os envidraçados relatos dos ausentes
guardem indelevelmente
todas as formas nos planos mineral, vegetal e animal
nem que se prolongue a rusga diurna dos fantasmas
nem que o céu ceda a infâmias e vanglórias terrestres
nem que ainda prolifere a angústia na linha da vida
como árvore branca, morta
nunca esquecerei as possibilidades cardíacas na experiência
de cada aroma
✫
ver de costas um semblante ventoso
como se rebentasse
na cabeça ― resulta da impraticabilidade
do espírito
da sua deficiência líquida na memória
, ver de costas
e na verdade em nada resultando
a não ser uma indefinição ácida
de rostos dotados de abandono
quase arriscando um síndrome de magritte
ou talvez um ver de risos podres
com sombras abjectas à realidade ― um ver torto
de ninhos vazios
nas distantes árvores do horizonte
✫
deixa-me olhar-te por dentro
nesta floresta de espelhos magoados
há um lago
a descurar a pouca água de vitral
e os olhos não olham já o real onde
apoucam as lágrimas
que acalentarão o ser sozinho
ser entre sépalas do crepúsculo
ora animal ora planta ou mineral
cerrando as pálpebras
trabalhando os olhos à alma
trabalhando imagens mutantes
a cada pensamento rotacional
da terra ―
olha também por dentro de mim
esse espelho que vês és tu
e sou eu
num labirinto de águas rápidas
o possível abrigo de sons
a soar como um búzio ao entardecer
como ínfimo murmúrio das marés
✫
parece que concebo uma pleura de plumas
ao redor de frutos e sombras
nunca sabendo
o sabor do escuro ou da polpa
numa intermitência repentina devedora ao sonho
que sufraga ardores em
minutos-agulhas
que rastreia ilusões num sufoco-caroço
abrindo lugar
à enorme solidão na planície
… porque concebo enganado uma paleta de poemas
a sujar diariamente uma existência em permanência
, e nas sombras temo a
refracção azul do que não seja azul
temo qualquer gota alarmada do orvalho roxo
sobre os joelhos
: a minha voz de xaile e mágoa
num verso faca que precede o sangue
✫
. do branco cinza a mulher sustém o abismo de ver
, e estaca balouçando na incredulidade
dos homens
porque não é um modelo sonâmbulo
nem a garantia da prole
é uma mulher
uma mulher contra a violência branca da formatação
suspensa entre pequenos pulmões
que trabalha em redor
, trabalha cada espasmo filial arredado de vinhetas sociais
porque é uma mulher suspensa na sua razão
rasgando sempre que possível
as telas ao patriarcado
― a mulher grita num aquário de gelo e surdez masculina
uma mulher indecifrável mas inteira em gesto
como as que figuram nas telas de julião sarmento
inteira na hesitação plena duma voz que cairá provavelmente
no vazio
✫
acordou um dia o diabo achando que era humano
e suas mãos acorreram instintivamente à cova do peito
[pareciam duas árvores inversas de choro]
a tentarem colher atabalhoadas reminiscências de passados
o diabo acendeu dentro de si a floresta dos olhos
procurou as crianças da vila para as enganar
[pela facilidade de ramificação fértil dos sonhos]
procurou confirmar a saúde da sua natureza cruel
sempre medindo a mínima variação de temperatura
porque resolutamente o diabo não quer ser humano
daí o seu pânico por febres e metamorfoses
as mãos acorrem sempre à cova do peito
o diabo baralha-se com a labiríntica panóplia de sangues
sangue do céu olhado pelo sangue fervente dos amantes
esse sangue puro transmitido às crianças que tenta enganar
sangue sangrado na poesia muda duma existência quase azul
confunde-se então o diabo com o que será a matéria humana
emerge uma entidade monstro do rio do esquecimento
sente que perde a identidade que nem conceito já concebe
mendigando compaixão nas sobras de sombra junto à fonte
o diabo emagrece e nos seus cornos transparecem
em via-crúcis os pecados do mundo ― à beira de morrer
uma mão de criança acorre-se-lhe à cova do peito
acendendo-lhe memórias de cada sangue que enganou
✫
esta tentação de sucumbir à figuração
intentando arranhar uma narrativa que exorte
a masturbação
por receituário benemérito da civilização
como ciclo findo de uma dor mimetizada
como que cobrando hormonas de substituição
por alguma paz
algum lugar com a licença de se estar incógnito
e sem função
✫
preso a uma ideia de vácuo como se cru o silêncio do sono
como se um corpo não conseguisse existir de novo à tona
um corpo como que a
apagar-se numa respiração conflituosa e subterrânea
afundando-se progressivamente na elisão de uma identidade
como se não se lembrasse da função da memória
por elemento tangível a uma liberdade
como se reduzisse a enigmática dor a
um complemento sideral de complexidade rasa
perigosa como uma faca de luz ininteligível
preso à ideia como que implodindo numa entropia biológica
imitando pateticamente o grande universo
num jogo de galáxias cognitivas
desintegrando qualquer reaproximação à respiração inicial
como se desafiasse a regressão celular e atómica
de uma consciência líquida
entre líquidos que de certo modo nunca entenderá
porque além entendimento é a ideia de descontinuidade
sopro conciso reabsorvido na sistemática elisão nominal
como vácuo tranquilizador de uma obrigação existencial
✫
a necessidade do poema vem de uma ebulição compulsiva
e portanto nunca me interessou saber qual a sua exacta
fórmula alquímica; há que resolver nos nós da carne apenas
assim os passeantes em desfile com os seus fios de narrativa
perante a televisão cerebral que estes olhos têm revelado
nós de súplica e indefinição em barulhos que se ouvem
apenas à noite e sem saber se em estado de vigília
ou em pleno sono ― a vida é uma febre, depois passa
✫
não mais do que um periclitante equilíbrio dum grão de sal
esta imagem gorda do mundo
como se de repente quisesse encontrar
o contrário da minha boca ―
✫
num recanto do autocarro uma bolha humana
malograda mulher
com hálito a álcool e mágoas
sôfrega no seu redemoinho de músculos
à distância
uma flor silvestre tatuada de hematomas
uma tela viva de francis bacon
✫
as sombras no areal conversam além azul
face a interlúdios da voz do mar
o areal como pergaminho envelhecido
pontilhado por pulgões de areia
testemunho calado de eras findas ―
e que conversas se perpetuarão
em cada risco de ave, gaivota ou não?
que som inteiro quão real como concha vazia?
que risos ficarão nesta praia à mercê da erosão?
na confusão de pés e iodo ao redor duma boca
que manto azul guardar de memórias e vento?
[saudades do mundo das lágrimas em maresia]
não compreendendo nunca o que as pegadas escrevem
não compreendendo nunca porque o mar as apaga
✫
o embrião da matéria, o que é?
quando pensar se revela
não mais do que um errático esboço longe do quotidiano
o gérmen volátil da palavra oca
o que é? a mística desentranha-se do absoluto indolor
desentranha-se por inquietação
defronte a máscara
[cadência de abismos múltiplos]
chuva identitária dum rosto
a apodrecer continuamente no papel
✫
. o diafragma desdiz a eternidade
, tanta lama a estragar-se em luzes incompreensíveis
dissimiláveis a cada aragem supérflua da ignorância
como quem diz grão de areia em vez de pólen
não visto e portanto realmente morto já
sem figurar em ânsias de arte
ou outras construções
, os vivos puxam fios aos mortos
e os mortos mantêm-se na sua imobilidade cantante
casmurros na sua eloquência discursiva da autêntica verdade
ou seja, a morte como mecanismo de implosão
esse diafragma variável da não paisagem
acto persecutório do sonho em carne viva
. a efemeridade desdiz o diafragma
✫
a mesa, a mesa perpassada por ângulos obscuros
segmento isolado do que a custo perdura
em forças de introspecção bromatológica
a mesa, a mesa devolvendo a grande planície
uma confissão invertida da própria renúncia
: as vozes no interior dos alimentos
✫
entre ler e dizer o que comer entre vazios de alma
entre o que fazer de vísceras floridas para o nada
que escolher entre sombras maiores do que o tamanho?
entre folhos de mentira e frutos perigosos que vêm da fome
entre fúrias de sangue e bílis que alumiam e escurecem o dia
que rosto ver em perfume e ilusão a quente, a ferver?
― há um figo a arder e esse lume vai doer e corroer ―
✫
o grito como animal estranho entre outros sons
longe já do gutural arrependimento vivo
insípido como o falso brilho da morte num recanto aceso
do lilás ― arremedadas as ameias do susto
e também ele encantado com o muco da adrenalina
a noite advém floresta
luzindo entre o carvão vegetal do olhar ― o grito
memória a esquisso sobre a laje dos músculos marmoreados
o grito-caverna como súmula de dor
que minuto a minuto destoa a cor ao
genuíno ser perdulário brincando no centro da clareira
meros ensaios de câmara afinal
e ninguém adivinha a chave que designará o estilete vital
a escrever o arvoredo das margens ao centro no horizonte
ninguém se consubstancia de novo naquele grito inaugural
apesar do intrafamiliar peso amniótico dos ultrasons
trazidos entre gestos e confidências ombro a ombro
ninguém sonha a folha de céu como pauta de antífonas
porque ao engano andam os detractores existencialistas
que se pavoneiam em tinta no jardim dos catecismos
ninguém grita afinal, vista esta miséria humana
do mais recôndito zénite do universo
✫
, e quando se mede o desperdício da juventude
passa-se a temer a fragilidade da porcelana dos ossos
e dos dentes
o tempo transcorrido fútil numa vibração criminosa
as mãos cheias de cicatrizes
de ensaios tortos
num sujo céu em tela pobre onde só poderiam estrelar
dores de cabeça e perdas
espasmos de memória deteriorada
[o desperdício]
passada rápida num apressamento caliginoso de processos
tétricos movimentos em desespero
o desperdício a nu
na escuridão da solidão
e não cabendo nunca no âmago da alma ambulante
contra si cambaleando
entre corredores que se autoanulam
não cabendo nunca no ritmo incessante de uma música
que afinal é ruído
como água perdida fria entre os dedos
o tempo transcorrido
a areia a doer no sangue
sem vermelhos ou melodia intuitiva
do romance
✫
o vento que assobia pela fissura dum abandonado metal
enferrujado ― a poesia
no seu elemento mais natural, acontecendo
entre as margens de luz e sombra de uma ideia
ou visão
a garganta enferrujada num deserto de imprecisões
do real
uma guturalidade que se perde nos sentidos
entre abismos defronte objectos, coisas que são carne visual
e magoam na intersecção das linhas
no horizonte
, que contiguidade questionar ao sangue, à terra e ao vento?
✫
se o amor ou a sua ideia é um breve fio de seda que mente
junto ao ouvido mais desprotegido
e delicodocemente se enrola em si próprio
em cheiros e fobias atraentes
tecendo-se enganado como que caindo em abismo
quase sem peso ou remorso
na página inferior da mais débil folha duma amoreira
se da falaciosa noção o fio se crê rodeado de novo
em torno da afeição
ele tão estranho como belo e nenhum todo
tinindo esticado um malogrado espelho que subtrai
todos os beijos às bocas
e devolve a verdade em aranhas malignas que escurecem
esse promontório dos bichos-da-seda
se o silêncio é amor em labirinto
fustigando tantos olhos com o
incalculável número de ovos que não chegarão a larvas
amor na ausência de fuso e roca soando o esvoaçar azul
de aves inquietas que escrevem nomes à solidão
nomes num papel de arroz em esquecimento
longe de qualquer olhar ou ouvido
✫
conheço um lugar onde
por breves momentos
deixam de se ver todas as feridas
, vermelho só um desfiladeiro mental
a rasar harmonia
conheço um lugar que é todo ele
um espanta-espíritos
onde converso comigo num magma espiritual
de água gelada
entre penedos e vegetação
um lugar de choro feliz
para uma humanidade desalinhada
com o mundo
um lugar em que acreditar é um novo continente
a habitar de almas brancas
um lugar para ceder ao toque do musgo e da pedra fria
para florir pele apaziguada
abandonando este lugar as feridas voltam à visão
― desenham um mapa-segredo para regressar