Pleura de Plumas

[Edição de Autor, 2022]

de escutar a água entre o real e as palavras

esperando o sono

a lentidão atendida, uma água na simplificação

da saliva e do orvalho


[memorando do escriba à sede]


assim se ouve falar de uma esgrima tentacular

sensaboria líquida

incomum na paráfrase dos movimentos

o som-sangue que é seiva sucedânea

do momento em que se escala a cor em dor

assim se ouve falar


e a água vibra bêbada nas plantas e nos animais

vibra no orvalho e no olhar

na saliva dançante

que une de energia os amantes







, e depois a noite

dois olhos de gelo

a negarem excessos da boca solar

sobre um diário


― nunca linhas tão duras navegaram assim

sofregamente na cabeça


anémico surge o tigre branco

numa selva demasiado escura


[dois olhos de gelo]







. o que penso morre mais à frente

alguém armadilha-me

o ouvido

não posso confiar nos sons que se me apresentam

vivos e loquazes; são a morte

de antemão


o que penso morre

porque morro instante a instante

como pão com bolor negro


, é isto o peso em dor de esforço e desalento

é isto, o vento que apaga nomes que não chegarei a ter

de voz em voz, de pele em pele

não posso confiar mais nos sons

nem no peso do vento quando penso naquilo que morre

mais à frente







: um nó precipitado de vida como reduto de fuga


, a questão nem sequer existe como acontecimento

porque ser não pressupõe pressupostos nem análises


, a questão de manchar um linho por si só abstruso

estará tão longe ainda do líquido amniótico ―


e que nó de rodeios nervosos num gargalo tumular?

que nó de freios e veios apertando tendões e válvulas

à construção do ser que trabalha já a sua própria morte?







quando vires o trabalho das mandíbulas naquele rosto

que te escuta

[kabuki]

foge, foge para bem longe

evita as pessoas com esse som de areia

nos músculos faciais

[kabuki]

este é um aviso à miserável sátira humana

há uma fome inextricável na rotina dos cumprimentos

um óleo na pele cujo reflexo

poderá ser fatalmente venenoso

[kabuki]

foge, foge da ladainha circunstancial do convívio

qualquer boca vira aquário

dum peixe asquerosamente só

[kabuki]

e sim, sei que este poema parece padecer

dum misantropismo desenfreado

mas trata-se da constatação cruel da natureza

ou não

[kabuki]







a árvore no horizonte quase recorte

súmula de solidão

as mãos afogadas

misturadas com o vazio

das horas


linha do azul transpirante das marés

atendendo a circunvoluções tardias

do cérebro


linha que recorta as ausências

e faz falar a árvore

na sua insignificante significância genealógica


agora

subida a transparência das entranhas

[por introspecção invertida talvez]

que territórios indagar no baldio dos olhos

quando a intermitência do humor

fractura qualquer possibilidade radicular

à árvore?







este poema acontece nu

entre o asco do mundo

nenhuma roupa substitui qualquer dizer de pele

sonante entre células avulsas

gritos perdidos nos becos da cidade

lábios gretados de dúvida

num qualquer frio sombrio de aura civilizacional


um corpo nu em equilíbrio alheio

ao mundo

descarnado de pseudocantos da hora adversa

um corpo despido de sons metálicos e outros

ruídos tóxicos

a tentar ser natural consigo pela neutralidade racional

a tentar não ser mais uma máquina num jardim de betão


este poema é corpo

de encontro a um branco fulgente

natural e irascível face a solavancos nebulosos da psique

este corpo é poema saído das margens da locução

saído do desenho mais basilar feito a lápis-lazúli ou a carvão

uma folha tremente de sentidos entre veias e artérias

em contracorrente ―







os olhos do passado cristalizam-se de mentira

baços no pensamento representam

o vurmo incognoscível do presente


, a mentira

a cinza de corpos traídos na memória

] nomes | sombras | espectros [

cinza movente de paisagens oníricas magoadas

mentira movente

dentro da verdade inextinguível, feia


a verdade esquadrinhada pelo sílex fervoroso da retina

ou o passado vindimado pelos olhos


. um sopro azul







a dança oculta estranhos rostos em borrão


montanhas que se abrem como deuses

assuntos menores de dízimo e cinza

moedas de pedra

lançadas na sorte púrpura dos dias


, moedas como

línguas mordidas de desespero na ignorância última

do universo

até como brincadeira pós-moderna de amputar teorias

ao entretenimento da ciência

enquanto se espera por uma súmula geológica reveladora

ou pela grande amnésia que apagará um a um os continentes

ao mapa-múndi







nem que do iodo perfumado surja de repente

a rapariga entre as mimosas

errante em encruzilhadas de fantasia

fuga ao real ou mesmo sonho


nem que falhe a mão

outrora gato agora pássaro

[ideia de cheiro]

a fêmea incendiária num cerco de marfim


― de rever madrugadas na sombra alagada duma cama

promessas de especiarias das mil e uma noites ―


nem que da anfractuosa noite

apareça da água sobrada a mulher das fábulas

nem mesmo que os envidraçados relatos dos ausentes

guardem indelevelmente

todas as formas nos planos mineral, vegetal e animal


nem que se prolongue a rusga diurna dos fantasmas

nem que o céu ceda a infâmias e vanglórias terrestres

nem que ainda prolifere a angústia na linha da vida

como árvore branca, morta

nunca esquecerei as possibilidades cardíacas na experiência

de cada aroma







ver de costas um semblante ventoso

como se rebentasse

na cabeça ― resulta da impraticabilidade

do espírito

da sua deficiência líquida na memória


, ver de costas

e na verdade em nada resultando

a não ser uma indefinição ácida

de rostos dotados de abandono

quase arriscando um síndrome de magritte


ou talvez um ver de risos podres

com sombras abjectas à realidade ― um ver torto

de ninhos vazios

nas distantes árvores do horizonte







deixa-me olhar-te por dentro

nesta floresta de espelhos magoados

há um lago

a descurar a pouca água de vitral

e os olhos não olham já o real onde

apoucam as lágrimas

que acalentarão o ser sozinho


ser entre sépalas do crepúsculo

ora animal ora planta ou mineral

cerrando as pálpebras

trabalhando os olhos à alma

trabalhando imagens mutantes

a cada pensamento rotacional

da terra ―


olha também por dentro de mim

esse espelho que vês és tu

e sou eu

num labirinto de águas rápidas

o possível abrigo de sons

a soar como um búzio ao entardecer

como ínfimo murmúrio das marés







parece que concebo uma pleura de plumas

ao redor de frutos e sombras

nunca sabendo

o sabor do escuro ou da polpa

numa intermitência repentina devedora ao sonho

que sufraga ardores em

minutos-agulhas

que rastreia ilusões num sufoco-caroço

abrindo lugar

à enorme solidão na planície


… porque concebo enganado uma paleta de poemas

a sujar diariamente uma existência em permanência


, e nas sombras temo a

refracção azul do que não seja azul

temo qualquer gota alarmada do orvalho roxo

sobre os joelhos


: a minha voz de xaile e mágoa

num verso faca que precede o sangue







. do branco cinza a mulher sustém o abismo de ver


, e estaca balouçando na incredulidade

dos homens

porque não é um modelo sonâmbulo

nem a garantia da prole

é uma mulher


uma mulher contra a violência branca da formatação

suspensa entre pequenos pulmões

que trabalha em redor


, trabalha cada espasmo filial arredado de vinhetas sociais

porque é uma mulher suspensa na sua razão

rasgando sempre que possível

as telas ao patriarcado


― a mulher grita num aquário de gelo e surdez masculina

uma mulher indecifrável mas inteira em gesto

como as que figuram nas telas de julião sarmento

inteira na hesitação plena duma voz que cairá provavelmente

no vazio







acordou um dia o diabo achando que era humano

e suas mãos acorreram instintivamente à cova do peito

[pareciam duas árvores inversas de choro]

a tentarem colher atabalhoadas reminiscências de passados


o diabo acendeu dentro de si a floresta dos olhos

procurou as crianças da vila para as enganar

[pela facilidade de ramificação fértil dos sonhos]

procurou confirmar a saúde da sua natureza cruel


sempre medindo a mínima variação de temperatura

porque resolutamente o diabo não quer ser humano

daí o seu pânico por febres e metamorfoses

as mãos acorrem sempre à cova do peito


o diabo baralha-se com a labiríntica panóplia de sangues

sangue do céu olhado pelo sangue fervente dos amantes

esse sangue puro transmitido às crianças que tenta enganar

sangue sangrado na poesia muda duma existência quase azul


confunde-se então o diabo com o que será a matéria humana

emerge uma entidade monstro do rio do esquecimento

sente que perde a identidade que nem conceito já concebe

mendigando compaixão nas sobras de sombra junto à fonte


o diabo emagrece e nos seus cornos transparecem

em via-crúcis os pecados do mundo ― à beira de morrer

uma mão de criança acorre-se-lhe à cova do peito

acendendo-lhe memórias de cada sangue que enganou







esta tentação de sucumbir à figuração

intentando arranhar uma narrativa que exorte

a masturbação

por receituário benemérito da civilização

como ciclo findo de uma dor mimetizada

como que cobrando hormonas de substituição

por alguma paz

algum lugar com a licença de se estar incógnito

e sem função







preso a uma ideia de vácuo como se cru o silêncio do sono

como se um corpo não conseguisse existir de novo à tona

um corpo como que a

apagar-se numa respiração conflituosa e subterrânea

afundando-se progressivamente na elisão de uma identidade

como se não se lembrasse da função da memória

por elemento tangível a uma liberdade

como se reduzisse a enigmática dor a

um complemento sideral de complexidade rasa

perigosa como uma faca de luz ininteligível


preso à ideia como que implodindo numa entropia biológica

imitando pateticamente o grande universo

num jogo de galáxias cognitivas

desintegrando qualquer reaproximação à respiração inicial

como se desafiasse a regressão celular e atómica

de uma consciência líquida

entre líquidos que de certo modo nunca entenderá

porque além entendimento é a ideia de descontinuidade

sopro conciso reabsorvido na sistemática elisão nominal

como vácuo tranquilizador de uma obrigação existencial







a necessidade do poema vem de uma ebulição compulsiva

e portanto nunca me interessou saber qual a sua exacta

fórmula alquímica; há que resolver nos nós da carne apenas

assim os passeantes em desfile com os seus fios de narrativa

perante a televisão cerebral que estes olhos têm revelado

nós de súplica e indefinição em barulhos que se ouvem

apenas à noite e sem saber se em estado de vigília

ou em pleno sono ― a vida é uma febre, depois passa







não mais do que um periclitante equilíbrio dum grão de sal

esta imagem gorda do mundo

como se de repente quisesse encontrar

o contrário da minha boca ―







num recanto do autocarro uma bolha humana

malograda mulher

com hálito a álcool e mágoas

sôfrega no seu redemoinho de músculos


à distância

uma flor silvestre tatuada de hematomas

uma tela viva de francis bacon







as sombras no areal conversam além azul

face a interlúdios da voz do mar


o areal como pergaminho envelhecido

pontilhado por pulgões de areia

testemunho calado de eras findas ―


e que conversas se perpetuarão

em cada risco de ave, gaivota ou não?

que som inteiro quão real como concha vazia?


que risos ficarão nesta praia à mercê da erosão?


na confusão de pés e iodo ao redor duma boca

que manto azul guardar de memórias e vento?


[saudades do mundo das lágrimas em maresia]


não compreendendo nunca o que as pegadas escrevem

não compreendendo nunca porque o mar as apaga







o embrião da matéria, o que é?

quando pensar se revela

não mais do que um errático esboço longe do quotidiano

o gérmen volátil da palavra oca


o que é? a mística desentranha-se do absoluto indolor

desentranha-se por inquietação

defronte a máscara


[cadência de abismos múltiplos]


chuva identitária dum rosto

a apodrecer continuamente no papel







. o diafragma desdiz a eternidade


, tanta lama a estragar-se em luzes incompreensíveis

dissimiláveis a cada aragem supérflua da ignorância

como quem diz grão de areia em vez de pólen

não visto e portanto realmente morto já

sem figurar em ânsias de arte

ou outras construções


, os vivos puxam fios aos mortos

e os mortos mantêm-se na sua imobilidade cantante

casmurros na sua eloquência discursiva da autêntica verdade

ou seja, a morte como mecanismo de implosão

esse diafragma variável da não paisagem

acto persecutório do sonho em carne viva


. a efemeridade desdiz o diafragma







a mesa, a mesa perpassada por ângulos obscuros

segmento isolado do que a custo perdura

em forças de introspecção bromatológica


a mesa, a mesa devolvendo a grande planície

uma confissão invertida da própria renúncia


: as vozes no interior dos alimentos







entre ler e dizer o que comer entre vazios de alma

entre o que fazer de vísceras floridas para o nada

que escolher entre sombras maiores do que o tamanho?


entre folhos de mentira e frutos perigosos que vêm da fome

entre fúrias de sangue e bílis que alumiam e escurecem o dia

que rosto ver em perfume e ilusão a quente, a ferver?


― há um figo a arder e esse lume vai doer e corroer ―







o grito como animal estranho entre outros sons

longe já do gutural arrependimento vivo

insípido como o falso brilho da morte num recanto aceso

do lilás ― arremedadas as ameias do susto

e também ele encantado com o muco da adrenalina

a noite advém floresta

luzindo entre o carvão vegetal do olhar ― o grito

memória a esquisso sobre a laje dos músculos marmoreados

o grito-caverna como súmula de dor

que minuto a minuto destoa a cor ao

genuíno ser perdulário brincando no centro da clareira


meros ensaios de câmara afinal

e ninguém adivinha a chave que designará o estilete vital

a escrever o arvoredo das margens ao centro no horizonte

ninguém se consubstancia de novo naquele grito inaugural

apesar do intrafamiliar peso amniótico dos ultrasons

trazidos entre gestos e confidências ombro a ombro

ninguém sonha a folha de céu como pauta de antífonas

porque ao engano andam os detractores existencialistas

que se pavoneiam em tinta no jardim dos catecismos

ninguém grita afinal, vista esta miséria humana

do mais recôndito zénite do universo







, e quando se mede o desperdício da juventude

passa-se a temer a fragilidade da porcelana dos ossos

e dos dentes


o tempo transcorrido fútil numa vibração criminosa

as mãos cheias de cicatrizes

de ensaios tortos

num sujo céu em tela pobre onde só poderiam estrelar

dores de cabeça e perdas

espasmos de memória deteriorada


[o desperdício]


passada rápida num apressamento caliginoso de processos

tétricos movimentos em desespero

o desperdício a nu

na escuridão da solidão

e não cabendo nunca no âmago da alma ambulante

contra si cambaleando

entre corredores que se autoanulam

não cabendo nunca no ritmo incessante de uma música

que afinal é ruído

como água perdida fria entre os dedos


o tempo transcorrido

a areia a doer no sangue

sem vermelhos ou melodia intuitiva

do romance







o vento que assobia pela fissura dum abandonado metal

enferrujado ― a poesia

no seu elemento mais natural, acontecendo

entre as margens de luz e sombra de uma ideia

ou visão


a garganta enferrujada num deserto de imprecisões

do real

uma guturalidade que se perde nos sentidos

entre abismos defronte objectos, coisas que são carne visual

e magoam na intersecção das linhas

no horizonte


, que contiguidade questionar ao sangue, à terra e ao vento?







se o amor ou a sua ideia é um breve fio de seda que mente

junto ao ouvido mais desprotegido

e delicodocemente se enrola em si próprio

em cheiros e fobias atraentes

tecendo-se enganado como que caindo em abismo

quase sem peso ou remorso

na página inferior da mais débil folha duma amoreira


se da falaciosa noção o fio se crê rodeado de novo

em torno da afeição

ele tão estranho como belo e nenhum todo

tinindo esticado um malogrado espelho que subtrai

todos os beijos às bocas

e devolve a verdade em aranhas malignas que escurecem

esse promontório dos bichos-da-seda


se o silêncio é amor em labirinto

fustigando tantos olhos com o

incalculável número de ovos que não chegarão a larvas

amor na ausência de fuso e roca soando o esvoaçar azul

de aves inquietas que escrevem nomes à solidão

nomes num papel de arroz em esquecimento

longe de qualquer olhar ou ouvido







conheço um lugar onde

por breves momentos

deixam de se ver todas as feridas


, vermelho só um desfiladeiro mental

a rasar harmonia


conheço um lugar que é todo ele

um espanta-espíritos

onde converso comigo num magma espiritual

de água gelada

entre penedos e vegetação


um lugar de choro feliz

para uma humanidade desalinhada

com o mundo

um lugar em que acreditar é um novo continente

a habitar de almas brancas

um lugar para ceder ao toque do musgo e da pedra fria

para florir pele apaziguada


abandonando este lugar as feridas voltam à visão

― desenham um mapa-segredo para regressar